Para celebrar a data, professores indígenas defendem a desconstrução do imaginário caricato sobre os povos originários e sugerem reflexão contra o preconceito
No Dia dos Povos Indígenas, muitas escolas ainda abordam o tema com estereótipos, apagando a reflexão sobre a cultura e os problemas sociais enfrentados pelos povos originários do país. Se inspirar no que os estudantes indígenas vão fazer nesta data pode ajudar.
A jornada de representantes dos povos originários pela quebra de estereótipos sobre a diversidade indígena e a luta contra o preconceito teve uma vitória, ano passado, com a mudança da denominação “dia do índio”. Agora, por decreto de uma Lei Federal, dia 19 de abril é o Dia dos Povos Indígenas.
Mas ainda existem outras barreiras a vencer, como propor atividades mais adequadas para lembrar a causa indígena em sala de aula. Geralmente, as escolas pedem às crianças para pintar um cocar de papel, passar tinta guache no rosto e dançar em roda, mas caracterizar crianças brancas como indígenas sem o diálogo sobre cultura, cosmologias e diversidade linguística dos povos é uma prática problemática, aponta Edson Kayapó, historiador e professor doutor em Educação do Instituto Federal da Bahia e de Ensino em Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal da Bahia. “Estudantes pintados sem entender adequadamente a que isso se reporta é pegar uma tradição que é real e viva e levar para o campo do folclore ou do exotismo. Isso, definitivamente, não deve ser feito”, pontua.
A abordagem das escolas não indígenas, reproduzidas a cada 19 de abril, muitas vezes ultrapassa a questão da apropriação cultural, como ressalta o professor. “A terminologia da ‘apropriação cultural’ para essas práticas talvez seja muito leve. Por isso, pode ser considerado racismo. É um preconceito vindo de uma cultura etnocida de raízes que tratam com total desrespeito os povos indígenas”.
Com o objetivo de orientar profissionais da educação sobre o combate aos preconceitos e a formação de uma educação antirracista, o caderno “Mulheres: corpos territórios indígenas em resistência”, produzido pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), destaca que a educação escolar silencia e invisibiliza as culturas dos povos indígenas e de outras populações.
“A educação escolar esteve neste lugar de opressora para nossos povos durante séculos, como arma, com propósito da destruição do nosso conhecimento, subalternizando nossa ciência e deslegitimando nossa pedagogia.”
Ao possibilitar a construção autônoma das próprias narrativas dentro de espaços educativos, os povos indígenas se firmam não apenas como parte da história passada, mas também de uma história em curso. “Amansar o giz é ressignificar a escola indígena, refletindo sobre os desafios e a importância da educação territorializada”, destaca o documento.
Embora a Lei 11.645/08 preveja a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas, ainda percebe-se pouco engajamento para refletir a pluralidade e os problemas sociais enfrentados pela população indígena. “A cultura indígena deve estar dentro do currículo das disciplinas de história, arte, geografia, literatura e língua portuguesa. Não deve ser só pontual no dia 19 de abril”, defende Kayapó.
Para ele, a desconstrução do pensamento colonizador, que vicia o olhar para os povos indígenas como uma alegoria, parte da reflexão de que manter as tradições não é estacionar no passado, por isso, é fundamental entender os indígenas como grupos contemporâneos.
“A sociedade brasileira continua cobrando dos povos indígenas características dos tempos coloniais, pensando que todos andam nus e que não têm direito ao uso de tecnologias. Isso não tem cabimento, porque não vivemos no passado; é o passado que vive em nós, no presente.” – Edson Kayapó
No Pará, mais de 2.800 alunos estudam em escolas indígenas que atendem 43 povos, de acordo com a Secretaria de Educação do Estado. Na escola Wyra’awa Inatahya, da Terra Indígena Parakanã, município de Novo Progresso, o 19 de abril vai ser incorporado como um dia de ouvir as pessoas mais velhas da comunidade. O professor e supervisor educacional, Tarana Parakanã, contou ao Lunetas que a proposta das atividades será fazer com que as crianças observem seus familiares no dia a dia e aprendam com eles o artesanato, a pintura corporal e a confecção de cocar.
Além da prática, os alunos também vão participar de rodas de conversas com os mais velhos, que contarão histórias dos Parakanã e suas tradições. “Eles vão para a mata tirar o jenipapo para fazer a tinta e se pintar. Vamos explicar todos os significados de fazer uma veste com a tinta para se proteger do espírito mal e não deixar entrar no corpo. É importante que escutem os mais velhos para se orientarem e saber por que fazem parte da comunidade”, conta o professor.
Para ele, a data serve para lembrar os mais novos que a cultura dos povos originários não pode ser perdida. “Damos aulas para as crianças saberem qual é a nossa cultura. Cantamos na nossa língua e também em português, mas sempre orientando que elas não esqueçam quem são e por que estão aqui”, explica.
Em Santa Luzia do Pará, na escola Félix Tembé, na Terra Indígena Alto Rio Guamá, brincadeiras tradicionais, como cabo de guerra, “briga de galo”, arco e flecha e corrida para apanhar uma jaca do pé, serão orientadas pelos professores e acompanhadas pelas famílias dos alunos e toda a comunidade.
O professor Bewãri Tembé explica que, um dia antes, os homens saem para caçar e pescar o alimento que será servido em um almoço coletivo. Quem fica na aldeia, organiza as competições e faz a pintura corporal nos moradores. “Tudo vai ser tradicional para as crianças aprenderem como a comunidade vive e o que vem da nossa cultura. Do branco, só mesmo o futebol que elas vão brincar”, conta.
Para ele, é necessário que as escolas não indígenas tenham respeito às tradições originárias e trabalhem de maneira mais embasada a temática em sala de aula, deixando de lado atividades que reforçam estereótipos de seu povo. “Aqui, quem usa capacete (cocar) são apenas as lideranças e os pajés. É algo que tem muito significado para nós, assim como a pintura no corpo, que é sagrada. Não pode usar de brincadeira, sem saber o significado”, explica. Para os Tembé, a pintura corporal só é feita sob orientação dos mais velhos. Se a pessoa não tiver autorização do pajé, não pode se pintar.
Ao refletir sobre as práticas das escolas não indígenas para a valorização dos povos originários, o professor argumenta que não é uma tarefa complicada. “Os professores deveriam ter acesso a materiais exclusivos dos povos indígenas, que mostrasse a nossa realidade, e cada escola poderia ter um profissional que estudasse as nossas causas para orientar os outros”.
Os professores entrevistados, Edson Kayapó, Tarana Parakanã e Bewãri Tembé, deixam sugestões de atividades com a temática indígena para professores de todo o país e reforçam a mensagem de que o tema não deve ser trabalhado somente no dia 19 de abril, mas que tenham espaço ao longo do ano como forma de combater o preconceito e ampliar as informações sobre seus direitos e suas culturas.
Leia mais
Comunicar erro
Outras fontes de pesquisa: