‘Cadê os Yanomami’: será que nossa empatia é seletiva?

Precisamos mover nossa energia em prol de apoiar quem está vivendo vulnerabilidades grandiosas e absurdos que causam dor

Alexandre Coimbra Amaral Publicado em 04.05.2022
A foto mostra uma mulher indígena de cabelos curtos e brincos segurando um menino indígena contra o peito.
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Resumo

Uma aldeia inteira de indígenas Yanomami desaparece após denúncias contra garimpeiros e o país segue sem respostas. O que está acontecendo conosco? Será que nossa empatia é seletiva? Estas são algumas das perguntas colocadas pelo colunista Alexandre Coimbra.

Desde a invasão do Brasil pelos portugueses, existe uma tendência difícil de ser abalada: populações indígenas vivem em sobressaltos, angústias, situações de desespero e morte. Resistem, sim, porque faz parte de sua identidade, espiritualidade e também, porque é o que lhes resta, como pulsão da vida e de cuidado com a natureza. Soubemos muito pouco da intimidade de suas dores até a revolução dos costumes impulsionada pela internet, que, consequentemente, ofereceu maior visibilidade ao posicionamento de inúmeras vozes de nações indígenas país afora. E essas vozes sobre nós nos instigaram a aprender e entender a história do Brasil para além dos livros escritos por brancos, com o viés do colonizador. A revolução humana mais primordial – e nada intuitiva – a que temos sido convocados, é a disponibilidade de muitos para acessar e escutar outras versões. 

Nas últimas semanas, este fio interminável de um tweet que começou no século XVI entrou, lamentavelmente, nos trending topics: estupro, morte de uma criança de três anos no rio – cada vez mais contaminado pela ação predatória do garimpo ilegal -, e o desaparecimento de toda uma comunidade Yanomami, na região de Waikás, em Roraima. Ali viviam cerca de 30 indígenas e, até o momento da publicação deste artigo, não temos nenhuma notícia de onde eles possam estar. 

Sim, existe comoção, assombro e horror. No entanto, eles não parecem ter o mesmo efeito que têm outras manchetes envolvendo crianças brancas, em episódios de violência urbana. O que está acontecendo conosco? Isto é uma falha moral, diante da qual devemos levantar os chicotes da culpa? 

O que podemos fazer para evitar que este fenômeno nos cause constrangimento com os próprios espelhos?

Somos frutos de uma cultura que exclui determinadas histórias de nossas vidas privadas. Dependendo de onde estamos, (re)conhecemos somente os semelhantes, a exemplo daquelas que professam uma mesma fé. Há bolhas que se instituem como “o normal”, mesmo antes dos algoritmos fazerem esta seleção por nós na vida virtual. O que entendemos como normal, esperado, conhecido e íntimo tem relação com aqueles que convivem conosco. Uma vez que o círculo de convivência inclui somente os mesmos fiéis, tenderemos a acreditar que aquelas “verdades” são universais, superiores a outras formas de estar no mundo. Quanto mais homogêneo o grupo de pertencimento, mais dificuldade vamos desenvolvendo para conviver com a diferença. 

Por outro lado, a experiência vivida com pessoas diferentes de nós, com vínculos vivos e histórias encarnadas, nos instiga a compreender e nos preocupar com aquele “outro tipo” de ser humano. Precisamos falar com estas pessoas, tendo disponibilidade para escutá-las como quem, curiosamente, quer aprender sobre alguém que vale a pena conhecer. A empatia só funciona de fato numa sociedade se conseguirmos conhecer o outro a ponto do desconforto dele nos atravessar como grande incômodo. Não precisamos, necessariamente, sofrer o que o outro sofre, mas desenvolver intimidade o bastante para termos compaixão, sentir angústia e preocupação por seus dilemas existenciais. Precisamos mover nossa energia em prol de apoiar quem está vivendo vulnerabilidades grandiosas e absurdos que causam dor. Os indígenas estão contando suas histórias há tempos, mas quantas vezes optamos por seguir influenciadores brancos que traduzem suas vidas com frases motivacionais ou bíblicas?

A culpa por chegarmos até aqui desta forma não nos serve em quase nada, porque ela é um afeto inibitório, ou seja, faz com que nos encolhamos e nos escondamos de nossas próprias vergonhas. Talvez o motor que nos leve adiante seja mesmo a condição de aprendizes eternos, num mundo que foi praticamente impossível conhecer de outra forma até este século. Hoje, podemos até sofrer do contrário, da dor de conhecer tantas dores distintas e de sentirmo-nos impotentes diante de tamanha miríade de sofrimentos humanos simultâneos em um país colapsado por incontáveis barbáries. 

Talvez o motor que nos leve adiante seja a condição de aprendizes eternos

Podemos decidir construir um caminho de conexão emocional com histórias vivas, com silêncios que gritam, com tons de pele e idiomas que têm potência, brilho, arte, resistência, beleza, encantamento, ao mesmo tempo em que se vêem obrigados a permanecer em luta pela existência. Retiremos os véus para que as consciências se abram para aqueles que padecem do maior risco de desaparecimento. Ao fazermos isto, já poderemos considerar um belo começo de refundação de uma nação.

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