O legado de Niède Guidon junto às crianças

Ao cuidar do nosso passado, a arqueóloga, que revolucionou a teoria sobre o povoamento da América, contribuiu para proteger o futuro das crianças

Andre Nascimento Publicado em 24.06.2025
Imagem mostra Niède Guidon na Serra da Capivara.
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Resumo

A arqueóloga, que revolucionou a teoria sobre o povoamento da América e o que sabíamos sobre o nosso passado, criou escolas, museus e o Parque Nacional Serra da Capivara, para proteger o futuro das crianças das comunidades no entorno dos sítios arqueológicos.

Um menino caminha por longas passarelas com os olhos emocionados pelos desenhos feitos há milhares de anos. Eles mostram a relação das populações indígenas que viviam por ali com a natureza. “As pinturas rupestres me impactaram. Lembro de ter ficado muito tempo olhando os detalhes’’, conta Júlio Trasferetti, hoje com 30 anos, sobre os registros de gerações de grupos nômades que conheceu em sua visita ao Parque Nacional Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato (PI), quando tinha 10 anos.

A criatividade de criança deu movimento às cenas de caçadas: pessoas correndo com lanças nas mãos perseguindo capivaras. “Para mim, a brincadeira era ver as pinturas e tentar, na minha cabeça, fazer uma animação, ter cada uma como um frame de um filme, sabe?’’, lembra. “Essa viagem foi transformadora para eu reconhecer o Brasil, a natureza, a nossa história e a nossa pré-história, enfim.”

O Parque Nacional Serra da Capivara é uma área de preservação ambiental que abriga um dos maiores conjuntos de sítios arqueológicos do mundo, boa parte deles formados por painéis de pinturas e gravuras rupestres. Com 130 mil hectares, o parque compreende os territórios de cinco municípios do sudeste do Piauí. Crescido em meio à Mata Atlântica, Júlio sentiu que estava em outro mundo diante da paisagem e do clima da caatinga.

Não bastasse esse encantamento, o menino teve outra surpresa para guardar na memória: um encontro com a arqueóloga chefe do parque, Niède Guidon. “Eu e minha mãe fomos bem despretensiosos para conhecer a Serra, o Museu do Homem Americano. Mas no dia ela estava lá e a gente conseguiu conversar um pouco. Ela mostrou algumas coisas, estava superentusiasmada, falando de tudo. E para uma criança!’’, relembrou.

Imagem mostra a arqueóloga Niède Guidon ao lado de Julio, um menino branco de cabelos curtos.
Além da vontade de voltar a visitar o Parque, Júlio guarda consigo a foto em que é abraçado por Niède.

Niède descobriu as pinturas rupestres nos paredões de pedra de São Raimundo Nonato, na década de 1970. Seus estudos sobre os vestígios de povos na região mudaram o entendimento da arqueologia sobre como o ser humano chegou à América. Segundo a tese de Niède, nossos ancestrais atravessaram o Oceano Atlântico há mais de 50 mil anos, quase 40 mil anos antes do que se acreditava, e por um caminho que não havia sido considerado. Para conseguir aprofundar as pesquisas e proteger os sítios arqueológicos, Niède fundou o Parque Serra da Capivara.

De acordo com o trabalho da arqueóloga, o povoamento da América aconteceu quando grupos partiram da África em pequenas embarcações, viajando de ilha em ilha, até alcançar o litoral do que viria a ser o Brasil. Na época, os dois continentes seriam mais próximos e o caminho entre os dois era repleto de ilhas. Antes dos trabalhos de Niède, a teoria aceita era de que esse movimento teria acontecido há 13 mil anos e apenas pelo estreito de Bering, que liga o Pacífico e o Ártico, entre a Rússia e os Estados Unidos. Por isso, a tese de Niède foi considerada audaciosa demais, e rendeu muitos embates entre ela e a comunidade científica. Ainda não há um consenso sobre a data que ela apontou.

As revoluções de Niède

A jornalista e escritora Adriana Abujamra passou algumas semanas encontrando Niède Guidon todas as manhãs, na casa que a arqueóloga construiu para si dentro do Parque Nacional Serra da Capivara. Conversaram sobre a vida, o trabalho, a luta para manter o parque de pé. Desses encontros, Adriana escreveu o perfil biográfico “Niède Guidon: uma arqueóloga no sertão’’ (Rosa dos Tempos), o primeiro da série “Brasileiras”, que conta sobre mulheres que marcaram a história. Para a autora, “o desejo era justamente divulgar mais um trabalho que muita gente nunca tinha ouvido falar”.

Niède chegou em São Raimundo Nonato dirigindo um carro grande, usando calças jeans e acompanhada de uma equipe de pesquisadoras mulheres. A imagem dela era uma revolução, diz Adriana. Além disso, para ela, a história de Niède revelou para as mulheres e meninas da região que elas poderiam escolher como gostariam de viver e que carreira seguir, poderiam conquistar uma condição financeira igual ou maior que a dos homens (o que era impensável na época). “Com certeza isso é algo que inspirou e pode inspirar ainda.”

“Ela contava que foi atraída para aquele lugar pelas pinturas, muito ricas em termos arqueológicos, em termos da história da humanidade. Você vê aquele beijo, aquelas pessoas dançando, parece uma comunhão com o que veio antes da gente”, diz Adriana. Em sua memória, além do encantamento pelas paisagens da caatinga e a sensação de encontrar vestígios do próprio passado, ficou a lembrança de uma pessoa que, segundo ela, equilibrava-se entre a necessidade de ter um pulso firme, para manter a excelência do trabalho, e uma ternura natural.

“Ela era uma figura! Tinha esse humor, de fazer piadas no sentido de que não queria crianças por perto, mas era só papo! Ela adorava, ajudava, ensinava. Com os adultos, era muito firme, direta, mas ao mesmo tempo tinha uma voz muito doce. Era um paradoxo. Assim, ela podia dizer as coisas mais difíceis com aquela voz doce dela.”

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Arquivo Pessoal

A escritora Adriana Abujamra, em um dos seus encontros com Niède Guidon. ''O Parque faz a gente pensar numa comunhão, que fazemos parte de uma grande família humana.''

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Arquivo Pessoal

A professora Valeska Zanello, em visita ao Parque Nacional Serra da Capivara, em 2023: ''O parque é maravilhoso, as pinturas são inacreditáveis. O parque só não foi destruído pela força da Niède.''

Uma inspiração para meninas e mulheres

Para a professora e pesquisadora de saúde mental e gênero Valeska Zanello, a arqueóloga rompeu com os estereótipos de comportamento e da posição da mulher na sociedade. “Sua caminhada pode estimular outras possibilidades de identificação e inspirar as meninas a se construírem para além das expectativas relacionadas ao gênero. Ela foi um exemplo de que é possível se realizar profundamente mesmo não casando e não sendo mãe. Ou seja, você não necessariamente precisa ter um filho para deixar sua marca no mundo.”

Então, como forma de “incentivar as meninas na ciência” – e ao mesmo tempo resgatar os próprios sonhos de ser cientista -, Valeska conta para as crianças a história da arqueóloga desde a infância. Parte da coleção “Mulheres insubmissas”, o livro “Niède Guidon: a arqueóloga da humanidade” (Editora Contracorrente) foi escrito em parceria com Ana Miriam Wuensch e ilustrado por Maria Clara Palma.

“Quando era criança, eu tinha muita vontade de ser uma cientista aventureira. Mas a arqueologia, especificamente, povoou muito os meus sonhos. Então, quando eu conheci a história da Niède, eu vi um ‘alter ego’ disso tudo. Queria demais ter feito isso, vivido essa vida. Assim, poder escrever sobre isso me realizou demais”, conta Valeska.

Ela conheceu a história de Niède Guidon por acaso, enquanto folheava uma revista em um avião. A nota curta, com um resumo sobre a arqueóloga e o Parque Nacional Serra da Capivara, foi suficiente para impressioná-la. Para Valeska, a pesquisa sobre Niède e a luta pela criação do Parque aliada às suas pesquisas sobre os processos de socialização de meninos e meninas num país sexista como o Brasil contribuem para “transformar o conhecimento em formas de intervenção social”. Nesse sentido, “retratar grandes mulheres brasileiras faz parte desse projeto’’, explica.

Adriana conheceu uma dessas histórias de como Niède fortalecia as mulheres ao seu redor. Em conversas com os trabalhadores do parque, soube que ela teve embates por falta de organização e higiene com os homens que havia contratado como vigias, no passado. Alguns chegaram a deixar o posto para frequentar bares na cidade. “Um dia, ela reclamou com um deles, quando encontrou cuecas estendidas numa área por onde passavam turistas. O homem disse: ‘A gente faz o trabalho de vigia. Se quiser serviço de limpeza, contrate uma mulher’. E ela respondeu: ‘Pois é exatamente o que eu vou fazer’”, contou Adriana.

A arqueóloga então encontrou mulheres dispostas ao serviço: vigiar as guaritas contra caçadores de animais, grileiros e vândalos. Elas receberam espingardas, cassetetes, treinamento de vigilantes e de defesa pessoal, que se tornaram ferramentas de trabalho e de construção de autonomia. A intenção de Niède era que elas usassem o dinheiro para alimentar suas famílias e para ter condição de se separar desses homens, que muitas vezes batiam nelas, relata Adriana. Isso porque, “com autonomia financeira, não precisam ficar presas a essas relações”.

“Aos poucos, a comunidade tomava consciência de que aquelas pinturas nas pedras, que eles conheciam desde sempre, tinham um valor inestimável”, reflete Valeska. Já Adriana comenta como Niède entendeu que precisava desenvolver o turismo para conseguir proteger o patrimônio e como mostrou que a preservação da natureza era a melhor forma de desenvolver a região economicamente. “Ela deu a oportunidade de os moradores aprenderem a fazer cerâmica, por exemplo. Hoje, as peças são vendidas nas capitais, e exportadas.”

Niède educava para além dos muros da escola

As crianças da região passaram a ter acesso a uma educação aliada à ecologia e à arte no início dos anos 1990, quando Niède fundou uma escola de tempo integral para a comunidade que vive no entorno do Parque. Além da grade curricular comum, os alunos tinham aulas de música, dança, artes plásticas e arqueologia. Havia programas em que “arqueólogos mirins” escavavam ao lado dos adultos.

Por fim, os pais dos alunos também se beneficiaram e muitos deles se tornaram guias, técnicos, empreendedores, deixando a caça de lado. “Eles perceberam que uma onça viva vale mais do que morta, que preservar dá muito mais dinheiro do que destruir. Tudo isso faz parte da educação”, comentou Adriana Abujamra.

Foi numa dessas escolas que Marian Rodrigues começou a trabalhar como assistente, depois tornou-se professora titular e permaneceu até o fim das escolas, quando a distribuição dos recursos passou a ser das prefeituras. Mas Niède não desistiu. Foi então que fundou o ProArte Fundham, uma escola só para as disciplinas artísticas. Marian coordenou o projeto, que foi premiado, em 2009.

“Ela tinha consciência de que a educação é a ferramenta mais poderosa para fazer a transformação”, diz Marian. “Por isso apostou na educação logo que chegou, porque sabia que não adiantava ela ser ‘a melhor cientista do mundo’, se as pessoas não entendiam o que ela estava fazendo. Ela sabia que, sozinha, não conseguiria proteger tudo isso.” Atualmente, segundo ela, a maioria das crianças e dos adolescentes educados nas escolas e ações sociais da fundação trabalha no parque: são guias, guardas, técnicos, arqueólogos, donos de restaurantes, hotéis…

“Tinha um encantamento, um deslumbramento por ver assim uma mulher liderando’’

Para Marian, o perfil de Niède, de independência e liderança, inspirou as mulheres e meninas da comunidade para muito além da ciência, inclusive ela mesmo. Marian tinha 7 anos quando todos os quartos da pensão da dona Dolfina, que ficava em frente à sua casa, foram ocupados por uma equipe de mulheres cientistas. A líder delas contratava seu pai, único no povoado rural na Serra da Capivara que tinha carro, para levá-las mata adentro onde ficavam semanas inteiras isoladas. Depois, voltavam de lá com caixas misteriosas. Comentava-se que aquelas mulheres procuravam tesouros.

Um dia, formou-se uma fila comprida, de adultos e crianças, que começava na rua e terminava num dos quartos da pensão, para ver o trabalho das cientistas. Marian esperou ansiosa pela sua vez de ver o tal tesouro que haviam encontrado. Quando enfim passou pela porta, levou um susto: era um esqueleto.

“A gente saiu morrendo de medo! E decepcionado também, né, esperando ver ouro! Imagine: vivíamos ali num povoado onde não tinha novidade nenhuma. Nem televisão tínhamos. Então aquilo era algo extraordinário. E só mulheres, ainda mais!”

Outro dia, já adolescente, Marian viu a arqueóloga chefe, Niède Guidon, caminhando pelo povoado. Sem saber o que falar, pediu um autógrafo. Guardou o pequeno papel em seu diário. “Eu tenho esse papel até hoje!”, conta. Mais tarde, com o incentivo de Niède, partiu para Portugal, onde fez mestrado e doutorado em arqueologia. Por muito tempo, trabalhou com licenciamento ambiental em diversos estados do país.

Em 2013, fundou o Olho D’água, um instituto que busca preservar as memórias e os modos de vida dos povoados da Serra da Capivara. Tornou-se arqueóloga do próprio povo. Lá, as crianças conhecem a sua história e entendem por que o lugar delas é importante. “Gosto de dizer que as pessoas precisam vir à Serra da Capivara para saber de onde vieram, o que seus antepassados fizeram.”

“É aqui que estão vestígios de quem nós fomos, de onde viemos, o que fizemos”

Desde 2019, Marian ocupa o cargo que era de Niède como chefe do Parque Serra da Capivara. Ela e seus companheiros têm a missão de manter o legado apenas revelado por Niède, mas que, na verdade, foi deixado por ancestrais muito mais antigos.

O interesse genuíno das crianças por conhecer o passado

Niède Guidon fez da arqueologia uma ciência ainda mais interessante aos olhos das crianças. Agora, professores como Emílio Ribeiro seguem seus passos para resgatar a ancestralidade e ensinar aos alunos sobre o lugar a que pertencem.

Ele propôs a um grupo de 12 crianças da Vila do Camutá, no município de Bragança (PA), uma escavação arqueológica. A região é rica em sítios arqueológicos. Lá, é comum encontrar fragmentos ou mesmo peças inteiras de cerâmica feitas por populações indígenas por acaso, enterradas nos quintais dos moradores.

Primeiro, Emílio orientou que a escavação tem etapas, que precisa ter cuidado. Então, cada aluno usou as ferramentas adequadas: lupas para observar as peças, luvas para tocá-las e pincéis para limpá-las. A oficina de arqueologia deu a eles uma nova dimensão da história, e principalmente dos próprios antepassados.

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Acervo do Ecomuseu do Caeté

Crianças da Vila do Camutá, em Bragança (PA), participam de uma oficina de arqueologia, realizada pela Casa da Mata de Bragança.

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Acervo do Ecomuseu do Caeté

As crianças fizeram uma simulação de escavação arqueológica, cavando e limpando artefatos que foram enterrados em caixas de areia.

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Acervo do Ecomuseu do Caeté

Durante a oficina de arqueologia, o professor Emílio Ribeiro orienta as crianças sobre o cuidado que precisam ter com as peças e como usar as ferramentas.

“As crianças falavam que as peças eram o legado dos povos indígenas que aqui moravam. Talvez não instrumentalizem ainda como algo de pertencimento nem têm a completa dimensão política disso, mas sabem que existe uma continuidade”, afirma Emílio. “Daí a importância de estimular desde a infância percepções mais profundas sobre o lugar onde elas vivem e a visão crítica das crianças com relação a sua própria realidade.”

“A gente às vezes vive muito no nosso universo, e precisa ter contato com experiências ‘fora da bolha’ para conseguir perceber o mundo’’, diz Júlio Trasferetti. Ele se tornou programador, uma carreira ligada à tecnologia, mas continuou apaixonado pela natureza. Hoje, realiza um trabalho voluntário em escolas sobre a importância das abelhas e como protegê-las. Para ele, essa inspiração tem a ver com aquela visita ao Parque Nacional Serra da Capivara. Na ocasião, o menino aprendeu com os guias que as árvores dali ficam dormindo no segundo semestre. Jogam fora suas folhas para economizar água, para atravessar a seca e florescer novamente com as primeiras chuvas de dezembro.

Um passarinho da Serra da Capivara

Filha de mãe brasileira e pai francês, a arqueóloga Niède Guidon nasceu em 12 de março de 1933 em Jaú, interior de São Paulo. Formou-se em história pela Universidade de São Paulo (USP) em 1959 e obteve o doutorado em pré-história pela Universidade de Paris, em 1975. Durante a década de 1970, descobriu as pinturas rupestres em São Raimundo Nonato (PI). Começou, então, a pesquisa que transformaria sua vida e o próprio entendimento da arqueologia sobre como o ser humano chegou à América.

O Parque Serra da Capivara, fundado por Niède para fins de estudo e preservação, hoje é tombado pelo Iphan e considerado Patrimônio Cultural da Humanidade, pela Unesco. Além de um dos maiores e mais importantes conjuntos de sítios arqueológicos do mundo, o Parque abriga escolas de música e arte, e dois museus: o Museu do Homem Americano, que reúne artefatos e vestígios da presença do ser humano na região, e o Museu da Natureza, a última grande obra de Niède, que conta a história de cada era geológica. Em 2024, o Parque registrou recorde de público: foram 40 mil visitantes.

Niède faleceu na madrugada do dia 4 de junho de 2025, aos 92 anos, na casa que construiu dentro do Parque e onde morou nos últimos 40 anos. Foi sepultada no quintal, para permanecer na terra para a qual dedicou sua vida.

“Partiu como um passarinho, tranquila’’, escreveu Marian Rodrigues naquela manhã para avisar ao mundo que havia perdido uma de suas maiores cientistas. Adriana Abujamra lembra do amor de Niède pelos animais. “Na época, ela tinha cinco ou seis cachorros e um gato, apenas. Mas surgiram esses filhotinhos, que ela tentou doar. Por fim, não conseguiu. Hoje em dia tem mais gatos do que cachorros por lá. Eu soube que, durante o velório, um desses gatinhos subiu no caixão e ficou ali, pertinho do rosto dela.”

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