Mãe não é “uma só”. Por meio da literatura, o levante pelo direito a múltiplas maternidades experimenta um fôlego novo. Em livros lançados no Brasil nos últimos cinco anos, é possível perceber como escritoras têm dedicado suas prosas, poéticas, autoficções e pesquisas – inclusive em outras áreas do pensamento (sociologia, antropologia, psicanálise, política) – a demonstrar como a maternidade não é só uma prática individual, mas social.
Para a jornalista e escritora Bruna Escaleira, autora de “Poemas para Liz” (Arpillera), “a literatura, além de uma potente formadora de visões de mundo, é um instrumento para elaborar e organizar pensamentos e emoções intensos e contraditórios que nos invadem no exercício da maternidade”. Dessa forma, ela chama a atenção para um “boom de livros de não ficção sobre experiências maternas sem o viés tradicional da romantização”.
“Mesmo assim, obras que tratam a questão da maternidade ainda são vistas como algo menor, uma espécie de literatura setorizada, assim como foi historicamente tratada a literatura feita por mulheres. É urgente mudar isso.”
Em histórias que misturam alegria e sofrimento, o leitor pode conhecer retratos de mães plurais, que sentem medo, arrependimento, depressão, opressão e outros sintomas sociais e psíquicos. Então, “precisamos de uma pluralidade incrível de vozes para dar conta do atravessamento avassalador que é a experiência materna”, afirma Escaleira.
Portanto, nem só escritoras de literatura se dedicam ao tema. A psicanalista Vera Iaconelli, autora de “Manifesto antimaternalista” (Companhia das Letras), por exemplo, associa a noção de instinto materno a uma criação do patriarcado para centralizar o cuidado entre as mulheres. Contudo, para ela, resgatar uma relação coletiva com o ato de cuidar é uma responsabilidade compartilhada.
De acordo com Monica Carvalho, proprietária da Livraria da Tarde, em São Paulo, o sucesso da publicação, que ficou na lista dos mais vendidos logo que saiu, reflete o interesse das mulheres por livros sobre maternidade, ou de temas ligados a ela. “Livros como ‘Maternidade: um romance’, da Sheila Heti, e ‘O acontecimento’, da Annie Ernaux, por exemplo, também têm procura”, conta.
A mãe perfeita, uma ficção
Cada vez mais, o ideal da “mãe perfeita” cede lugar à prática da “mãe suficientemente boa”. Isto é, aquela que não abdica de si pelos filhos, e se preocupa em nutrir com eles uma relação de afeto. Isso também passa por identificar quais são os pontos cegos de viver em um mundo que endereça às mães todo o cuidado. A teoria, imaginada no século XIX pelo pediatra e psicanalista Winnicott – que acaba de ter sua obra reeditada no Brasil pela Ubu -, é reconfigurada com as novas reivindicações de nosso tempo.
“Pensar na ‘mãe suficientemente boa’ implica concebê-la como mulher, respeitada pela cultura, reconhecida como dona de seu corpo e de sua liberdade, capaz de viver o paradoxo de amar com devoção e alteridade”, explica a pesquisadora Silvia Lobo, no artigo “As condições de surgimento da “mãe suficientemente boa”, publicado na Revista Brasileira de Psicanálise, em 2008.
De acordo com a autora, que integra a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Winnicott buscava preservar as mães de serem culpabilizadas. Ou então, de serem exclusivamente responsabilizadas pelas crianças. A preocupação de que a maternidade seja vista como um dever também social se reflete com frequência nas atuais demandas das maternidades. E assim, consequentemente, nas produções literárias.
“Ter filhos sem ter que se transformar em mães. Não consigo imaginar desejo mais compreensível”, escreve Begoña Gómez Urzais, em “As abandonadoras” (Zahar). Nesse livro, a jornalista catalã discute, por exemplo, de onde vem o fenômeno das “mães influenciadoras”. Ou seja, mulheres que tornam pública, por meio das redes sociais, sua experiência com a maternidade, compartilhando dificuldades, descobertas e reflexões do dia a dia, podendo ou não monetizar seus conteúdos sobre o tema.
16 leituras que refletem a maternidade em suas mais diversas facetas
Entre romance, não ficção e poesia, autoras brasileiras e estrangeiras celebram as perguntas, mais do que as respostas. As obras apostam nas vivências cotidianas dessas mulheres, o que envolve o medo de errar com os filhos, a angústia gerada pelo julgamento alheio, as dúvidas sobre que caminhos seguir, e, eventualmente, as longas noites de insônia que esses sentimentos podem trazer.
Em forma de relato pessoal, o livro traz o retrato de uma mãe com depressão. Enquanto tenta dar conta da nova rotina com seu bebê, Heitor, a mãe reflete sobre as camadas de expectativas irreais que recaem sobre as mulheres quando se tornam mães.
“O parto fez de mim uma criança”, escreve a autora húngara. Esta é uma história de ficção sobre uma tradutora que se vê transformada em “máquina de leite” depois de parir. Portanto, ao explorar esse sentimento ambíguo, o livro acolhe as mães que procuram a si mesmas.
Depois de retratar a figura do pai, dos traumas íntimos e do primeiro amor, a escritora francesa recorre ao gênero que inventou, a “autossociobiografia”, para narrar a mãe. A escrita começa alguns meses após sua morte, e elabora não só o lugar da maternidade no núcleo familiar e na sociedade, mas também o da filha vivendo um luto invisível.
“Uma vez, desci ao porão e a mala da minha mãe estava lá, com a carteira dela, uma bolsa colorida e lenços dentro. Fiquei prostrada diante da mala aberta. Quando me encontrava fora de casa, na cidade, era pior. Estava dirigindo e, de repente: ‘ela nunca mais estará em lugar nenhum do mundo.’” – Trecho do livro “Uma mulher”, Annie Ernaux
“As mães, mesmo sem intenção, recorrem à literatura como uma forma de ordenar o mundo”. Este livro-manifesto é a primeira obra ensaística da escritora chilena, conhecida por livros ilustrados para as infâncias, como “Lá fora, os fantasmas”, por exemplo.
Esta coletânea de ensaios conta ao leitor por que tantas mulheres ao longo da História – da atriz Ingrid Bergman à artista Gala Dalí – optaram por dar as costas ao idealizado “instinto materno”, abdicando de uma função social carregada de julgamentos morais.
Este livro traz o ponto de vista da maternidade que narra as vivências após o nascimento do primeiro filho do casal, Silvestre. Das marcas físicas às emocionais, a autora questiona o que faz de uma mulher uma mãe. O texto pode ser lido como o outro lado da história que o escritor Alejandro Zambra conta em seu livro mais recente, “Literatura infantil”.
“Claro que também há alegria, muita, como quando falamos de nomes ou quando imagino seu rosto. Mas isso eu sabia que ia acontecer, estava esperando; a obscuridade, não. Acho difícil lidar com a ideia de que metade da humanidade passou por isso. É a coisa mais comum do mundo e me parece tão distinta, incômoda e desconcertante.” – Trecho do livro “Linea nigra”, Jazmina Barrera
O romance de estreia da escritora paulistana acompanha duas jornadas simultâneas de maternidade. Lena e Dedé são mulheres que criam uma filha em um cenário distópico. Na sociedade em que vivem, os homens servem apenas para procriar. Os conflitos dessa maternidade compartilhada visitam o lado mais íntimo das relações.
Interessada nas conexões entre arte e linguagem, a psicanalista e escritora oferece ao leitor o ponto de vista de uma mulher questionando o mundo e os múltiplos papéis que esperam dela. “Olhei para a marca dos meus partos / e pensei, insegura com meu corpo nu, / também sou uma cicatriz de cesárea, / não sou só uma cicatriz de cesárea.”
Gestar, parir e assumir integralmente o cuidado de uma criança são papéis diferentes. Neste livro, a psicanalista explica como a crença histórica no cuidado como uma tarefa feminina afeta negativamente toda a sociedade. Além disso, faz a conexão entre os direitos reprodutivos com suas dimensões políticas.
“Cuidar da próxima geração também passa por cuidar das mulheres/mães num primeiro momento, mas, igualmente, passa por recuperar a responsabilização da sociedade como um todo pelas novas gerações.” – Trecho do livro “Manifesto antimaternalista”, Vera Iaconelli
O livro reúne poemas escritos pela autora paraibana durante um longo tratamento para engravidar. Nesse contexto, ela questiona: “Por que eu quero tanto produzir vida? Será que estou associando que eu, enquanto sujeito mulher, só teria valor se fosse mãe?”
Parte da coleção e do coletivo “Mãe leva outra” – espaço de pesquisa e discussão sobre maternidade – o livro de poemas parte da perspectiva da ausência paterna. Assim, dialoga com mulheres que vivem a maternidade solo, e dá voz a mães silenciadas ou abusadas.
Best-seller do New York Times e vencedor de diversos prêmios internacionais, este romance norte-americano publicado pela primeira vez nos anos 1980 acompanha o dia a dia de Mildred Peacock. Mãe de cinco filhos, ela tenta equilibrar firmeza e afeto na lida com a maternidade ao mesmo tempo em que atravessa as questões de raça.
Os poemas deste livro falam de uma jovem mãe com medo do que é feito das crianças que nascem pretas, mas que também confia na potência da criação para inventar outros mundos. Combinando dureza e suavidade, a escritora paulistana apresenta a escrita como possibilidade de maternar futuros.
A escritora mexicana explora neste romance a ambivalência da experiência materna – entre a convicção, a dúvida e a culpa. As personagens Laura, Alina e Doris vivem diferentes escolhas de vida enquanto abraçam ou recusam a maternidade. Nesse sentido, trazem um olhar atual sobre as formas não convencionais que uma família pode ter.
Por que o marcador racial interessa para interpretar a maternidade? O livro reúne relatos representativos de como as mulheres pretas vivem a experiência de tornar-se mãe em meio ao racismo estrutural que perpassa também as relações de gênero e classe no Brasil.
A quarentena, aqui, tem sentido duplo: é tanto o puerpério de Anna e Victor, que acabaram de ter a primeira filha, quanto o isolamento imposto pela pandemia de covid-19. Nesta narrativa, a jornalista registra então os primeiros 40 dias de três vidas prestes a tomar novas e desconhecidas formas.