Primeira infância: ‘Quem não foi cuidado não consegue cuidar’

De acordo com a formadora de professores, Elza Corsi, o cuidado é fundamental para o desenvolvimento da autonomia e para a formação de seres humanos éticos

Camilla Hoshino Publicado em 22.11.2018

Resumo

As experiências da primeira infância são essenciais para desenvolver habilidades, adquirir autonomia e construir uma postura em relação ao mundo. Em entrevista, Elza Corsi apresenta uma visão integral sobre o “cuidado” e como pensá-la no cotidiano escolar.

Relacionar-se com o outro e consigo mesmo. As experiências vividas na primeira infância são essenciais para desenvolver habilidades, adquirir autonomia e construir uma postura em relação ao mundo. “As crianças aprendem a cuidar de si e dos outros ao serem cuidadas”, afirma Elza Corsi, fundadora do Instituto Avisa Lá, instituição que forma professores e gestores da Educação Infantil.

De acordo com ela, as oportunidades oferecidas por professores e pelo ambiente escolar têm um impacto profundo na formação ética dos sujeitos. Nesse contexto, momentos como trocar fralda, lavar as mãos e se alimentar não devem ser entendidos como rotinas mecânicas, mas como ações educativas. “O professor não só acompanha, mas deve estimular que a criança vá se cuidando, construindo e incorporando hábitos de bem estar e saúde para que se tornem rotina no futuro.”

Elza Corsi é nutricionista e bióloga formada pela USP – Universidade de São Paulo, com especialização em Saúde Pública pela mesma instituição. Dirigiu três creches da rede direta da Polícia Militar de São Paulo. É fundadora do Instituto Avisa Lá e possui extensa experiência como formadora de professores e gestores da Educação Infantil.

Em entrevista ao Lunetas, ela apresenta três conceitos que permeiam o “cuidado” com crianças em ambientes coletivos e reflete como exercitá-los no cotidiano de creches e pré-escolas.

Confira o bate-papo!

Lunetas – A ideia do “cuidado” está bastante presente na formação de professores da Educação Infantil e orienta o planejamento do trabalho em creches. De que tipo de “cuidado” estamos falando?
Elza Corsi – Precisamos conceituar o que é “cuidar” e para isso podemos utilizar alguns autores, entre eles o Leonardo Boff, um teórico humanista de fácil entendimento. Ele apresenta uma visão sobre o “cuidado do outro”, que significa cuidar de tudo: da casa, da rua, do planeta. “Cuidar do outro” é zelar, ter sintonia com aquilo que te envolve, é entender o outro e reconhecer suas necessidades. Boff defende a importância dessa discussão para o paradigma atual, em que impera a ausência de um olhar atento em relação ao próximo.

“Construir o “cuidado do outro” passa pela generosidade, pelo reconhecimento de que o outro é tão humano quanto você. Não se pode estar bem se outra pessoa está em sofrimento. Esses elementos contribuem para a formação de um ser humano ético”

E como explicar o “cuidado de si”?
EC – Para isso trabalhamos com o Michel Foucault, especialmente com um conceito apresentado em sua última aula no Collège de France, em que ele levanta a questão do “cuidar de si”, do ponto de vista não apenas físico, mas ético. Nesse sentido, ele afirma que a humanidade só poderá se salvar se construirmos sujeitos éticos e humanos. Esse “cuidado de si”, portanto, não é um cuidado egoísta, mas uma forma de estar no mundo, praticar ações e ter relação com os outros. Pensar o que somos e o que desejamos ser. E para interagir é preciso compreender que o outro é alguém com necessidades diferentes das suas.

“Cuidar de si” é transformar-se cotidianamente, é transfigurar-se”

Por último, um terceiro conceito com o qual trabalhamos é o de “autocuidado”, que significa cuidar de si a partir da ideia de promoção da saúde.

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Istock

Quem nunca foi cuidado não vai conseguir cuidar de si ou se constituir como ético. Se a criança não foi atendida, como saber do que precisa ou reconhecer suas necessidades?

Como trabalhar esses conceitos de “cuidado” na prática de creches e pré-escolas, considerando que são locais coletivos e com crianças de diversas realidades sociais?
EC – O primeiro grande exercício é o de aprender a olhar cada criança em sua individualidade, reconhecendo o que ela constrói, o que é único dela. E já que a linguagem é o primeiro objetivo da escola, eu proponho aos professores tentar construir a narrativa de algumas crianças, fotografando três momentos (início, meio e fim) delas em atividades. Essa narrativa deve ir para a parede da escola. Toda vez que algum adulto chegar para conversar com a criança, a criança pode mostrar o que ela fez, o que ela falou, mesmo sem saber onde está escrito. Isso dura algum tempo, mas ajuda a perceber que a criança reconhece sua narrativa, ela sabe que está ali, que fez bem e que a professora viu.

Algumas atividades como troca de fraldas, alimentação ou higiene em geral são vistas como algo mecânico, separadas do aprendizado. Mas como estes momentos podem ser repensados a partir deste olhar integrador do “cuidado”?
EC – Por exemplo, na troca de fraldas: é preciso acompanhar o movimento da criança e reconhecer o que ela está dizendo. Se ela está oferecendo o braço em vez da perna, o adulto deve ler essa iniciativa. Assim como nas outras atividades do cotidiano de atendimento, respondendo e investindo para que crianças tomem iniciativas. Quando a criança é muito pequena o que está em jogo é o “cuidar do outro”.

“Temos que olhar o “cuidado do outro” como construção de identidade. Quem nunca foi cuidado não vai conseguir cuidar de si ou se constituir como ético. Se a criança não foi atendida, como saber do que precisa ou reconhecer suas necessidades?”

Em quais outros momentos do cotidiano podemos pensar no cuidado?
EC – Quando a criança está maior, há uma série de ações ligadas a cuidados pessoais, como lavar a mão, assoar o nariz, aprender a dizer que precisa ir ao banheiro. O professor não só acompanha, mas deve estimular que a criança vá se cuidando, construindo e incorporando hábitos de bem estar e saúde para que se tornem rotina no futuro. O brasileiro é bom de banho, mas é ruim de mão. Passamos água, mas não fazemos os movimentos indicados de boa higienização. É importante recordar que 82% das doenças infecto-contagiosas são transmitidas através da mão. Então ensinar esses procedimentos é um ato de amor por parte do professor. Quando há formas de acesso à torneira, ao sabonete e ao papel, as crianças lavam as mãos de forma rápida e eficiente. Uma criança de três anos me disse: “Quando eu lavo a mão, minha mão canta”. Ela estava se referindo ao barulhinho das mãos sem gordura. É uma grande descoberta para ela.

E a relação com a comida?
EC – Tudo isso vale para escovar os dentes, organizar a mochila ou para a alimentação independente quando a criança apresenta competências motoras para se servir e decidir o que quer comer. Escolas precisam de atividades ligadas a culinária e degustação, pois elas ajudam a explorar o mundo da comida. A comida é uma questão de identidade nacional, regional e individual. Há um jeito próprio de comer e organizar o prato. O exercício de tentar comer sozinho é que vai revelando quem é essa pessoa, do que ela gosta. E a criança tem o direito de decidir do que gostar, de ser apresentada a comida de um jeito bonito, interessante e desafiador.

É preciso organizar a rotina dos cuidados de uma forma desafiadora, que acredite na competência das crianças quando oferecemos a elas condições de realizar as tarefas. E elas fazem isso melhor do que nós.”

Lunetas: Além de cuidar do corpo, quais são as outras facetas do “cuidado”?
EC – Uma delas é o cuidado do ambiente e dos materiais. É possível colocar dentro do planejamento escolar o momento de arrumar a mochila, caso a criança já reúna condições para isso. Elas adoram, pois se sentem grandes e importantes. Depois de um tempo, elas passam a organizar sozinhas e cuidar das suas próprias coisas e da sala em geral. Outra faceta é o cuidado do movimento, do brincar dentro da escola e nos espaços externos. Deve-se estimular a criança a usar o corpo de forma prazerosa, a partir de jogos, para que valorizem o movimento e não se tornem adultos sedentários.

Você pode dar um exemplo de uma boa mediação por parte de professores?
EC – As crianças apresentam muitos conflitos entre elas. Quando perdem seus brinquedos para outras crianças, por exemplo, elas lidam com frustração, raiva e sentimentos que ainda não sabem de onde vem e nem sabem nomear. Nesse momento, o professor pode ajudá-las a nomear e descobrir o que elas estão sentindo. Dar nome aos sentimentos acalma e ajuda o crescimento emocional dessa pessoa ao retirá-la da angústia. Se uma das consequências desses sentimentos foi morder ou machucar seus pares, o professor também pode ajudar a criança a fazer uma reparação: não apenas sugerir abraçar o colega quando se está bravo, mas pedir para ajudar a botar remédio, botar gelo. Com isso a criança se dá conta das consequências e começa a entender que cometeu um erro, mas que pode repará-lo. Poucas coisas na vida são irreparáveis e os erros podem ser construtivos.

A criança passa a reconhecer que há ações que não são boas para os outros, então não são boas para si mesma. Isso ajuda a formar sujeitos altruístas e éticos, valores de que a humanidade está precisando muito.

Essas são construções que deveriam existir em todas as escolas, pois preparar o sujeito para a convivência social é uma tarefa desse espaço coletivo. A família apresenta outra função. Na família há hierarquias, não há pares, mas crianças de diferentes idades. Na escola se aprende a conviver com o vizinho e perceber que ele também tem necessidades.

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