A mostra reúne 92 trabalhos de 47 ilustradores negros e fica em cartaz até janeiro de 2024, no Sesc Bom Retiro, em São Paulo
Os valores civilizatórios afro-brasileiros, defendidos pela educadora e pesquisadora Azoilda Loretto da Trindade, permeiam a produção de ilustradores negros na literatura infantil na exposição “Karingana”.
Karingana, palavra de origem moçambicana, é parte de um jogo para contar e ouvir histórias. O narrador diz “Karingana ua Karingana” e, quem quer participar, responde “Karingana”.
Na exposição “Karingana – Presenças negras no livro para a infância”, em cartaz no Sesc Bom Retiro, em São Paulo, crianças e adultos estão convidados a conhecer e apreciar um recorte da produção contemporânea de artistas negros brasileiros que se dedicam à ilustração e ao livro ilustrado para as infâncias.
O Lunetas convidou a curadora Ananda Luz para indicar livros que se relacionam a cada um dos valores presentes na exposição, que dizem respeito à forma como as populações de diásporas negras se organizam socialmente. Ela explica que esses valores coexistem nas mais diversas situações. “Numa roda ouvindo alguém mais velho contar suas memórias, estão presentes a oralidade, a ancestralidade e até a ludicidade, por exemplo.”
O princípio do Axé está presente em tudo que é vivo e que existe. Através dessa energia que nos move, forjamos meios para nos manter resistentes e atuantes.
Um menino ouve de um contador de histórias informações sobre um país no continente africano. Ele, que tem um nome afro, descobre a importância dos nomes para os povos de origem iorubá e como a comunidade inteira participa dando boas-vindas ao recém-nascido. Assim, conhece a história de seus antepassados e, sobretudo, a riqueza cultural africana. As ilustrações são do artista Coyote, conhecido por ilustrar a icônica capa da coletânea Racionais Mc’s.
Nesta narrativa visual, o menino Benedito revive as memórias ancestrais dos povos negros brasileiros ao descobrir os sons e ritmos do tambor do Congado. Além disso, participa da manifestação de fé, canto e dança celebrada por seus familiares e amigos que faz parte da nossa cultura.
Inspirado na canção “Cavaleiro Macunaíma”, Caio Zero cria uma homenagem visual em forma de livro sanfonado ao multiartista brasileiro João Bá. Do Rio São Francisco ao Araguaia, o cavaleiro segue rumo à Chapada Diamantina e, pelas mãos do artista, somos arrebatados pelas paisagens do caminho.
Oranyam pesca um grande peixe no rio Níger e tem a ideia de compartilhar sua sorte, reunindo toda a aldeia. Vovó Dandara ajuda a concretizar esse encontro e vovô João se encarrega de contar histórias, em torno do Baobá, a árvore da vida.
A autora construiu esse texto em primeira pessoa para que a artista multidisciplinar Raquel Trindade, um dos grandes símbolos da cultura brasileira, pudesse contar da sua vida e de seu legado. Guardiã de saberes ancestrais, Raquel honrou os pais, Solano Trindade e Maria Margarida Trindade, e deixou ela também um tesouro para as futuras gerações.
Os aspectos sagrados do cuidar e ser cuidado, ver e ser visto, compreender e ser compreendido, afetar e ser afetado.
Com texto cheio de surpresas e ilustrações que fortalecem uma identidade positiva das crianças negras, o livro propõe outros olhares sobre os contos de fadas. Um olhar pautado na liberdade das crianças negras e o direito de viver a realeza afro-brasileira.
Além de apresentar para as novas gerações os quilombos como riqueza cultural, o livro acompanha uma cantiga para embalar o ritmo da leitura e fornecer para o imaginário infantil, por meio da brincadeira, o repertório de uma singular região brasileira.
“Em fevereiro, minha casa se transforma”, conta o menino protagonista desta história. A partir das suas descobertas, acompanhamos os sabores, os cheiros e as cores que transformam sua casa e tomam as ruas da Bahia durante a apresentação do bloco Filhos de Gandhy.
Uma novela infantojuvenil sobre afeto que atravessa três gerações e costura em cores, cheiros e memórias as tradições de outros tempos, quando a infância era vivida no terreiro, lugar de brincadeira e alumbramento.
Com as características, cores e objetos específicos de 10 Orixás apresentados em texto e imagem, esse livro pretende divulgar a rica mitologia afro-brasileira às crianças, conhecimento que a autora se ressente em não ter tido acesso na infância.
Esta é a história de uma irmã serena, que cuida da caçula, curiosa. Pela janela, elas observam os ciclos da natureza e refletem sobre como tudo se transforma: a matéria, a memória, o fim. Até que uma delas “saiu do corpo. Virou espírito, e sua matéria se decompôs em cinzas que espalhamos pelos mares de Itaparica”. Para acompanhar essa narrativa lírica e poética da cantora e compositora Anelis Assumpção, as ilustrações da artista visual Aline Bispo combinam diferentes técnicas, como pintura e colagem, para traduzir em imagens o universo de afeto, descobertas e encantamentos das duas irmãs.
Assim como está implícito na exposição, experimentar esses valores não é algo linear também na literatura para a infância. Em “Karingana”, as obras se relacionam com as instalações artísticas, que se relacionam com as audiodescrições e os textos explicativos. E no fim – ou no começo – os visitantes podem conhecer e mergulhar em todos os livros expostos, que estão disponíveis na biblioteca do Sesc Bom Retiro.
“Esses valores são a forma como as pessoas vindas das diásporas africanas se organizam socialmente”, explica Luz. “Elas foram sequestradas para serem escravizadas e trouxeram consigo suas memórias. Tem algo em comum que ficou. É o que chamamos de valores civilizatórios afro-brasileiros.” O termo foi cunhado pela educadora e pesquisadora Azoilda Loretto da Trindade, que se dedicou à construção de uma educação antirracista, capaz de abraçar todas as singularidades.
“Foram esses valores civilizatórios afro-brasileiros a matriz para selecionar as obras que integram a exposição”, conta Ana Luisa Sirota, gerente adjunta do Sesc Bom Retiro. Além disso, “foram consideradas as diversas infâncias, representadas por diferentes técnicas de ilustrar, bem como ambientes e elementos significativos de cotidianos afro-referenciados”.
Azoilda Loretto da Trindade é considerada uma intelectual dos afetos. Para ela, a expressão “valores civilizatórios afro-brasileiros” destaca “a África, na sua diversidade, e que os africanos e africanas trazidos ou vindos para o Brasil e seus e suas descendentes brasileiras implantaram, marcaram, instituíram valores civilizatórios neste país”. Portanto, são “valores inscritos na nossa memória, no nosso modo de ser, na nossa música, na nossa literatura, na nossa ciência, arquitetura, gastronomia, religião, na nossa pele, no nosso coração.”
De acordo com ela, é preciso praticar a educação antirracista e combater o racismo “cotidiariamente”. Com o projeto educativo “A cor da cultura”, por exemplo, teve atuação fundamental no contexto da lei 10.639/03, que incluiu nos currículos do ensino fundamental e médio a obrigatoriedade da história e cultura afro-brasileira.
“A invisibilidade é a morte em vida” – Azoilda Loretto da Trindade
Assim, ao partilhar obras que carregam os valores que Trindade defendeu, “Karingana” propõe um novo olhar para a infância negra nos livros infantis, geralmente invisibilizada ou submetida a uma ótica desfavorável. Como diz Míghian Danae, uma das coordenadoras da rede Ibeji, que pesquisa relações raciais e primeira infância, crianças negras devem ser representadas “nos livros em que o maravilhoso, o mundo mágico, seja permeado por outros grupos raciais que não apenas o grupo branco, e também naqueles que falam de atividades comuns como brincar, conversar, ter amigos, ir para escola”.
“As histórias da literatura me deixavam muito curioso, mas tinham poucas ou quase nenhuma que falava sobre o meu mundo ali no Norte, ou falasse sobre mim, um menino negro“, conta o artista-educador Josias Marinho, no texto “Um quintal rabiscado”, parte do catálogo da exposição. Ele, que tem artes de três dos seus livros (“Benedito”, “O príncipe da beira” e “Cafuné”) expostas em “Karingana”, nasceu e cresceu na região quilombola Forte Príncipe da Beira, em Rondônia.
“Na época, o que mais se aproximava desse contexto eram as histórias classificadas como folclóricas e que me deixavam em uma situação de vergonha, de não querer ser aquilo, de querer ser o protagonista, o ‘mocinho’”, completa Marinho. “Hoje, minhas produções buscam contribuir com o preenchimento dessa lacuna sobre os negros em uma perspectiva positiva na literatura brasileira.”
Onde? Sesc Bom Retiro. Alameda Nothmann, 185, Campos Elíseos, São Paulo/SP
Quando? Terça a domingo, até 28 de janeiro de 2024
Horários? Terça a sexta, 9h às 20h (exceto 21/11) | Sábados, 10h às 20h | Domingos e feriados, 10h às 18h
Quanto? Grátis
Estão disponíveis recursos de acessibilidade: audiodescrição, recursos táteis e Libras.
* Algumas das resenhas dos livros foram produzidas a partir dos conteúdos disponibilizados pelas próprias editoras.
Ao destacar diferentes formas de ser e estar no mundo, a exposição busca contribuir para uma educação antirracista pela arte, apresentando caminhos para o diálogo sobre as identidades que constituem os povos africanos em um dos países com mais pessoas negras fora da África: 56% da população brasileira se autodeclara preta ou parda, segundo o IBGE.