Livro do psicólogo Jonathan Haidt mostra como o excesso de internet altera o desenvolvimento social e neurológico das crianças, e alerta aos riscos
Privação social e de sono, atenção fragmentada e vício são alguns dos prejuízos causados pelo excesso de celular na vida dos jovens. O psicólogo Jonathan Haidt discute como eles estão por trás de uma epidemia de transtornos mentais, no livro ‘A geração ansiosa’.
A reconfiguração de uma infância com tempo de brincar livre para uma infância pautada em celulares gerou uma série de prejuízos para o cérebro de crianças e adolescentes, que podem explicar a piora da saúde mental nos últimos anos. Isso é o que defende o psicólogo Jonathan Haidt, no livro “A geração ansiosa: como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais” (Companhia das Letras).
Segundo o autor, isolamento social, privação do sono, atenção fragmentada e vício são consequências drásticas dessa hiperconexão. “Cada um desses prejuízos é fundamental, porque afeta o desenvolvimento de múltiplas habilidades sociais, emocionais e cognitivas”, explica.
Embora a atração por telas seja evidente desde o uso da televisão, Haidt aponta para uma mudança importante. Esse fator surge quando celulares mais básicos se transformam em smartphones com internet banda larga e aplicativos de redes sociais. Isso porque a possibilidade de transporte do aparelho para qualquer lugar permitiu um tempo ilimitado de conexão, mas limitado de convivência “cara a cara”.
“A Grande Reconfiguração devastou a vida social da geração Z ao conectá-la com o mundo todo e desconectá-la das pessoas ao seu redor” – Jonathan Haidt
Para Maria Mello, coordenadora do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, o ponto de Haidt não é relacionar a tecnologia com os transtornos mentais. Mas, por outro lado, questionar “o modelo de negócios de produtos e serviços que concentram o mercado da internet hoje, que fomenta um uso passivo e acrítico, voltado ao consumo e extremamente viciante”.
“Essas empresas desenvolveram aplicativos viciantes que abriram caminhos muito profundos nos cérebros dos jovens” – Jonathan Haidt
Haidt chama a atenção para a capacidade que os desenvolvedores de aplicativos têm de abrir novos caminhos no cérebro. Ou seja, quando utilizam técnicas avançadas para transformar crianças em usuários assíduos de seus produtos. São essas mesmas técnicas aplicadas em ratos de laboratório para treiná-los a fazer o que se espera deles.
“Quando demos smartphones a crianças e adolescentes no início da década de 2010, também demos às empresas a capacidade de aplicar neles esquemas de reforço de razão variável o dia todo, treinando-os como se fossem ratos de laboratório, nos anos mais sensíveis da reconfiguração cerebral”, lamenta.
O psicólogo Jonathan Haidt investiga nesse livro o colapso da saúde mental entre os jovens e as consequências drásticas de uma vida hiperconectada e sem supervisão no ambiente digital. Além de demonstrar como a hiperconectividade alterou o desenvolvimento social e neurológico dos jovens, a obra mostra o que podemos fazer na prática para reverter essa situação e evitar danos psicológicos ainda mais profundos.
“Brincar é a forma que a natureza criou para que a criança se conheça, conheça e entenda o mundo, e se expresse nele”, diz o pediatra Daniel Becker. Ou seja, crianças precisam do contato físico, joelho ralado, desentendimentos e decepções. “O ser humano só se desenvolve em interação social”, reforça.
E essa interação é cara a cara, não mediada por telas. Nesse sentido, não se pode considerar consumir conteúdos em um feed infinito, curtir, comentar ou falar por redes sociais como formas saudáveis de interação. “Todas as habilidades para a vida adulta se desenvolvem brincando”, enfatiza Becker. É o tempo excessivo nas telas que impacta o convívio social.
A pesquisa American Time Use Survey aponta que a média de tempo que os adolescentes passam com seus amigos caiu vertiginosamente quando começou a transição para a infância baseada em celular. Em 2010, eram cerca de 130 minutos. Em 2019, pouco mais de 60 minutos.
“O brincar livre já vem decaindo há algumas décadas e agora está sendo substituído por horas e horas de conteúdo inadequado da internet”, observa Becker. Consequentemente, isso deve “afetar o desenvolvimento das crianças a curto, médio e longo prazo”, alerta.
Em “A geração ansiosa”, Haidt traz pesquisas que associam o uso elevado de redes sociais ao sono ruim e à piora da saúde mental. Os efeitos de longo prazo incluem depressão, ansiedade, irritabilidade, déficits cognitivos, aprendizagem comprometida, notas mais baixas e mais acidentes, conforme indica o estudo TikTok: adolescência conectada e cognição sobrecarregada.
“O uso de telas à noite deixa a atividade cerebral acelerada, estimula e diminui o sistema límbico, que atua no ciclo de sono”, afirma Luci Pfeiffer, pediatra e psicanalista, membro do grupo de saúde digital da Sociedade Brasileira de Pediatria.
Ela explica que, ao se desligarem das telas, as pessoas têm dificuldade em pegar no sono ou, então, quando adormecem, não alcançam o sono profundo, aquele que proporciona o descanso.
A médica alerta, ainda, para outro efeito colateral do uso excessivo de telas à noite: a medicalização ou aquilo que ela chama de “violência química”. Assim, o adolescente “vai para o colégio e não aprende. O problema passa, então, a ser encarado como déficit de atenção, entra outra medicação”.
“Isso leva a uma cadeia medicamentosa que pode provocar dependência, sendo que o problema não era insônia, e sim uso errado de telas”, explica Luci Pfeiffer.
Para Becker, é necessário que as famílias controlem a criança ou o adolescente que dorme com o seu celular ou tablet perto da cama. Isso porque eles se acostumam a acordar cedo para acessar as telas antes da escola. “Já vi casos de adolescentes que acordam de madrugada para jogar e até cyberbullying envolvendo crianças de nove anos em grupo de mensagens de madrugada sem que os pais soubessem”, alerta Becker.
E se o adolescente agora tende a dormir apenas sete horas por noite, sem conseguir repor o sono, durante o dia passa a receber 11 notificações por hora ou uma a cada cinco minutos. O psicólogo alerta que, diante desse fluxo de interrupções, a capacidade de pensar é prejudicada. Portanto, isso pode deixar marcas permanentes no cérebro, que se reconfigura com rapidez.
“Se para adultos já é difícil manter a atenção, para crianças e adolescentes é praticamente impossível, pois são pessoas em peculiar estágio do seu desenvolvimento biopsicossocial. Seu córtex pré-frontal, a parte do cérebro responsável pela tomada de decisões e controle de impulsos, ainda está em formação. Portanto, eles estão muito mais suscetíveis às dinâmicas negativas das redes sociais”, afirma Mello.
E tudo isso é muito estratégico para as empresas. Conforme aponta a pesquisa TIC Kids online, mais de 80% do público entre 9 e 17 anos mantêm perfis on-line. “Essas plataformas são desenhadas para lucrar via incentivo a um uso mais compulsivo e passivo, mantendo a atenção por meio de notificações, vídeos curtos, recomendação personalizada e estímulos para uma conexão constante”, destaca.
Para a geração hiperconectada, o celular é uma fonte contínua de dopamina, um neurotransmissor crucial no cérebro, frequentemente chamado de “hormônio do prazer”. Apesar disso, Haidt explica que a liberação de dopamina produz prazer, mas não desencadeia uma sensação de satisfação. Isso significa que ela deixa a pessoa querendo mais daquilo que aciona a liberação desse hormônio.
O prazer, na verdade, está em buscar mais, como nos caça-níqueis: não é simples ganhar dinheiro e parar. O mesmo acontece com jogos on-line, redes sociais, sites de compras e outros aplicativos de alto estímulo.
“Não é radical dizer que as plataformas de redes sociais e jogos não querem crianças engajadas, e sim viciadas”, alerta Luci Pfeiffer.
Mas onde e como as crianças aprendem a se relacionar com as telas? Em 2016,a campanha “Conecte-se ao que importa” trazia frases como “mãe, qual a senha para falar com você?”. “Nós lançamos essa campanha assustados com o que estava acontecendo. Não foi nem terceirização do cuidar, porque ninguém estava cuidando dessas crianças”, critica Pfeiffer, ao se referir a pais e mães que, viciados em celular, negligenciam os filhos.
Para ela, os conteúdos que chegam às crianças preenchem a falta de momentos compartilhados em família. “O mundo digital encontrou espaço e o preencheu com o que quis, que comercialmente é o de maior lucro: conteúdos imorais, que não acrescentam nada e são viciantes”, diz.
Por isso, segundo Daniel Becker, “não basta só controlar o tempo de tela, é preciso moderar o conteúdo” consumido pelas crianças. Para ele, o problema é o acesso não controlado a conteúdos misóginos, discursos nazistas, jogos, apostas e consumo precoce de pornografia. “Isso pode levar crianças a uma introdução distorcida à sexualidade, o que é extremamente perigoso”, alerta.
Diante disso, a sugestão é que as famílias busquem conteúdos educativos e interessantes na internet como tutoriais de ciências, aulas para aprender instrumentos e canais de literatura e contadores de histórias.
O Lunetas reuniu recomendações dos especialistas ouvidos nesta reportagem para tornar o uso de telas mais saudável para a infância.
Presença digital da infância e adolescência no Brasil
Dados da pesquisa TIC Kids online 2024, produzida pelo Comitê Gestor da Internet