Como dedicar tempo de qualidade às crianças sem culpa?

Especialistas comentam que o tempo de qualidade com os filhos mora nas pequenas coisas e que a presença genuína é essencial para viver o momento

Eduarda Ramos Publicado em 07.06.2023
Na imagem, uma família de pessoas de etnia amarela sorriem enquanto cozinham. A foto ilustra uma matéria sobre tempo de qualidade.
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Resumo

Faz sentido falar sobre tempo de qualidade com os filhos quando os pais vivenciam duplas e triplas jornadas? Para especialistas, as melhores memórias são criadas a partir de vivências com atenção genuína e exclusividade: basta estar por inteiro na dedicação aos filhos.

Passar tempo de qualidade com uma criança “é mais do que estar presente fisicamente, é sobre dedicar atenção e envolvimento genuíno nesse período”, explica Mirella Rochel, psicóloga, psicanalista e educadora. Que momentos do cotidiano têm potencial de virar memórias a serem guardadas para sempre? Ao tentar equilibrar os pratinhos, tem sido possível criar boas recordações sem que outras pendências e tarefas concorram por atenção? É, nem sempre será possível oferecer exclusividade… mas os pais não precisam sentir culpa quando as coisas não fluem da melhor forma possível.

Tá todo mundo mal há muito tempo?

É normal sentir culpa se parece faltar tempo, escrevem Júlia Catani e Ana Laura Godinho Lima, autoras do estudo “A dedicação de um ‘tempo de qualidade’ aos filhos: análise de um enunciado recorrente“. Independentemente do quanto se faça, de modo geral a sensação será de insuficiência, já dizia o pediatra e psicanalista Donald Winnicott.

“O tempo de qualidade com uma criança fortalece o vínculo entre ela e quem cuida, permitindo uma imersão no universo um do outro, e é fator importante para o desenvolvimento saudável na infância”, diz a especialista. “Mesmo que o tempo disponível seja limitado, é possível reservar momentos específicos durante a semana para essas experiências, encontrando maneiras criativas de incorporá-las e adaptá-las às circunstâncias da vida de cada um.” Para a psicóloga e neuropsicóloga Vera Nascimento, tempo de qualidade é sobre presença e participação ativa: “o tempo de qualidade mora nas pequenas coisas: um café com bolo, sentar para jogar cartas, aproveitar a hora de jantar e ficar todos na cozinha falando sobre como foi o dia.”

A dificuldade de criar bons momentos é estrutural?

“Falar em tempo de qualidade com os filhos tem gerado mais pressão sobre os pais, mas principalmente sobre a mãe, que culturalmente foi colocada nesse lugar de cuidadora”, comenta Nascimento. “É complexo estruturar uma família e ainda lidar com a realidade que bate à porta, principalmente porque cada família tem sua história. Não existe família perfeita, mas famílias tentando sobreviver em uma sociedade que vende ilusão”, diz, em referência a propagandas e manuais de como ser uma família digna do “comercial de margarina”.

Segundo ela, enquanto para famílias com dificuldades financeiras que precisam trabalhar duplas e triplas jornadas pode ser desafiador passar tempo de qualidade com os filhos, esse recurso costuma ser “terceirizado” por famílias com poder aquisitivo mais alto que preenchem a agenda dos filhos de atividades, num movimento que prioriza “o ter e não o ‘ser’”.

“Temos a ilusão de que existe qualidade afetiva, mas os filhos continuam no quarto nos poucos momentos quando não estão cumprindo agenda”

É no dia a dia que o tempo de qualidade acontece

“Passar um tempo de qualidade com minha filha é a gente encontrar coisas que as duas gostam e ter trocas diárias”, conta Mayara Marcelin, mãe de Laura, 9. Passeios culturais, ir em parques, rodas de sambas e visitar ocupações são as atividades preferidas da dupla. Se sair de casa não é uma possibilidade, montar quebra-cabeça, assistir algum desenho juntas e conversar também entram para as memórias partilhadas entre mãe e filha.

Marcelin, que é profissional autônoma, conversa bastante com Laura sobre administração do tempo, mas revela que a pressão para passar mais tempo com a filha parte dela mesmo. “Quando vem essa autocobrança, eu dou o meu jeito de fazer alguma coisa diferente, como preparar uma refeição com a ajuda dela.”

“O conceito de ser ‘suficientemente bom’ pode nos ajudar a entender que cometemos erros, mas estamos presentes exercendo esse papel bonito e desafiador que é criar outra vida” – Mirella Rochel

Como lembra Rochel, “a ‘mãe suficientemente boa’ [conceito cunhado por Winnicott] dará o seu melhor para atender às necessidades da criança, mas também poderá frustrá-la se não conseguir atender imediata ou plenamente todos os seus desejos”. 

“Desde cedo, a criança aprende importantes lições com essas experiências. Ela aprende a lidar com a frustração, a desenvolver resiliência e a encontrar maneiras próprias de resolver problemas e impasses, de acordo com suas capacidades em cada estágio do desenvolvimento”, conta a especialista. Laura já sabe que as ocasiões em que não é possível ter momentos assim com a mãe são temporárias e que, logo menos, elas voltarão a aproveitar os domingos de sol e sair para passear.

Na casa de Anésia França, é durante as refeições à mesa que ela aproveita para saber como foi o dia dos filhos Davi, 13, e Emanuel, 8, e também para “rir, chorar, reclamar e ser escutado”, conta. Além das refeições conjuntas, jogar videogame ou montar quebra-cabeças, o tempo de qualidade mora nas miudezas de deitar juntos olhando para o teto, aproveitar o aconchego do lar ou cumprir tarefas domésticas. “Meu filho mais velho ajuda com as atividades na casa, o que facilita muitas das vezes bater um papo quando enxuga uma louça, por exemplo.”

Apesar de cada família ter uma dinâmica própria, Rochel lembra que é possível ter tempo de qualidade em atividades simples e ainda aproveitar para explorar e se conectar com a natureza: cultivar plantas e acompanhar o crescimento delas, colecionar sementes e folhas diferentes, usar um binóculo para observar as estrelas à noite, ler livros sobre animais ou paisagens diferentes ao redor do planeta, apreciar a chuva caindo ou fazer piqueniques em dias ensolarados.

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