Como cultivar uma comunidade amorosa na escola

Vivenciar o amor como prática transformadora contribui para que crianças permaneçam sensíveis e resistentes ao ódio

Michele Bravos Publicado em 07.11.2023
Foto colorida de um grupo de meninas e meninos. Todos usam camiseta e alguns estão com mochila nas costas.
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Resumo

Uma comunidade amorosa na escola, baseada em afeto e muito diálogo, é uma forma de proteger crianças da insensibilidade que atinge a sociedade.

A escola, um dos primeiros círculos de convivência das crianças, deve ser, por princípio, um espaço plural e orientado pelo senso coletivo. No entanto, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023), 15,5% dos diretores entrevistados relataram ocorrências de discriminação contra algum integrante da comunidade escolar. Já uma pesquisa divulgada este ano pela SaferNet, revelou que, no período de 2021 e 2022, crimes de ódio praticados na internet se destacaram em relação à intolerância religiosa ou ao ódio às mulheres (misoginia), por exemplo.

É neste terreno espinhoso de insensibilidade que crianças precisam aprender a trilhar caminhos de amor, que valorizam as diferenças e potencializam o florescer do outro. Como as escolas podem ser espaços de comunidade amorosa para ajudá-las a desviar das estradas que desumanizam?

“Precisamos compreender o amor como ética de vida. O amor é ação, e não apenas um sentimento”, afirma Silvane Silva, professora e pesquisadora em temas relacionados à educação antirracista. Responsável pelo prefácio do livro “Tudo sobre amor”, em que bell hooks descreve o amor como prática transformadora, que requer responsabilidade e comprometimento, Silva diz que essas posturas não podem ser desenvolvidas de forma individualista. Para ela, “só o retorno à vida comunitária poderá nos salvar da barbárie e do ódio“.

“A construção de uma ética amorosa pode ser um antídoto para que as novas gerações não estejam dessensibilizadas para as vulnerabilidades, para as diferenças, para o outro, para o mundo em que habitam”

Como cultivar uma comunidade amorosa na escola

Para cultivar uma comunidade amorosa na escola onde as crianças possam conhecer o amor a partir do que é justo e verdadeiro, ela indica quatro passos simples:

  • Primeiro, é preciso romper com silenciamentos diante de conflitos dolorosos que, frequentemente, fazem parte do dia a dia desse espaço;
  • Investir em muito diálogo, pois a comunicação aberta é um dos princípios para a ética amorosa;
  • Depois, deve-se envolver as famílias, seja ela funcional ou disfuncional, feliz ou não. Mas não sem antes desmascarar o mito de que o abuso e a negligência podem coexistir com o amor. “Onde há abuso, a prática amorosa fracassou”, diz. Afinal, ali está a nossa primeira escola de amor”;
  • Por fim, todo cuidador deve assumir a responsabilidade de dar amor às crianças, reconhecendo que elas possuem pensamentos, emoções, necessidades, direitos, sonhos e ideias próprias, e não são propriedades dos adultos.

Amor político na escola

Para promover um “descortinar do olhar” na escola e estimular a (re)ação, quando necessário, a educadora Vitalina Silva liderou o projeto “Educação antirracista”, que explicou para toda a comunidade escolar do Centro Educacional Maria Quitéria (BA) conceitos como preconceito, racismo e bullying.

Durante o planejamento do projeto, que venceu o Prêmio Movimento LED – Luz na Educação este ano, houve trocas baseadas na escuta a partir das quais Silva pôde conhecer mais das histórias dos estudantes. “Vi estudantes reconhecendo atitudes racistas e erguendo suas vozes para denunciar. Isso é simbólico”, diz.

Escolas que se propõem a ser amorosas compreendem o amor pela perspectiva de uma prática libertadora, vivenciado em comunidade e direcionado para o bem viver, diz Tião Rocha, educador e fundador do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (MG). Esse tipo de amor capaz de transformar a si próprio e o entorno tem nome: é amor político.

“Em uma escola amorosa, há o compromisso com o respeito a cada pessoa e em romper com as desigualdades”

Por isso, o objetivo da escola de Rocha se traduz em um neologismo criado por ele e sua equipe: paulo freirar. “Apesar de muitos educadores e escolas brasileiras conhecerem Paulo Freire, poucos colocam em prática seus ensinamentos. Esse é um verbo que só conjugamos no presente: eu Paulo Freire.”

Lá, o espaço se amplia para repensar “modelos que já não fazem mais sentido para a nossa realidade”, como aulas restritas a salas de aula e a inflexibilidade em relação ao tempo de aprendizagem. A pedagogia da roda, em que os alunos sentam-se em círculo para aprender juntos, ou a pedagogia do abraço, em que o acolhimento é priorizado diante de uma situação de sofrimento ou vulnerabilidade, são possibilidades de mudar a dinâmica escolar para experiências que favoreçam o despertar do amor ao outro e a experiência de ser amado.

“Educar pressupõe acolher as diferenças e as limitações do outro. Se a escola só quer seguir suas próprias determinações, ela automaticamente ignora as pessoas que dela fazem parte e transmite a mensagem de que podem fazer o mesmo”

Potencialidades afloradas pelo amor

O cultivo de uma comunidade amorosa na escola também demanda educadores dispostos e formados para isso. “O educador é aquele que antes de ensinar, permitiu-se aprender”, diz Rocha. “Toda pessoa traz em si a potencialidade do amor, mas isso precisa ser tecnicamente aprimorado quando estamos falando dessa outra escola possível.”

Nesse sentido, a educadora Silva buscou, por conta própria, letramento em temáticas e metodologias que lhe dessem subsídios para estimular seus estudantes a valorizarem as diferenças, a aprenderem com os saberes afro-brasileiros e indígenas. “Sempre quis que minhas aulas fossem além do que estava previsto no currículo.”

Além disso, tendo como referência bell hooks, ela busca ter um posicionamento afetivo em sala de aula, enraizado numa prática amorosa. Como lembra, o amor, por meio dos vínculos, é capaz de trazer confiança, equilíbrio, solidariedade, saúde mental e cura.

“A educação não acontece apartada da afetividade. Por isso, estabeleço laços com meus estudantes. Olho nos olhos deles, digo que são importantes para mim e que podem construir um futuro de potencialidades. Isso é amor, e não é piegas”

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