Em que Brasil as crianças vão crescer?

Como os dados do Censo podem ajudar a entender as condições que meninas e meninos têm hoje para se desenvolver

Camila Salmazio Publicado em 21.11.2023
Um homem e uma mulher de costas dão as mãos a um menino negro que olha para trás. Ele veste calça jeans e camisa branca e está diante do mar
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Resumo

Os dados do Censo 2022 mostram um país com transformações significativas no perfil da população brasileira. Especialistas interpretam as mudanças mais relevantes e indicam cuidados que é preciso ter para garantir um futuro mais seguro e mais saudável para as crianças.

Depois de três anos de atraso, os dados do Censo 2022 foram divulgados pelo IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Além das muitas transformações relevantes que os gráficos e as tabelas registram, Lunetas se propõe a entender o que as tendências dizem sobre o mundo onde as crianças vão crescer.

Primeiro, como ficam as infâncias que estamos construindo hoje num país que tem o menor número de crianças desde 1970 (os brasileiros com idade entre zero e 14 anos representavam 42,07% da população e hoje são 19,76%)? O que muda em um país onde as famílias passam a ser menores, já que caiu consideravelmente o número de filhos – menos de dois – por mulher? E mais, com uma população que vive mais do que nas últimas décadas, qual é o lugar das crianças nesta sociedade “mais velha”? Quais são os desafios e as oportunidades?

Natalidade em queda

Os dados mostram que as mulheres estão tendo, em média, menos filhos. A taxa de fecundidade atual é de 1,6 filhos por mulher, a menor desde 1970. Isso provoca um estreitamento na pirâmide, “devido à redução da fecundidade e dos nascimentos no Brasil”. É o que explica, em nota, Izabel Marri, gerente de Estudos e Análises da Dinâmica Demográfica do IBGE.

Censo 2022: A imagem da pirâmide mostra que as mulheres na faixa dos 35 aos 39 anos são a maioria no país

Há, também, mais lares uniparentais, com mais da metade deles chefiados por mães solo. Somente no último ano, houve um aumento de 17,8% de mulheres como únicas responsáveis pelos filhos, segundo um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

É o caso da doutora em saúde coletiva e em farmacologia Ligia Moreiras, conhecida na internet como “A cientista que virou mãe”, e a filha Clara, de 13 anos. Para ela, ao passo que “antigamente a gente tinha uma maternidade solo meio compulsória, marcada pelo abandono paterno, hoje a gente está vendo crescer uma maternidade solo por opção da mulher”.

Novas prioridades

Para Joice Vieira, cientista social e professora do departamento de demografia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, também contribui para o encolhimento da infância no país o fato de que constituir família e ter filhos não é prioridade para muitas pessoas hoje.

Segundo ela, os custos de vida altos, a dificuldade de encontrar parceiros, a falta de tempo para investir em relacionamentos ou a decisão de adiar a maternidade, além de um alto grau de incertezas e instabilidades são algumas das razões que influenciam diretamente na natalidade, que tende a diminuir ainda mais. “A somatória dessas decisões tem impactos que precisam ser equacionados e vão demandar criatividade nas próximas décadas.”

Em 2022, a região com menor percentual de crianças foi o Sudeste (18%) contra 25,2% do Norte. Isso se deve às altas taxas de fecundidade na região que, em 1980, ficavam acima de seis filhos por mulher. 

Juliana Prates, psicóloga e doutora em Estudos da Criança, acrescenta à lista de possíveis fatores que influenciam mulheres a abrir mão da maternidade o medo do abandono ou da solidão. “É absolutamente legítimo o desejo de não ter filhos. Mas o fato de mulheres serem muito abandonadas no ato de maternar gera uma consequência direta na diminuição da natalidade.”

Além disso, Prates complementa que, “em um país marcado pelo racismo, violência e morte precoce dos jovens negros, é esperado e possível que as mulheres, principalmente negras, não queiram ter filhos”.

Mais meninos, menos homens

Apesar de nascerem mais meninos – a cada 100 brasileiros de até 14 anos, 51 são meninos – a população é, em sua maioria, feminina, com 51,48% do total. O motivo dessa inversão com o passar dos anos é de cunho social: eles são os que mais morrem.

O Anuário da Violência 2023 confirma a alta taxa de mortalidade de homens jovens: entre as vítimas de morte violenta intencional (MVI) de 12 a 17 anos, 89,7% são do sexo masculino. Desses, 76,9% são negros.

Na outra ponta, são também os homens que mais praticam violência contra a mulher no país, com números cada vez mais alarmantes. Os feminicídios cresceram 6,1% em 2023, como aponta o Fórum de Segurança Pública. Já o número de estupros é o maior da história com 74.930 casos registrados, um aumento de 8,2% em comparação a 2021.

Os desafios da ausência paterna

Para garantir mais equidade entre homens e mulheres nas próximas gerações, é preciso desconstruir padrões culturais. Assim, os meninos podem deixar de ser as principais vítimas da violência intencional e também deixar de praticar a violência de gênero. Ter o exemplo masculino no dia a dia é essencial, diz Humberto Baltar, educador antirracista e fundador do coletivo “Pais Pretos Presentes”.

Por dia, quase 500 crianças são registradas sem o nome do pai na certidão de nascimento. De acordo com a Arpen, a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais, entre 2016 e 2021, 5,33% das crianças saíram da maternidade sem a referência paterna.

“Os meninos têm que ver os pais limpando a casa e fazendo outras tarefas com a mulher”, diz o educador. “Eles precisam crescer antimachistas, entendendo que o machismo afeta não só as mulheres, mas principalmente os próprios homens. Um prejuízo comum é passar anos da vida sem se envolver com o cuidado dos filhos.”

A referência equilibrada do papel do cuidado faz a criança “ver, não somente a figura de autoridade paterna, mas também um companheiro [afetivo]. Esse espelho dentro de casa é uma das referências que mais faltam hoje”, afirma Baltar. Para ele, brincar é uma das maneiras mais efetivas de construir novas visões sobre os papéis de gênero. “Brincar de cozinhar, de dar banho, são altamente pedagógicas, porque coloca a criança num papel ativo de cuidado.”

O trabalho de cuidado [ainda] é feminino

Em seu livro “Para educar crianças feministas – um manifesto”, a autora Chimamanda Ngozi Adichie afirma que “ao dizermos que os pais estão ‘ajudando’, o que sugerimos é que cuidar dos filhos é um território materno, onde os pais se aventuram corajosamente a entrar. Não é.”

Essa desconstrução ganha fôlego com a divulgação dos dados do IBGE que refletem a sobrecarga da mulher e a ausência dos homens na criação dos filhos. Além disso, a redação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) deste ano teve como tema “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizados pela mulher no Brasil”.

No meio da pirâmide populacional, vemos que 51,5% da população total é composta por mulheres na faixa dos 35-40 anos, a maior do país. Esse grupo vem sendo apontado como a “geração sanduíche”, responsável por cuidar tanto das crianças quanto dos idosos.

“Em geral, a gente costuma repetir como um mantra que é preciso uma aldeia para cuidar de uma criança. Mas essas mulheres na faixa de 35 até um pouco mais dos 40 também vão precisar de apoio de sua própria rede. Independente da decisão de ter ou não ter filhos”, diz a cientista social Joice Vieira.

Para ela, é preciso pensar com mais afinco políticas públicas, sobretudo de recolocação profissional. “Não são poucos os casos de pessoas que param de trabalhar e depois precisam de um tempo para retomar a carreira. Também serão necessárias políticas que aumentem a expectativa de vida saudável e a autonomia dos idosos.”

Conselheira do atual governo, “A cientista que virou mãe” Ligia Moreiras defende que é preciso ampliar as formas de ver a mulher no mundo. “Olhar para essa diversidade faz com que a gente rejeite desigualdades, explorações e sobrecargas. Isso é importante para que a mulher não seja invisível.”

Um país mais velho

Em um Brasil mais envelhecido, com proporção de 55,2 idosos para cada 100 crianças de até 14 anos, também precisamos ressignificar o envelhecer e como o cuidado desde os primeiros dias de vida dita o futuro. É a discussão proposta pelo documentário “Quantos dias, quantas noites”, dirigido por Cacau Rhoden, com produção da Maria Farinha Filmes.

Em uma das entrevistas do documentário, o médico epidemiologista Alexandre Kalache fala sobre o envelhecimento ativo. “Você otimiza o processo para saúde, para conhecimentos acumulados, para participar da sociedade e exigir os seus direitos”, diz ele, que é especializado no assunto. “Quando tudo isso falha, é preciso ter a segurança de que você vai ser protegido se as coisas não derem certo.”

Para Joice Vieira, um dos principais desafios nesse contexto de envelhecimento populacional é lidar com a alta informalidade do mercado de trabalho. Quando “muitas pessoas não conseguem contribuir com a previdência enquanto atuam por conta própria”, isso tem impactos diretos na aposentadoria das gerações futuras, por exemplo.

Desafios e oportunidades

Com menos crianças, a princípio, haveria uma oportunidade de eliminar o déficit histórico do país na oferta de ensino de qualidade e melhorar políticas voltadas à saúde, por exemplo. No entanto, ao analisar os dados, Vieira recomenda ponderação. Isso porque o número absoluto de crianças não caiu drasticamente (o que realmente caiu foi o peso relativo, a proporção de crianças em termos percentuais). Também houve aumento do tempo de vida das pessoas com o passar dos anos.

Ainda assim, a especialista considera importante “o investimento do Estado na educação infantil pública, gratuita e de qualidade em programas de atenção à primeira infância”, inclusive para reduzir o medo e a incerteza que estão associados à decisão de ter filhos hoje. Mas, “para além da educação infantil, que ainda tem baixa cobertura no Brasil, listaria a educação continuada em todas as fases da vida, contemplando quem terminou a educação formal, mas precisa de reciclagem, atualização, reorientação de carreira para sobreviver no mercado de trabalho”.

Já na saúde, é importante para a garantia do bem-estar das crianças que as políticas cubram além do período gestacional, do pós-parto e o tempo que está amamentando o seu bebê. Ligia Moreiras destaca que o desenho atual desconsidera os enfrentamentos que a mulher tem que viver durante a primeira infância, “um período delicado no qual ela está adaptando sua rotina, trabalhando mais para poder suprir novos gastos”.

A saúde mental da mulher nesses primeiros anos de vida da criança também é outro ponto a ser priorizado pelo governo, na avaliação da doutora em saúde pública, pois os números de depressão e transtorno de ansiedade estão aumentando entre mães de crianças pequenas. “O efeito da sobrecarga materna é devastador. Para saber se a criança está indo bem, é preciso observar como estão as mulheres que cuidam dela. O cuidado com mães de primeira infância é estratégico.

* Colaborou com esta reportagem Eduarda Ramos.

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