Libras e português: por uma educação bilíngue em escola regular

Uma escola inclusiva e bilíngue permite que estudantes ouvintes e surdos percebam que não existe uma única forma de ser, estar e se comunicar no mundo

Rosângela Machado Publicado em 16.06.2021
Uma menina de cabelos pretos e lisos, usando máscara de proteção respiratória, está sentada em uma carteira em uma sala de aula, se comunicando por Libras com outra pessoa à sua frente (só aparece as mãos)
OUVIR

Resumo

Rosângela Machado traz uma reflexão sobre a importância da escola regular, inclusiva e bilíngue, que contempla Libras e português, onde estudantes ouvintes e não ouvintes podem compartilhar experiências diversas de comunicação.

Quero começar esta reflexão falando sobre a escola regular (comum), esta que vem sofrendo tantas condenações e acusações, numa articulação de desprezo daqueles que não reconhecem sua potência como lugar de debate, reflexão, diferenças e inclusão. 

A inclusão escolar leva para dentro da escola regular quem não tinha direito a esse bem comum: aqueles que eram deixados de fora do contrato social pois não atendiam ao padrão paradigmático da espécie humana. 

Nós lutamos muito pela escola inclusiva e tudo o que a faz existir é justamente o fato de reunir pessoas, em suas diferenças e multiplicidades.

A escola não pode ser a normalização de corpos, de linguagens, de funcionamento cognitivo.  É preciso combater essas práticas, e não destruir a escola.

O movimento de educação inclusiva não abre mão da escola regular: nada a substitui, nem a casa, nem a cultura, nem aquela escola especializada que agrupa as pessoas em função de um único atributo. Queremos promover que toda criança e adolescente, com e sem deficiência, tenham a oportunidade de se tornar estudante pela experiência da escola regular. 

Nenhum estudante a menos é o nosso maior propósito.

Por isso, trago reflexões da experiência com estudantes surdos, como gestora e professora na Rede Municipal de Ensino de Florianópolis (SC), pioneira na implementação do Atendimento Educacional Especializado (AEE), com a inclusão de pessoas com deficiência.

Ao unir estudantes ouvintes e não ouvintes, promovemos na escola um espaço de igualdade. Uma igualdade que não significa tornar as pessoas iguais pela busca de capacidades específicas ou de uma linguagem padrão, mas a igualdade onde o mundo é apresentado para todos e onde convidamos todos a analisá-lo e a questioná-lo. Assim, surdos e ouvintes tomam consciência de que não existe uma única forma de ser, estar e se comunicar. 

Como, então, promover experiências linguísticas em escolas só de surdos ou em escolas comuns sem a presença de estudantes surdos? É isso que propõe o Projeto de Lei nº 4909/2020, que pretende incluir o ensino de Língua Brasileira de Sinais (Libras) como primeira língua e o português escrito como segunda língua em instituições de ensino ou classes destinadas exclusivamente à comunidade surda.  É um projeto que não reconhece os benefícios e a potência da escola comum para os estudantes surdos. Tampouco existe um empenho por parte da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis) em concretizar o bilinguismo na escola regular.

Quando pensamos em uma escola ou classe bilíngue para surdos já estamos ferindo os fundamentos e princípios da inclusão escolar, além da inconstitucionalidade, da ilegalidade. A Associação Nacional do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pessoas com Deficiência (Ampid), a Rede-In, entre outras instituições já se manifestaram desfavoráveis ao PL 4909/2020. O Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu o Decreto 10502/2020 que trazia a questão de escolas e classes para surdos. Por que, então, está sendo apresentado esse PL?

Ainda temos muitas dificuldades, mas elas já foram mais intensas como, por exemplo, a falta de profissionais intérpretes qualificados e de professores de Libras. Estamos em outros patamares e precisamos avançar mais ainda, mas não para espaços segregados como escolas especializadas e classes para surdos. 

Faz-se extremamente necessário que não nos coloquemos na posição de condenar a escola, porque ela é uma potência para renovar e recriar o mundo. Não devemos utilizar as dificuldades e falhas no processo (afinal, temos dificuldades e falhas em qualquer instância social), para justificar a retirada dos estudantes surdos ou para justificar que a escola não é necessária, como dizem os integrantes da educação domiciliar, que defendem o abandono de um espaço coletivo, social e público para viver um individualismo. 

Precisamos reconhecer as trocas de experiências entre surdos e ouvintes nas escolas comuns. Um encontro que vai além da língua, mas revela um novo tempo. Uma preocupação com o outro, submetendo-nos juntos à construção de um caminho e cuidando para que esse caminho, com seus erros e acertos, seja feito com atenção.

Assim vamos nos libertando, surdos e ouvintes, de certos mitos como “estudante surdo não escreve bem”, “surdo só se dá bem com surdo”, ou “Libras é a única forma de comunicação de uma pessoa surda”. Vamos nos libertando de todas essas inverdades no convívio – e não na separação – para ampliar nossa liberdade de pensar a escola comum, sem condená-la, mas melhorando-a. Como diz a jornalista Mariana Rosa:  “Mudar a escola, sem mudar de escola”.

A escola regular, bilíngue e inclusiva, com  presença de estudantes surdos, interrompe uma ordem existente de uma única língua, de uma única forma de comunicação, de um único jeito de ser. Interrompe a ordem de que a escola regular é só para alguns.

Assim, a escola bilíngue inclusiva torna-se espaço público dedicado ao estudo do mundo de culturas múltiplas, e não daquele mundo voltado a uma única cultura ou identidade. Tampouco o estudante surdo pode ser reduzido a uma só característica: a sua surdez. A nova geração de surdos e ouvintes está recriando e habitando o mundo de outra forma pelo caminho da inclusão.

A escola celebra o público, o mundo e as relações. Sozinhos nós não produzimos o que produzimos em conjunto.

Nada substitui a convivência que estudantes surdos e estudantes ouvintes têm na escola regular e nada justifica a volta aos espaços segregados.  O lema “Nada sobre nós, sem nós” nasceu de um movimento de pessoas com deficiência que eram excluídas das decisões políticas, e a participação delas é de fundamental importância para que o contrato social inclusivo se efetive. No entanto, recomendo o lema: Tudo sobre nós, com todos nós – porque é responsabilidade de todos, surdos e ouvintes, a construção de uma sociedade e de uma escola inclusivas. 

Faz-se extremamente necessária a suspensão do PL 4909/2020. Sugiro, então, a apresentação de um PL que invista na educação bilíngue na escola regular onde estudantes surdos e ouvintes tenham a oportunidade de experiências linguísticas em um mesmo ambiente: a escola comum. 

Rosângela Machado é Mestre e Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas e pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença da Unicamp. Este texto é uma adaptação da sua exposição realizada na Sessão de Debates Temáticos do Senado Federal, no dia 21 de maio de 2021.

*Este texto é de exclusiva responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Lunetas

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