Apesar da tradição oral das línguas indígenas, registros escritos desses povos têm sido fundamentais para a preservação do patrimônio cultural
Como alfabetizar uma criança indígena quando os registros das línguas nativas são predominantemente orais? Professores e pesquisadores comentam o processo de documentação a partir de materiais didáticos e literatura, e o papel das escolas na preservação da memória dos p
Para preservar a língua materna de seus povos, a Escola Estadual Tapi Itãwa, no nordeste do Mato Grosso, desenvolveu, nas palavras do professor Koria Tapirapé, uma verdadeira “política da defesa da língua apyãwa”. Com quase 300 alunos indígenas e um corpo docente composto integralmente por professores indígenas, o intuito da escola é resguardar esse patrimônio cultural. “Sabemos que muitos povos indígenas perderam sua língua, seja por guerras ou processos de colonização”, afirma o coordenador pedagógico, Nivaldo Tapirapé.
O primeiro professor indígena da Universidade Federal de Goiás, Gilson Tapirapé, 40, recorda que, quando conseguiu escrever na própria língua, sentiu “uma grande alegria”. Com o direito ao ensino bilíngue (a língua de seu povo e a língua portuguesa) previsto por lei a toda criança indígena, ele fala com orgulho de sua língua materna, com a qual se comunica diariamente. “O português vem depois.”
Sobre o seu processo de alfabetização, Gilson conta que, inicialmente, foi um choque frequentar a escola, “porque a criança indígena está acostumada com uma vida muito livre, baseada na caça, na pesca, na colheita”. Então, de uma hora para outra, “ela é obrigada a ficar sete horas por dia sentada em uma sala de aula e ouvir um professor falando”.
Mas, quando seu professor mudou o método de ensino, Gilson, que tinha dificuldades com a língua portuguesa, conseguiu, enfim, se expressar utilizando a língua de seu povo. “Ele levava a gente para o rio, e aí nós falávamos, por exemplo, da história dos peixes, dos vivos e daqueles que já tinham sido extintos”, detalha.
Foi assim que Nivaldo Tapirapé também pôde conhecer a história do seu povo. “O livro com o qual eu fui alfabetizado, e que é utilizado até hoje, conta a nossa história, na nossa língua”. Dos rituais às guerras, o material foi produzido pelos próprios indígenas. Ele também auxiliou a formação da primeira turma de supletivo da escola Tapi Itãwa. “Dá orgulho saber que essa obra ajuda até hoje na alfabetização de crianças daqui”, diz.
Contudo, segundo ele, é essencial formar educadores preocupados, de fato, com a educação dessas populações. Para suprir essa demanda, algumas universidades públicas brasileiras possuem um curso de licenciatura intercultural. A proposta é formar educadores especificamente para escolas indígenas.
Assim, é comum os próprios professores produzirem o que seria equivalente ao “livro didático”. Esse material se torna, então, uma alternativa ao material que chega às escolas escrito em língua portuguesa. Dessa forma, podem preservar as especificidades da educação indígena.
Koria Tapirapé, professor da Tapi Itãwa, também fala sobre as chamadas “convenções linguísticas”, que são reuniões do povoado para definir questões como o uso e a gramática da língua apyãwa. Isso acontece, por exemplo, para a criação de palavras que representem novidades como “celular” e “internet”. “Evitamos ao máximo usar palavras de fora”, explica.
Além disso, como afirma Gilson Tapirapé, a educação das crianças indígenas precisa estar associada diretamente com as particularidades do território e com a vivência dos povos indígenas. Por isso, muitas vezes, a produção do material acompanha uma entrevista com um indígena mais velho, que ocupa a posição de “mestre”. Para ele, materiais produzidos nas línguas nativas e escritos por indígenas garantem mais autonomia aos povos e aumenta o interesse das crianças pela alfabetização.
No Brasil, mais de 200 povos indígenas falam mais de 150 línguas diferentes. Por isso, Gilson considera um erro falar em apenas uma literatura indígena.
Atualmente, os responsáveis pelo acervo dessa produção são as próprias escolas indígenas – 3.597, segundo o último Censo Escolar, de 2023. No caso da Tapi Itãwa, há uma biblioteca, para estudantes, educadores e visitantes.
No entanto, o coordenador Nivaldo Tapirapé acredita que faltam políticas para o incentivo, a preservação e a difusão da literatura produzida pelos povos indígenas. Ele relata que seu primeiro contato foi com a obra de Daniel Munduruku e que, mesmo assim, leu o livro em língua portuguesa.
De acordo com Liliam Abram dos Santos, doutora em linguística aplicada e pesquisadora do Instituto da Linguagem, da Unicamp, “os indígenas estão cada vez mais interessados na documentação”. Ela também percebe um movimento claro para valorizar e proteger as línguas indígenas mesmo que cada instituição tenha seu próprio projeto político pedagógico. Mesmo assim, ela cita que a legislação reconhece as especificidades e garante essa autonomia aos sistemas escolares diversos nas comunidades.
Liliam destaca, nesse sentido, as experiências com idiomas falados nas fronteiras brasileiras, em diferentes estágios de documentação: da família Yanomami (Brasil e Venezuela), da língua Kaxinauá (Brasil e Peru), da língua Wayana (Brasil e Guiana Francesa) e o Guarani (Brasil, Argentina, Paraguai e Bolívia).
A Unesco definiu o período entre 2022 e 2032 como a década internacional da defesa das línguas indígenas. Segundo Liliam, algumas iniciativas são importantes para a preservação desse tipo de material. Ela cita o Museu Nacional dos Povos Indígenas (Museu do Índio) da Funai, no Rio de Janeiro, que trabalha com a documentação de saberes e línguas indígenas. Também existe um Centro de Documentação de Línguas Indígenas, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Além disso, programas internacionais visam a criação de acervos digitais permanentes de línguas do mundo inteiro, entre elas as indígenas, como o DOBES (Documentação de Línguas Ameaçadas, em português).
Para a valorização da produção dos povos indígenas, é preciso levar em consideração elementos culturais fundamentais, como a tradição oral. Nesse sentido, Nivaldo Tapirapé ressalta a importância das rodas de leitura e da contação de histórias nas escolas indígenas. “As crianças se sentam em roda e cada estudante lê um pouco.”
Além disso, o coordenador defende o registro escrito para que as histórias e tradições dos povos indígenas “não caiam no esquecimento”. Embora ainda mantenham a relação com a oralidade, muitas das atividades coletivas já são registradas pelos estudantes das escolas indígenas.
Está previsto, por exemplo, que eles produzam textos, em sua língua materna, contando como foi a pandemia de covid-19. Ou que contem o que viram, “com suas próprias palavras”, durante as festas típicas e nos rituais de iniciação, quando os meninos da aldeia fazem sua transição à idade adulta.
Políticas de incentivo buscam apoiar a produção de materiais em línguas indígenas. É o caso do Programa Saberes Indígenas nas Escolas, por exemplo, que foi desenvolvido com o apoio de universidades públicas, como a Unemat, do Mato Grosso do Sul, e a Universidade Federal de Goiás.