Por que querem matar as crianças yanomami na Amazônia?

O avanço do garimpo ameaça o futuro da floresta e de seus povos. A quem interessa um projeto de extinção?

Célia Fernanda Lima Publicado em 07.02.2023
Foto em preto e branco de uma profissional da área da saúde segurando uma criança yanomami no colo.
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Resumo

Centenas de crianças morreram nos últimos anos por causas ligadas ao garimpo. Enquanto o mercado do ouro é bilionário, os povos da floresta morrem de fome. O que há por trás da crise humanitária vivida pelos Yanomami, em Roraima?

Imagens de crianças yanomami castigadas pela fome e sem acesso a serviços públicos de saúde foram expostas aos olhos do mundo nas últimas semanas. Corpos debilitados formavam a imagem do que há muito tempo denunciam as lideranças indígenas: o futuro dos povos da floresta está em risco. Em quatro anos, 570 crianças com menos de cinco anos morreram nas comunidades Yanomami de Roraima, segundo apurou a Agência Sumaúma, por causas ligadas à ação do garimpo ilegal. Neste domingo (5), mais uma vítima de desnutrição grave e desidratação morreu com apenas 1 ano e 5 meses.
Ao lamentar a situação das comunidades atacadas por garimpeiros em Roraima, o xamã Davi Kopenawa, principal líder Yanomami, disse em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo que seu povo não morria de fome quando ele era criança e que:

“A vida das crianças é mais valiosa do que o ouro”

Cada grama do ouro tão cobiçado pelos garimpeiros que avançam sobre os territórios indígenas pode ser trocado por refrigerante, cigarro ou comida, como mostrou uma reportagem da BBC Brasil no ano passado. Nenhum desses valores paga a dor e o sofrimento de uma vida indígena perdida.

“Eu nem sei mais que dia é hoje. Sei que na segunda-feira faleceu uma criança. Ela foi cremada e devolvemos as cinzas para a comunidade, onde a família vai guardar por um ano e meio, para ficar de luto”. Após os meses de luto, a família faz um ritual fúnebre com outras comunidades para chorar novamente seus mortos e enterrar as cinzas dos filhos perdidos, explica Junior Hekurari Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana, em Roraima.

Em entrevista ao Lunetas, Junior ressaltou a dor das famílias com as mortes, relatou a rotina de cuidados oferecidos às crianças resgatadas para receber tratamento médico e enviou imagens da base de atendimento montada na região do Surucucu, que fica a 270 km da capital Boa Vista e próxima à fronteira com a Venezuela. Junior acompanha o transporte em helicópteros de crianças doentes das comunidades mais distantes para as bases de saúde montadas em Roraima, onde equipes médicas fazem o possível para medicar meninos e meninas. Desnutrição, anemia profunda e malária são as principais causas para as internações. “Estamos resgatando de 10 a 12 crianças por dia. Os casos mais graves vão para os hospitais de Boa Vista. Só aqui no Surucucu, já são 120 pessoas internadas, a maioria crianças”, diz. Acomodadas em redes, as crianças recebem atendimento médico, repousam e se alimentam de leite, mingau e suplementos. “Agora a ajuda começou a chegar”, conta.

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Foto: Junior Hekurari Yanomami

Equipe médica atende bebê yanomami no polo-base do Surucucu, em Roraima. Todos os dias mais de 10 crianças chegam debilitadas ao local.

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Foto: Junior Hekurari Yanomami

“As crianças não mereciam isso. Muitas não chegaram a ver a ajuda chegar", diz Junior Yanomami. O alimento enviado é distribuído nas comunidades. As crianças internadas se alimentam de mingau e vitaminas.

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Foto: Junior Hekurari Yanomami

Crianças, adolescentes e idosos repousam em redes instaladas no barracão no polo do Surucucu. O Governo vai montar um hospital de campanha no local.

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Foto: Junior Hekurari Yanomami

Pedaço de papel com o pedido de medicamento para diarreia aguda e suplemento de vitaminas para as crianças atendidas. Desnutrição, anemia, diarreia e malária são os principais casos registrados.

A desnutrição crônica atinge 8 em cada 10 crianças yanomami, segundo dados da Fiocruz. O Ministério da Saúde apontava, desde 2022, o aumento significativo de óbitos entre as crianças da etnia. Das 33 notificações em um período de quatro anos (2015-2018), o aumento foi de 300%, com o registro de 152 mortes no último período analisado (2019-2022).

Já os casos de malária chegaram a 22 mil em uma população de quase 30 mil yanomamis. Apesar das dezenas de ofícios e documentos enviados pelo Conselho de Saúde Indígena de Roraima, a ajuda não veio. “As crianças não mereciam isso. Muitas não chegaram a ver a ajuda chegar. Estamos salvando para garantir o futuro e o crescimento do nosso povo”, conta Junior, que nasceu e cresceu em uma das 372 comunidades na TI Yanomami. Emocionado, ele lembra do tempo em que a vida entre os seus não era de medo. “O povo yanomami vivia em paz. As mulheres trabalhavam, os homens saíam para pescar, alimentar seus filhos. A gente se cuidava e visitava as outras comunidades, brincava. Hoje vivemos chorando, de luto, porque nossas crianças estão morrendo.”

“O ciclo de vida foi interferido”

Quem está por trás dessa situação?

O sofrimento Yanomami é patrocinado por um grande esquema de exploração da floresta em busca do ouro. De pequenos a grandes compradores do minério, de garimpeiros a empresários do garimpo, dos mercados locais de joias aos grandes compradores internacionais, das indústrias, refinadoras, joalherias e até as gigantes da tecnologia, que impulsionam a demanda global ao utilizarem o metal na indústria de aparelhos eletrônicos, como notebooks e smartphones.

Enquanto a história de meninos e meninas que deveriam estar livres brincando na floresta é interrompida, o garimpo ilegal avança alcançando cifras bilionárias em um mercado de luxo estabelecido há gerações. O custo das vidas não entra na conta. A destruição da floresta pelo avanço do garimpo cresceu 54% no ano passado. Já foram 3.817 hectares destruídos nos últimos quatro anos em Roraima e Amazonas, segundo o monitoramento feito pelo Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com Hutukara Associação Yanomami. “Destruíram nossas águas, nossa floresta, nossas vidas. Destruíram tudo. O garimpo ilegal trouxe devastação, morte, doença. E o mercúrio, que contamina os rios e o alimento”, pontua Junior.

A maior parte do ouro retirado desses lugares é distribuído por caminhos clandestinos. No mercado global, cada grama de ouro é vendida por 60 dólares, pouco mais de 315 reais. Uma pesquisa da UFMG aponta que 174 toneladas de ouro foram comercializadas no país de 2019 a 2020. Desse total, 49 toneladas viriam de áreas irregulares. O prejuízo socioambiental desse período é de R$ 31,4 bilhões. Segundo o estudo, 90% do ouro ilegal é de origem amazônica. Na prática, a exploração do minério na Amazônia foge do controle legal, que prevê áreas e compradores autorizados, e se desdobra em violência e medo. Ou seja, todo o consumo final do ouro pelo mundo esconde a verdadeira face de sua origem, que mata de fome e escraviza crianças da floresta.

A ameaça a territórios indígenas é um dos temas tratados na série “Aruanas”, que mostra a luta de três ambientalistas para combater crimes ambientais e a ação ilegal do garimpo na Amazônia. Na segunda temporada, a produção vai investigar, entre outros assuntos, questões ligadas ao licenciamento de grandes empresas para explorar petróleo em áreas preservadas.

Uma geração de crianças yanomami condenada

Para as lideranças indígenas e os profissionais de saúde que estiveram nas comunidades, o cenário se assemelha a uma guerra. Há destruição, perseguições, ataques armados, resgates aéreos, medo e fome. “Essa é uma das mais graves crises humanitárias vividas pelos Yanomami. Infelizmente é uma geração condenada”, aponta a antropóloga Ana Maria Machado, indigenista e pesquisadora da rede Pró-Yanomami.

Para ela, não há dúvidas de que extinguir de maneira cruel as vidas dos indígenas faz parte de um projeto colonial de exploração descontrolada dos recursos naturais da Amazônia. “Se pensarmos bem, parece que a Amazônia é a colônia do Brasil. Com a população dos Yanomami diminuindo e perdendo força, quem ganha com isso é o garimpo ilegal. Eles abrem espaço para saquear aquela terra de maneira colonial”, diz.

O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a possibilidade de genocídio contra os Yanomami, um crime passível de 15 a 30 anos de reclusão, segundo a Constituição Federal. Autoridades do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro serão investigadas pela Procuradoria Geral da República (PGR), Ministério Público Militar, Ministério da Justiça e Segurança Pública, e pela Superintendência da Polícia Federal. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) também denunciou à PGR a atuação do ex-presidente e seus ministros na condução da crise dos Yanomami para que respondam criminalmente por genocídio. A APIB destaca na denúncia que a antiga gestão foi omissa com o povo indígena entre os anos de 2019 e 2022, apontando o aumento de desnutrição, malária, assassinatos, contaminação de covid-19 e estupros. “A morte de todas essas crianças nos últimos anos é uma tentativa de exterminação de parte de uma população. Por isso podemos falar de genocídio, sim. Eles vivem uma crise profunda. Foram quatro anos de destruição”, sentencia Machado.

O governo apura a denúncia de 30 adolescentes grávidas de garimpeiros. No relatório “Garimpo sob ataque”, há relatos sobre meninas que morreram após serem abusadas sexualmente por garimpeiros e denúncias de que os abusos seriam cometidos em troca de comida. “Somente depois de deitar com tua filha eu irei te dar comida!”, conta um dos indígenas ao explicar como os garimpeiros ameaçam as comunidades.

O que está sendo feito

O cenário é tratado pelo Governo Federal como uma crise humanitária, classificação dada a situações de emergência como guerras ou desastres naturais, em que a vida de muitas pessoas está ameaçada. Especialistas e autoridades apontam o crime de genocídio. Para conter a crise em Roraima, o Governo Federal implementou uma força-tarefa: a Força Nacional do Sistema Único de Saúde (SUS) foi enviada ao estado com profissionais para atender os indígenas em polos de saúde estabelecidos nas comunidades maiores e a Força Aérea Brasileira, além de seguir enviando cestas básicas e remédios, montou um hospital de campanha para atender os doentes e as crianças yanomami. Depois de se comprometer a dar toda a assistência necessária aos Yanomami, Lula assinou, em 31 de janeiro, um decreto com medidas para expulsar os garimpeiros do território Yanomami. O documento autoriza a requisição de serviços e insumos necessários para que os Ministérios da Defesa, da Saúde, dos Povos Originários e do Desenvolvimento Social e Assistência Social, Família e Combate à Fome possam agir. Também foi criada uma Sala de Situação e Controle para que, nos próximos 180 dias, as ações de combate ao garimpo sejam registradas e monitoradas.

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