Cantigas de roda: muito além do ‘atirei o pau no gato’

A pesquisadora Lucilene Silva percorreu 160 municípios do Brasil estudando a música tradicional da infância. Confira a entrevista completa!

Mayara Penina Publicado em 03.09.2018
Crianças sentadas em roda

Resumo

A música tradicional da infância, feita pela e para a criança, a embala desde o nascimento e percorre todos os seus passos até que chegue à idade adulta. Entenda mais sobre sua importância nesta entrevista com a pesquisadora Lucilene Silva!

Feita pela e para a criança, a música tradicional da infância a embala desde o nascimento e percorre todos os seus passos até a idade adulta. “Carrega os ritmos e molejos da música brasileira; a beleza da nossa poesia popular; os gestos, movimentos e desafios imprescindíveis ao seu desenvolvimento, e a nossa diversidade cultural”, afirma a pesquisadora Lucilene Silva.

De acordo com Lucilene, quando a criança vivencia este repertório, tem a possibilidade de experimentar métricas, andamentos e dinâmicas distintas, além da poesia e do canto.

“Cultivar este repertório significa possibilitar à criança o contato com a música em todas as suas dimensões”, diz.

Para entender mais sobre este universo, conversamos com a cantora Lucilene Silva, que estuda música brasileira desde a adolescência. Ela é mestre e doutoranda em música na Unicamp –  Universidade Estadual de Campinas  – e seu objeto de estudo é a música tradicional da infância.

Em seu percurso de estudos, conheceu a pesquisadora Lydia Hortélio, referência nos estudos de cultura infantil e música tradicional da infância no Brasil. “Os aprendizados que tive com Lydia Hortélio impulsionaram-me a colocar o pé na estrada para aprender diretamente com os meninos e meninas do Brasil e para experimentar essa música brincada”, conta.

Lydia Maria Hortélio Cordeiro de Almeida é uma educadora e musicóloga brasileira. Passou a infância em Serrinha, sertão da Bahia e estudou piano e canto orfeônico em Salvador. É reconhecida no Brasil e no mundo como uma referência no ensino de música para crianças. Além dessas atividades, Lydia Hortélio ministra palestras, cursos e oficinas em vários estados.

Em sua investigação, Lucilene percorreu 160 municípios de norte a sul do Brasil, além de seis outros países da América Latina como Chile, Peru, Bolívia, Argentina, Uruguai e Cuba, aprendendo muito sobre a criança, o brincar, a cultura infantil e a música tradicional da infância.

“Esta experiência presenteou-me com um repertório infinitamente diverso, que representa os vários tipos de brincadeiras de muitos lugares, gerações e pessoas”, disse em entrevista ao Lunetas.

Para ela, a transformação da música tradicional da infância, pode ser explicada com uma série de fatores. Um deles é alteração do currículo do curso de Educação Musical pela LDB 5692 de 1971 para Educação Artística, tornando-a extracurricular, e consequentemente inacessível para a maioria dos estudantes, privando-os de uma educação musical.

Confira o bate-papo completo!

 

  • Lunetas – Como você observa a transformação das músicas da infância?

Lucilene Silva – O registro e sistematização de um significativo repertório de brincadeiras por todo o Brasil ao longo dos últimos vinte anos, o contato com a extensa pesquisa realizada por Lydia Hortélio nos últimos cinquenta anos, além de uma revisão bibliográfica, nos possibilitam afirmar que as brincadeiras cantadas foram mais frequentes até a década de 1970, prevalecendo a partir daí as brincadeiras silentes e ritmadas. As causas desse fenômeno vêm sendo recentemente investigadas por mim através de uma pesquisa de doutorado, o que me permite sinalizar algumas delas:

  • Considerando que a música tradicional da infância é predominantemente feminina e que a transmissão oral é feita sobretudo de mãe para filho, a crescente ocupação da mulher no mercado de trabalho diminuiu sua permanência com as crianças, que consequentemente passaram a ter menos contato com as brincadeiras cantadas. Isto com certeza influenciou e continua influenciando as gerações posteriores;
  • A falta de abertura para o brincar em um número significativo de escolas, provocada pela postura conteudista das instituições, bem como pela falta de conhecimento de repertório pelos educadores.
  • A perda dos espaços para brincar e para o convívio das crianças entre elas mesmas, incluindo a rua e espaços de natureza, onde este repertório era aprendido e compartilhado;
  • A alteração do currículo do curso de Educação Musical pela LDB 5692 de 1971 para Educação Artística, tornando-a extracurricular, e consequentemente inacessível para a maioria dos estudantes, privando-os de uma educação musical;
  • A televisão e as novas mídias, que a partir da década de 1950 ocupam cada vez mais espaço na vida das famílias brasileiras, diminuindo inclusive o convívio entre as famílias e das crianças entre elas mesmas;
  • A crescente indústria de brinquedos que investe massivamente na produção de atrativos para a infância.

Precisamos ampliar, e muito, o nosso repertório para além do “Atirei o pau no gato”, “Samba lê lê” e “Boi da cara preta”

  • Lunetas – Hoje existe uma discussão sobre os conteúdos de algumas cantigas de rodas tradicionais que trazem temas ‘impróprios” ou “politicamente incorretos” para as crianças com racismo e violência presentes. O que você pensa sobre isso? Como lidar com isso na escola?

Lucilene – No repertório da infância, o cotidiano é tema recorrente e sua localização no tempo e espaço sinaliza a história, geografia e costumes do lugar de origem. Nas variantes encontramos sinais do rural, do urbano e de particularidades das regiões brasileiras, seja no vocabulário, paisagem, vegetação, personagens, alimentação, trabalho, crenças, superstições, festas; ou nos gêneros musicais predominantes em cada região.

Este cotidiano cantado em verso e prosa pelas crianças de norte a sul do país nos conta a história de cada tempo e lugar, apresenta a vegetação, geografia, costumes, vocabulário, modismos, hierarquias, medos e preconceitos. Isto é, fala dos lugares, das pessoas, das qualidades, defeitos, das boas e más práticas da sociedade representada. Porém o repertório que retrata o machismo, a violência, a sobreposição de classes, as formas de repressão através do medo, entre outras mazelas, estão em muito menor quantidade do que aqueles que não retratam estes temas.

O que penso é que precisamos ampliar, e muito, o nosso repertório para além do “Atirei o pau no gato”, “Samba lê lê” e “Boi da cara preta”, que são as aquelas que mais permaneceram na memória do povo brasileiro, exatamente pelo fato de terem sido as mais registradas fonograficamente. São inúmeros os exemplos, que trazem no texto a poética, inocência graça, criatividade e beleza da infância.

(No fim desta matéria, Lucilene indica algumas delas)

  • Lunetas – Como você observa o impacto da televisão e novas mídias para as culturas infantis?

Lucilene – A televisão e as novas mídias têm nos paralisado diante dos aparelhos eletrônicos e consequentemente, nossos corpos e vozes vêm cada vez mais silenciando-se de música e movimento. A cultura de massa, como uma avalanche contínua, vem interferindo na valorização e cultivo das práticas e particularidades de cada lugar. A cultura da infância também vem sendo atingida por essa avalanche global e as crianças de uma maneira geral, principalmente as dos grandes centros, brincam menos. A aceleração e falta de tempo, a escassez de espaços físicos, o excesso de brinquedos tecnológicos, entre outros fatores, contribuem para que esse fenômeno aconteça. Segundo Joseph Chilton Pearc e o brincar está na base da inteligência criativa, e  como  qualquer inteligência, precisa ser desenvolvido. A criança que é submetida ao estímulo da brincadeira aprenderá a brincar. A criança com quem não se brinca não conseguirá brincar e correrá riscos em todos os níveis.

  • Lunetas – Como instrumentalizar educadores para brincar e incluir as músicas tradicionais da infância na escola?

Lucilene – Levando-os a ampliarem as reflexões acerca da importância do brincar, seu repertório e relação com o processo de desenvolvimento da criança em todas as dimensões. Represento em São Paulo a Casa das 5 Pedrinhas fundada por Lydia Hortélio, coordeno o Centro de Estudos e Irradiação da Cultura Infantil da Oca Escola Cultural e faço parte da equipe de educadores da Casa Redonda Centro de Estudos e do Instituto Brincante. Nessas quatro instituições o que temos feito diariamente é levar a brincar, ampliando o repertório de brincadeiras de centenas de crianças e possibilitando que brincarem com liberdade, na natureza. Estas experiências e repertórios vêm também sendo compartilhadas com muitos educadores na expectativa de que ampliem e transformem suas práticas. Nossas pesquisas de campo vêm sendo transformadas em publicações que têm multiplicado por tudo o Brasil um repertório da música tradicional da infância de muitas gerações e lugares. O caminho é continuarmos cantando e fazendo ecoar esta música.

“A televisão e as novas mídias têm nos paralisado diante dos aparelhos eletrônicos e consequentemente, nossos corpos e vozes vêm cada vez mais silenciando-se de música e movimento”

Muito além do “Atirei o pau no gato”

A pedido do Lunetas, Lucilene Silva listou algumas músicas de sua pesquisa. Confira!

1-    “Florista”, brincadeira de escolha que fez parte da minha infância em João Monlevade-MG, na década de 1970

__ Eu sou a florista
Flor estou vendendo.
__ Venha cá menina
Que uma flor estou querendo.
___ Se quiser uma flor
Passa-me um tostão.
___ Eu não quero flores,
Quero é o seu coração.

2-    “Agulhinha”, brincadeira de escolha informada por Nilzete Queiroz de Lima, 1982,que aprendeu com sua mãe, Terezinha Queiroz Oliveira, 1953, natural de Serrinha – BA

___ De onde vem essa mocinha,
Tão longe, tão longe?
___ Vim à procura de uma agulha
Que eu aqui perdi.
___ Mocinha volte pra trás,
Vá dizer ao seu pai, seu pai,
Que uma agulha que se perde
Não se acha mais.
___Será essa minha agulhinha?
Será essa? Não.
Será essa a agulhinha
Do meu coração?

3-    “Constância”, roda de escolha registrada por mim no município de João Monlevade-MG, informada por Laira Ferreira Lima, 1997

Constância, bela Constância.
Constância bela será.
Será o cravo da fartura
A volta que o mundo dá?

Entrei no jardim das flores
Não sei qual escolherei.
Escolherei a que for mais bela,
Com ela eu dançarei.

Dim, dim lê, lê,
Dim, dim lá, lá.
Toda viola
Pra nós dois “dançar”.

4-    “Varre, varre, vassourinha”, brincadeira dos pequenos, informada por Maria da Piedade Souza Barreiros, 1979, procedente de Minas Novas, Vale do Jequitinhonha – MG

Varre, varre, vassourinha,
Com a vassoura da rainha.
Sete copas, sete ouros,
Tira a mão da bolachinha.

5-    “Céu, terra”, brincadeira de mão registrada por mim em 2003, no bairro Capão Redondo, São Paulo, informada por crianças da Rede Pública Estadual

Céu, terra,
Pico, pico, picolé
Que sabor você mais quer?
Quero um, quero dois,
Quero papa de arroz
Ana, Ana, Ana bela,
Quem saiu foi ela.

6-    “Fui à fonte do amor”, brincadeira de mão registrada por mim em 2004, no município de Carapicuíba-SP, informada por Ana Carolina dos Santos Ribeiro, 1995

Fui à fonte do amor,
Encontrei um garotinho que me conquistou.
One, two, I love you.
Quantos abraços ele deixou?
– Quatro.
_ Um, dois, três, quatro.

7-    “Vai dormir bebê”, acalanto registrado por mim, em 2013 no município de São Miguel do Gostoso-RN, Informante D. Idalina Francisca, 1949

Vai dormir, bebê
Mamãe tem o que fazer
Vai lavar, vai engomar
Os paninhos pra você.

Os panos desse menino
Não se lava com sabão
Se lava com sabonete
Água do meu coração.

8-    “O luar, ô luarinho”, roda de verso a mim informada pela minha mãe, Therezinha Roza Silva, 1932, natural de Dom Silvério-MG

Ô luar, ô luarinho
Ô luar do firmamento,
Quem me dera estar agora
Onde está meu pensamento.

Por isto Dona Therezinha
Entra destro desta roda,
Diga um verso bem bonito,
Diga adeus e vá-se embora.

Fui fazer um raio X
Veja só que confusão,
Seu nome estava gravado
Dentro do meu coração.

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