Histórias de tradição oral ajudam crianças que crescem em meio à desinformação e ao vício em telas a ampliar a capacidade de leitura de mundo
Contar e ouvir histórias é uma tradição que ajuda a enfrentar os desafios mais atuais do ambiente virtual, como a desinformação e os discursos de ódio, além de contribuírem para a formação de crianças mais conscientes e conectadas com seus sentimentos.
A imagem de alguém, ao redor de uma fogueira, contando “causos” é recorrente no imaginário popular. Contar e ouvir histórias nos transporta para um tempo distinto do que vivemos hoje. O tempo que ali se estabelece não é linear. Diferente do mundo acelerado em que vivemos, ele nos convida à contemplação e à reflexão, nos tira do “aqui e agora”. Isto é indispensável para o desenvolvimento integral da criança e sua inserção sociocultural – e também é importante quando falamos de educação midiática.
Quando os perigos do mundo real se somam aos do virtual, podemos resgatar o hábito ancestral de preparar as crianças para os desafios da vida por meio da contação de histórias. Contos de fadas e de tradição oral, fábulas e provérbios ajudam a transmitir lições importantes de uma maneira simbólica e lúdica para as novas gerações. Nesse sentido, tais narrativas podem ser aliadas da educação socioemocional, contribuindo para a formação de indivíduos mais conscientes e conectados com suas reais necessidades.
Essa abordagem simples e acessível de questões como o medo, a raiva, a solidão, a morte apresenta às crianças maneiras diversas de enfrentar situações difíceis. Essas histórias, que trabalham a noção de pertencimento, autoestima e inspiram o autoconhecimento e a autoaceitação, apresentam recursos fundamentais para o processo de amadurecimento.
“Quando criança, os contos de fadas me preparavam para um dos momentos mais difíceis, a hora de dormir” – Marina Colasanti
A história da Chapeuzinho Vermelho pode ensinar às crianças a percorrerem apenas os canais de YouTube, jogos e sites autorizados pelos pais. Do contrário, estarão sob o risco de encontrar lobos maus pelo caminho e colocar a vida da vovozinha ou outros familiares em perigo.
Quando é tão fácil encontrar influenciadores de beleza, cheios de filtros, com acesso a inúmeras tribos ditando padrões de beleza irreais, o conto do Patinho Feio não poderia ser mais atual.
Já a casa cheia de doces, mas que abriga uma bruxa, como em João e Maria, serve como metáfora para as armadilhas on e off-line. E é graças à astúcia, ou melhor, por meio de uma leitura crítica da situação, que os irmãos conseguem se safar das artimanhas da vilã.
“Contos de fadas não dizem às crianças que dragões existem, as crianças já sabem (disso). Contos de fadas dizem que dragões podem ser vencidos” – G.K. Chesterton
Unir educação midiática à contação de histórias permite que, num país onde 96% das crianças brasileiras de 9 a 17 anos acessam a internet todos os dias, haja contato com outras realidades, culturas, experiências e visões de mundo. Isso favorece a compreensão de eventuais conflitos psicológicos.
Além de serem a porta de entrada para o mundo das letras e dos livros, as histórias são fontes de comunicação para os seres humanos. Por isso, devem ser aprendidas e ensinadas.
Por isso, é fundamental propiciar que as crianças tenham contato com as histórias em diversos suportes e gêneros, de modo que possam reconhecer semelhanças e diferenças entre elas.
Ler um livro é diferente de ouvir um conto narrado por uma pessoa em um podcast ou assistir a um vídeo no YouTube. Ouvir uma história em formato de cordel, poesia ou mesmo canção, proporciona uma experiência diferente para quem frui. Quanto mais experiências diversas a que uma criança estiver exposta, mais repertório de leitura de mundo ela terá.
Essa leitura de mundo é exatamente o que Paulo Freire chamou de “a competência das competências”. É essa habilidade que fará a diferença na formação de crianças e jovens que estão crescendo em meio à desinformação, ao discurso de ódio, ao vício em telas e outras questões trazidas pelo uso excessivo das mídias digitais.
Se contamos histórias para dar sentido à nossa experiência, para aplacar os nossos medos e para experimentar a sensação de eternidade, as crianças precisam acessar histórias para ler, ver, ouvir e, especialmente, contar. A construção das narrativas que nos constituem começa com esse exercício cotidiano e extremamente prazeroso e poderoso. Afinal, quem conta um conto, compreende vários pontos!
* Clara Becker é jornalista especializada em combate à desinformação e cofundadora do Redes Cordiais. É também formada em Letras pela UFRJ e coautora dos livros “The Football Crónicas” e “Los Malos”. Januária Cristina Alves é mestre em Comunicação Social pela ECA/USP, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis e duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira. É colunista do Nexo Jornal e membro da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.
** Este texto é de exclusiva responsabilidade dos autores e não reflete, necessariamente, a opinião do Lunetas.
A nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) prevê a educação literária das crianças desde a educação infantil, porque entende ser “importante promover experiências nas quais as crianças possam falar e ouvir, potencializando sua participação na cultura oral, pois é na escuta de histórias, na participação em conversas, nas descrições, nas narrativas elaboradas individualmente ou em grupo e nas implicações com as múltiplas linguagens que a criança se constitui ativamente como sujeito singular e pertencente a um grupo social.”