Como a morte passeia pela infância?

Brincadeiras, livros e filmes podem ser bons pontos de partida para falar do assunto de forma acolhedora -- e não somente no Dia de Finados

Célia Fernanda Lima Publicado em 01.11.2023
Imagem ilustra matéria de como falar da morte com as crianças neste dia de finados. Uma menina de cabelos cacheados segura uma borboleta na ponta dos dedos.
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Resumo

A finitude atravessa o cotidiano das crianças em brincadeiras, livros, filmes e até no quintal de casa. Conversar sobre o assunto de maneira acolhedora é essencial para que elas entendam a morte como algo natural.

Enfileiradas, crianças se atentam aos comandos: “vivo, morto”. E, então, põem-se a ficar de pé ou agachadas. A brincadeira, comum em festinhas infantis, desperta dúvidas do tipo “por que quem está vivo levanta e quem está morto, não?”. Já a canção “como pode um peixe vivo viver fora da água fria?” traz a reflexão de como se pode continuar sem aquela companhia no dia a dia.

Da ludicidade das brincadeiras e cantigas ao dinamismo de jogos eletrônicos em que é preciso ganhar vidas para evitar o “game over”, a morte é um tema presente no cotidiano das crianças.

De maneira sutil ou fatídica, ela passeia em narrativas de livros, filmes e no olhar mais atento à natureza. A morte está nas folhas secas, na flor que murcha, naquele inseto que as formigas carregam ou no pet que foi “morar no céu”.

Como falar de morte com as crianças

Embora seja um assunto delicado, falar sobre morte com as crianças precisa ser natural e simples. É o que explica Maria Júlia Kovács, professora sênior e membro fundador do Laboratório de Estudos sobre a Morte, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Para ela, deve-se sentir o que a criança sabe e o que ainda não sabe sobre o tema. “A morte, quando nos atinge, traz uma série de sentimentos difíceis. Por isso, é importante que o adulto a explique da maneira que a criança pode atender. Se a questão for mais séria, é bom contar que ela não vai mais ter a presença física daquela pessoa ou de um animalzinho, por exemplo.”

“Essa conversa com as crianças é importante, porque, em algum momento elas vão se deparar com a morte ao longo da vida”, diz Ediane Ribeiro, psicóloga e pós-graduanda em neurociências e comportamento. De todo modo, “a conversa sobre morte é uma conversa sobre emoções”.

Segundo ela, as crianças aprendem a lidar com as próprias emoções por meio da regulação emocional fornecida pelos adultos que convivem com ela. Então, a tarefa dos adultos não é explicar a morte, mas dar espaço para a criança expressar o que sente. “Isso vai aparecer na mudança do comportamento: no sono, tendo mais pesadelos; na falta de apetite ou comendo mais; ou ficando mais irritada, agressiva. É importante que ela seja autorizada a externar o que está sentindo como parte da elaboração do luto.”

A morte está no lúdico e nas memórias

Se a morte é apenas uma ideia que conduz histórias de filmes, livros e jogos, na vida real, algumas crianças se deparam com a finitude às vezes de modo abrupto. “A morte é um conceito abstrato, que, de certa forma, só se torna concreto a partir das primeiras experiências vividas”, diz Kovács. Por isso, a conversa sobre o tema tem várias nuances e depende de cada situação e da idade da criança.

Contudo, tentar abordar de maneira lúdica é sempre um bom caminho, partindo dos exemplos que a psicóloga cita sobre a natureza. “Talvez plantar uma árvore para observar o ciclo ou explicar que um passarinho que morre não vai mais cantar.”

Nesse sentido, para compreender que o fim de uma vida é natural, a ideia da morte também pode aguçar a memória e os sentimentos da criança. “Desenhar ou escrever sobre a pessoa que a criança perdeu é importante para que ela guarde na lembrança os bons momentos e que isso fique como algo que faz bem.”

Para começar a conversa sobre a morte com as crianças, a professora Kovács destaca dois pontos principais:

  • Irreversibilidade: quando uma pessoa morre, ela não vai mais estar presente na vida da criança. Mesmo assim, as recordações permanecem vivas e podem ser ativadas com carinho, por fotos, desenhos e conversas com familiares e amigos sobre os momentos felizes da pessoa que se foi.
  • Universalidade: não tem como fugir da morte. Se todos vamos passar por isso, é bom a criança, aos poucos, entender que é algo natural. Se manifestar medo ou ansiedade, é melhor conversar com calma, acolher e entender como lidar com esses sentimentos.

Quando a morte é causada por violência, a psicóloga Ediane Ribeiro recomenda deixar claro que, embora aconteçam, situações assim não deveriam acontecer. “Crianças muito pequenas ainda não têm condições de simbolizar a morte. Mas, se ela vive em locais de maior violência urbana, pode ser que a morte passe a integrar seu cotidiano muito cedo”, diz.

O que morre (re)começa na natureza

Nas comunidades originárias, morrer também é reviver. As crianças aprendem que tudo o que emana vida, se renova. “Desde cedo aprendemos que existe um começo, um fim e um recomeço. Consideramos que todas as formas de vida – das pessoas, dos rios, das florestas e dos animais – estão fundamentalmente interligadas. Então, quando algo morre, o que deixou de ser, volta a ser. Porque tudo é natureza”, explica Edson Kayapó, professor de Ensino em Relações Étnico-Raciais, da Universidade Federal da Bahia.

Crianças indígenas podem observar a morte sem temor no brincar livre nas florestas; acompanhando os guerreiros nos dias de caça e de pescaria; ou nas rodas de conversa com seus familiares. “Nós somos a representação máxima de nossos antepassados. Eles se foram, mas ainda assim vivem, pois estão no tempo presente em nós. Eles não são uma imagem parada no tempo.”

Entre os rituais dos povos originários, Kayapó lembra que, no antigo ritual ligado às disputas de territórios, o ato de “devorar” o inimigo tinha a ver com respeitar sua força. A morte, então, virava “vida no corpo de quem o devorava”, conta.

Já no Kuarup, ritual fúnebre dos povos do Xingu, a comunidade se reúne um ano após a morte de seus parentes para chorar, fazer oferendas, cantos e danças. “É uma reverência aos antepassados, como um pacto para a continuidade das histórias e memórias.”

Para os yanomami, um corpo sem vida também se renova entre os parentes que ficaram. Eles, portanto, acreditam que o espírito fortalece todo o povo quando as cinzas de quem morre são misturadas a um mingau chamado “ripu”, que é consumido em meio a cantos e danças. Entre o luto e as cosmologias, a morte tem sentido de recomeço para os indígenas que vivem o presente. Seja pela memória ou pelos rituais que buscam perpetuar parte de quem já se foi.

O que crianças de diferentes religiões sabem sobre a morte?

Clara, 12, espírita
“A morte não é o fim, mas, sim, o início. Quando uma pessoa morre, ela pode nascer de novo materializada, como um bebê, ou ir para outro lugar.”

Maria Alice, 9, cristã
“Depois da morte, você vai para um lugar escuro, onde tem uma escada para subir. Daí tem um julgamento para ver se você foi uma pessoa boa e se vai para o céu. É um lugar bonito e Deus vai estar lá.”

Adrielly, 13, candomblecista
“Não existe vida sem a morte. Quando alguém morre, fazemos um ‘axexê’ para a pessoa poder fazer sua passagem.” [No ritual, os candomblecistas ‘desatam’ os laços dos mortos com o mundo dos vivos.]

Como a morte se apresenta nas artes para as crianças

Apesar do desafio em ter conversas honestas sobre a morte com crianças, é importante não tratar o tema como tabu. Especialistas recomendam que meninas e meninos sejam educados para a morte a partir de uma abordagem sensível. Assim, a arte pode ser uma aliada para falar sobre o assunto com as crianças.

A elaboração do luto está presente em “Up: Altas aventuras” (2009). Na animação, a convivência com Russel, um garotinho escoteiro, faz com que o viúvo ranzinza Carl veja a morte da esposa de outra forma. Essa amizade entre gerações reacende sonhos antigos e faz com que Carl perceba que ainda vale viver boas experiências com aqueles que ama.

Em “Viva – A vida é uma festa” (2017), o “Día de los muertos”, comemorado no México, é o fio condutor da jornada de Miguel. De forma leve e divertida, o filme mostra o encontro do garoto com parte de sua família no mundo dos mortos. Em meio às aventuras para conquistar o apoio da família para realizar o sonho de se tornar músico, Miguel compreende a importância de manter viva a memória daqueles que já se foram, principalmente como forma de conhecer a sua própria origem.

“Esse filme é bom para as crianças mais velhas, com noção de família e saudade. Crianças menores, embora possam não entender o sentido, conseguem se divertir com o colorido, as caveirinhas e as músicas. Mas é bom explicar para não ter confusão entre os vivos e os mortos”, diz a psicóloga Maria Júlia Kovács.

Na literatura, livros infantis que falam sobre morte, como “Para onde vamos quando desaparecemos?”, de Isabel Minhós e Bernardo P. Carvalho, podem ajudar a introduzir, de forma poética e divertida, o assunto com as crianças. Neste livro, algumas perguntas ecoam para sempre sem resposta, mas ele também revela que não somos os únicos a desaparecer: meias, rochas, areia. Nada dura para sempre.

Também os sentimentos podem mudar bastante ao longo do processo de luto. “Você vai se lembrar dos momentos divertidos. Haverá dias que você se sentirá pra cima e dias que se sentirá pra baixo”, diz “O livro do adeus”, do escritor e ilustrador Todd Parr. Nele, as crianças podem descobrir formas de dizer adeus a alguém que se ama e como lidar com a morte.

* Colaboraram com esta reportagem Eduarda Ramos, Judite Almeida e Larissa Fernandes.

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