As crianças são mais felizes em países mais felizes?

Com base em dados internacionais, crianças de Heliópolis contaram o que é preciso para ser feliz na infância e criaram seus próprios índices de felicidade

Camila Salmazio Publicado em 03.09.2024
Foto de duas crianças se abraçando e usando a mesma roupa de banho numa praia
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Resumo

Depois de analisar o Relatório mundial da felicidade, da ONU, a reportagem do Lunetas foi até a comunidade de Heliópolis conversar com crianças sobre o que entendem como felicidade. Para elas, ser feliz na infância pode ser mais simples do que os indicadores mostram.

Ser feliz é como comer doces depois de um passeio no parque, na perspectiva da minha filha Madalena, 5. A resposta simples que ela dá para uma pergunta um tanto complexa como “o que é ser feliz?” passou distante dos critérios que a ONU (Organização das Nações Unidas) usa para elencar os países mais felizes do mundo.

De acordo com o Relatório mundial da felicidade 2024, para que um país seja considerado no ranking, precisa ter uma boa expectativa de vida, alta sensação de bem-estar entre a população e, principalmente, bons índices de economia. Assim, o instrumento ajuda a pensar políticas públicas e avaliar metas de crescimento econômico em busca de mais qualidade de vida.

É claro que para que uma criança desfrute de um passeio no parque é necessário que o governo tenha investido em infraestrutura e segurança, por exemplo. Além disso, ela precisa da companhia de um adulto que tenha tempo disponível para levá-la – e isso diz muito sobre economia e bem-estar da população. Mas será que a felicidade para uma criança fica restrita ao que os índices podem mensurar? 

A reportagem do Lunetas foi então até a comunidade de Heliópolis, na zona sul de São Paulo, para conversar com crianças sobre felicidade e saber quais critérios elas usariam se o índice da ONU fosse criado por elas.

O olhar da infância para um índice de felicidade

Ser feliz “é conversar com um amigo e curtir a vida”, diz Lorena, 9, que adora ir ao parque com as primas. 

Já para Vitória Gabriele, 8, a felicidade é “uma positividade que vem quando você faz algo para o outro”. Ela, que pretende ser narradora de partidas de futebol, acrescenta um exemplo: “Eu dou um brinquedo para um amigo e ele fica feliz. É como um carinho.”

A psicóloga Miriam Raquel Wachholz Strelhow, pós-doutora em saúde e bem-estar na infância e adolescência explica que, para entender a própria concepção de felicidade, “a criança vai partir muito da vivência dela e o que é importante para se sentir bem”.

É como uma festa de aniversário, na avaliação de Cauã, 10. “Você se sente confortável e está com quem gosta.”

Os meninos entrevistados numa quadra de esporte a céu aberto dentro de uma das maiores favelas do país, com cerca de 200 mil habitantes, se indignaram ao saber que, para os adultos que decidem sobre o índice de felicidade, um item a se considerar é ter acesso a dinheiro.

“Não precisa”, defende Lorena, “a gente só precisa de alimentação, banho, casa, família e brinquedo”. 

“Tem um ditado: o dinheiro não compra felicidade”, lembra Cauã. “Não é só porque o país tem muito dinheiro que ele é mais feliz”, reflete o estudante.

Por isso, se não der pra comprar os lançamentos que passam na propaganda da TV, não tem problema, segundo as crianças. “A gente pode construir com o que tem em casa. Eu já fiz uma boneca de papel”, diz Ester, 7.

“Às vezes a gente ganha de doação”, conta Raiane, 10. “Os adultos esqueceram como faz pra improvisar”, critica.

De fato, ser uma criança na Finlândia, primeira colocada no relatório da ONU, não significa, necessariamente, ser mais feliz do que uma criança brasileira, que está na posição 27 do ranking atualmente. É o que explica o professor de psicologia positiva da PUCRS Gustavo Arns, um dos idealizadores do Congresso Internacional de Felicidade.

“Existem fatores para a nossa felicidade que são culturais e que, portanto, são diferentes”, conta. “O afeto, o abraço é algo importante para nós brasileiros, mas no Japão, por exemplo, eles se cumprimentam a distância. O índice, na verdade, ajuda a embasar políticas públicas.” Arns ainda acrescenta que as crianças não são diretamente ouvidas para a elaboração do relatório anual.

O Relatório mundial da felicidade de 2024 mostrou que a satisfação com a vida entre jovens de 10 a 15 anos vem diminuindo desde 2019, especialmente entre as meninas. A pandemia de covid-19 foi o principal fator desencadeador desses resultados.

Aprender a ser feliz

Um fator determinante na sensação de bem-estar nessa fase da vida é a saúde mental. De acordo com dados do IBGE de 2020, 8 milhões de crianças e adolescentes apresentam ao menos um transtorno mental diagnosticado. 

“É uma geração que está muito mergulhada nas redes sociais. E é justamente no início da adolescência, por volta dos 11, 12 anos, que os índices de bem-estar e felicidade caem”, diz Miriam Raquel Wachholz Strelhow.

A psicóloga explica que as redes sociais potencializam a comparação e por isso são tão nocivas nessa etapa da vida. “A felicidade e o bem-estar também partem de uma questão que é a comparação. Tem a minha vida, aquilo que eu vivo no meu dia a dia e aquilo que eu sei que as outras pessoas estão vivendo e posso desejar.”

Para construir essa percepção de maneira saudável e positiva na infância, Gustavo Arns enfatiza a importância de bons exemplos dos adultos que participam do convívio da criança. 

“Como é que esses adultos estão, em primeiro lugar, cuidando da sua felicidade ou seja, da sua saúde física, emocional, intelectual e espiritual? Porque quanto melhor o cuidador estiver, melhores as possibilidades de auxiliar de maneira saudável aqueles que estão à sua volta.”

Fatores que contribuem para um bom índice de felicidade

Um estudo de 2016 realizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul com 200 crianças de 5 a 12 anos de escolas públicas e privadas de Porto Alegre mostrou que a maioria se considera feliz e a maioria atribui o sentimento principalmente à família e ao lazer.

O que é preciso pra ser feliz?

Depois de ouvir das crianças uma série de momentos especiais em que elas foram felizes, como o dia de passeio no parque aquático, ou de um piquenique em família, desafiei os meninos e as meninas a criarem o nosso próprio índice de felicidade a partir da pergunta: o que é preciso para uma criança ser feliz? 

“Precisa ter casa em primeiro lugar”, opina Cauã, seguido pelas demais crianças que estavam à nossa volta. Desde 1972, quando foi criada, Heliópolis enfrenta desafios para a regularização de moradias e urbanização da área que compreende 2 milhões de metros quadrados.

“Também precisa ter estudo”, opina Raiane. Ela aproveita para dar como exemplo o Centro para Crianças e Adolescentes (CCA) onde são atendidos no contraturno da escola regular enquanto os pais trabalham.

“Com certeza precisa ter uma boneca”, interrompe Lorena. Logo, ela amplia sua opção para ter brinquedos em geral. “E, por último, a gente precisa comer, né?”, finaliza Vitória com o apoio de todos.

E em caso de ainda assim a pessoa continuar infeliz, Ester tem uma receita infalível para se sentir melhor. “Você pode pesquisar na internet como fazer massinha pra brincar”, aconselha, antes de correr para jogar bola com os amigos. 

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