Quando uma criança aprende sobre cuidado e inclusão, muitas engrenagens se movem para criar uma estrutura social antirracista
O Lunetas ouviu especialistas para saber como promover mais representatividade nas brincadeiras e de que forma as bonecas negras ajudam as crianças a aprenderem desde cedo valores como justiça, diversidade e respeito.
Com nome e roupinhas próprias, as bonecas são figuras de afeto importantes no imaginário infantil. Mais do que o estímulo à imaginação e à criatividade, quando brincam com suas “filhas” e “filhos”, as crianças aprendem sobre cuidado e a expressar emoções. Apesar disso, durante muito tempo, apenas parte delas se via representada nessa brincadeira. Agora, além de serem um símbolo de representatividade, as bonecas negras impulsionam o debate sobre por que oferecer brinquedos mais diversos desde cedo.
“Historicamente, as crianças negras brincavam de cuidar dos corpos brancos e o contrário raramente acontecia”, analisa a pedagoga e mestre em educação, Clelia Rosa. “Em uma sociedade majoritariamente constituída por uma população negra, isso é chocante, violento, diz muito sobre quem cuida e sobre quem é cuidado.”
Rosa, que é também orientadora educacional da Educação Infantil do Colégio Santa Cruz, comenta que “ao brincarem com bonecas ‘diversas’, as crianças simbolicamente estendem essa atenção e cuidado para todas e todos”. Ou seja, elas vão aprendendo que todo mundo merece o mesmo tratamento.
Uma criança que brinca com uma boneca semelhante a ela tem contato com uma representação mais precisa e inclusiva da diversidade étnica e cultural da sociedade. “Ao refletirem a realidade de crianças de diferentes origens raciais, ajudam a promover um senso de pertencimento e aceitação”, afirma o sociólogo Vidal Mota Junior.
Segundo ele, que é também diretor do Instituto DACOR, onde atua no combate ao racismo, ter bonecas parecidas consigo fortalece a autoestima e a construção da identidade de quem pertence a minorias étnicas. Isso porque elas se veem representadas de maneira positiva e validada, aumentando a autoconfiança e o orgulho de sua herança cultural.
Por isso, ele acredita que “ao incorporar brinquedos representativos racialmente em uma educação antirracista, de maneira intencional e sensível, é possível promover valores de igualdade, diversidade, inclusão e justiça desde cedo”. É uma parte importante da luta contra o racismo e contribui para uma mudança cultural positiva em direção à igualdade racial, diz o sociólogo.
Além de fortalecer a autoestima das crianças, desconstruir estereótipos prejudiciais, e fomentar a empatia, Mota Junior considera que a variedade de cores, traços e outras características ajuda ainda a desenvolver “uma compreensão mais ampla e respeitosa da diversidade humana, transformando as crianças em cidadãos conscientes e comprometidos com a construção de um mundo inclusivo”.
Ao se verem representadas em suas bonecas, muitas engrenagens se movem para criar uma estrutura social antirracista.
No entanto, nesse processo de buscar mais representatividade, é preciso ter o cuidado de não reproduzir estereótipos negativos. A pedagoga, palestrante e escritora Josy Asca recomenda verificar se os bonecos foram criados com respeito e autenticidade à cultura representada. Isso porque “eles precisam ser naturalmente lindos para que as crianças sintam vontade e orgulho de pertencer às suas raízes”.
Asca, que é pós-graduada em gestão escolar, africanidades e cultura afro-brasileira, além de autora dos livros “O amor não tem cor” e “Akin e sua cor preciosa”, também sugere incluir as crianças nesta escolha. “Ao explicar a importância da diversidade, contribuímos para um ambiente mais inclusivo e representativo para elas brincarem e aprenderem sobre o mundo ao seu redor.”
Já a pedagoga Rosa lembra que as mãos negras foram pioneiras na confecção dessas bonecas. Especialmente as mãos de mães, tias e avós das crianças negras, que não viam suas filhas, seus sobrinhos e seus netos representados. Por isso, para ela, é importante valorizar os pequenos negócios.
Em Salvador, Bahia, Sabrina Samara Araújo de Souza busca fugir dos rótulos sem grandes debates, porque sabe que as mudanças acontecem com calma. Seu filho, Pedro, 3, já teve cozinha e brinca de boneca com outras crianças. “Quando eu comprar uma boneca para ele, vai ser uma boneca preta”, diz a mãe, que é negra e entende o impacto de suas escolhas para o filho, que é mestiço. “De modo geral, eu busco ter essa diversidade com relação às escolhas dos brinquedos, roupas, mas tento trazer um pouco mais de neutralidade.”
Juliana Fonseca, mãe da Maria Júlia, 5 meses, tem a mesma preocupação. “Minha bebê é parda. Ter brinquedos com os quais ela possa se identificar é fundamental para seu empoderamento e reconhecimento do seu papel na sociedade”, diz. “Os brinquedos são muito importantes para a educação e o processo de formação humana. Por meio deles, as crianças têm contato com o que existe no mundo e podem, assim, compreender que somos diferentes uns dos outros e está tudo bem.”
“Eu sempre digo que a diversidade não falta à aula, ela está lá, todos os dias”, diz a orientadora educacional do Colégio Santa Cruz, Clelia Rosa. Por isso, além do ambiente familiar, a escola também precisa estar atenta à questão da diversidade. “Porém, como nós a recebemos? Nós celebramos sua presença? Infelizmente, não!”, avalia.
“Fomos ensinados a estranhar e, por vezes, rejeitar tudo aquilo que é diferente de nós. Isso nos afasta de experiências plurais e minimiza as chances de ampliação de repertório”
Segundo ela, o papel dos professores em sala de aula é estar atento ao modo como as crianças brincam e ao que querem falar. Ela lembra de um episódio quando uma criança pegou uma boneca negra pelos cabelos, de um modo desajeitado. “Ao ver a cena, o professor se aproximou dela e disse: ‘Olha, não pegue a boneca pelos cabelos, a gente não segura ninguém pelo cabelo, não é mesmo?’”. Ou seja, um profissional comprometido com uma educação antirracista deve fazer intervenções, com boas perguntas, e cuidar dos encaminhamentos necessários.
“Brincando de boneca, também se aprende a cuidar”
Ao brincar de boneca, a criança expressa e compreende as próprias emoções e desenvolve habilidades emocionais, como empatia, compaixão e amor. Na brincadeira, ela cria diálogos e narrativas para interagir com seus brinquedos. Assim, desenvolve a linguagem usando palavras, frases e expressões. Inclusive, “para crianças que passaram por experiências traumáticas, brincar com bonecas pode ser uma forma terapêutica de expressão e cura”, explica Asca. “Elas podem processar emoções difíceis e desenvolver resiliência emocional.”
* Esta reportagem foi produzida com o apoio da Imaginable Futures.
Como criar espaços mais diversos na escola?
Mais do que comprar bonecas negras, Asca aponta algumas medidas que podem promover mais diversidade e inclusão: