‘Não há vagas’: como garantir creches para todas as crianças

Apesar de não ser obrigatório na educação básica, o acesso à creche de qualidade beneficia as famílias e impacta no desenvolvimento infantil a longo prazo

Vanessa Fajardo Publicado em 20.01.2025
Imagem de capa para matéria sobre falta de vagas em creches mostra uma mulher negra de cabelos cacheados segurando um bebê no colo.
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Resumo

Em 44% dos municípios brasileiros há fila de espera para crianças de 0 a 3 anos serem matriculadas nas creches. A falta de acesso à uma educação de qualidade na primeira infância prejudica o desenvolvimento das crianças e acirra ainda mais as desigualdades sociais.

Por causa do trabalho, a servidora pública Daniela Salgado vai ter que matricular os filhos gêmeos de 1 ano e 9 meses em uma escola particular em Brasília, onde moram. Desde janeiro de 2024, ela está na fila de espera para conseguir vaga em uma creche da rede pública, mas ainda não foi contemplada.

No Distrito Federal, a oferta de vagas segue um sistema de pontuação que prioriza as famílias mais vulneráveis, com mães trabalhadoras, de baixa renda, com crianças em risco nutricional, entre outros critérios. No entanto, como Daniela não se encaixa nessas condições, precisou ir atrás de um local privado para deixar os filhos enquanto trabalha.

“Tive de me adequar a essa situação, mas é errado porque o governo deve apoiar as mães que trabalham fora”, diz. Para manter a nova rotina e conseguir trabalhar em Brasília, ela se mudou de Santarém (PA), junto da tia e do irmão que moram com ela e ajudam no cuidado com os bebês.

“Na teoria, se fala que as mães têm direito de trabalhar, mas não há incentivo. O certo seria que pudéssemos trabalhar e ter as creches para cuidarem de nossos filhos com dignidade.”

A Secretaria de Educação do Distrito Federal informou ao Lunetas que possui 34.413 vagas para crianças de 0 a 3 anos em período integral, em 238 creches públicas. Para 2025, a previsão é abrir cerca de 12 mil vagas com a entrega de cinco novas creches no primeiro semestre e mais 13 até o fim do ano. No entanto, ainda há 14.403 crianças aguardando vagas. Ou seja, Daniela não está sozinha.

Além disso, 44% dos municípios brasileiros apresentam filas para o acesso às creches. Conforme o levantamento nacional realizado pelo Gabinete de Articulação para a Efetividade da Política da Educação no Brasil (Gaepe), 88% desses municípios estão nesta situação porque não há vagas. O estudo tem parceria com o Ministério da Educação, Instituto Articule e outras instituições públicas e da sociedade civil.

O sistema das creches públicas no país atende crianças de 0 a 3 anos e compreende uma etapa de ensino não obrigatória. Entretanto, este é um direito da criança e da família, assegurado pela Constituição Federal.

Recorrer à Justiça é um direito mas não resolve o problema de todos

Para garantir o direito à creche e questionar as listas extensas de espera, muitas famílias optam por mover uma ação na Justiça. Assim, quando há uma decisão judicial, o município precisa matricular imediatamente a criança citada na ação. Bruna Secreto, advogada especialista em Direito Constitucional, diz que é comum a procura de mães trabalhadoras que ficam por meses ou até anos esperando uma vaga.

Segundo ela, essas mulheres muitas vezes são desencorajadas pelos próprios funcionários das prefeituras. “Em municípios menores, funcionários acabam atuando de acordo com a vontade do gestor eleito para garantir os seus empregos ao invés de cumprir as regras legais. Por isso, é comum as mães ouvirem algo do tipo ‘fala com o vereador tal que ele consegue’”, diz a advogada.

No Brasil, 2,3 milhões de crianças de até 3 anos de idade não frequentam creches. Dentre os principais motivos está a dificuldade de acesso ao serviço, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As crianças mais pobres são mais prejudicadas. Um estudo feito com dados do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social mostrou que 60% das crianças de 0 a 6 anos do país que pertencem a famílias inscritas no Cadastro Único (CadÚnico) nunca frequentaram a creche ou a escola. Além disso, a maioria tem mães solo e pardas.

Embora seja legítima, em virtude da necessidade e direito das famílias, especialistas apontam que a prática, além de não resolver o problema de ampliação de vagas, prejudica ainda mais as famílias de baixa renda. Isso porque elas não teriam acesso a esta alternativa, podendo ficar mais tempo na fila, acirrando as desigualdades.

“Esse método cria um sistema de priorização baseado na judicialização. Ou seja, em que o Poder Executivo responde a cada liminar individualmente em vez de olhar de forma mais ampla para a expansão de vagas e para a redução das iniquidades”, afirma Alessandra Alessandra Gotti, presidente executiva do Instituto Articule.

Por outro lado, a advogada Bruna Secreto não acredita que as ações judiciais possam prejudicar as famílias vulneráveis, já que elas também podem utilizar essa alternativa por meio do Ministério Público. No entanto, ela explica que pode ocorrer um serviço sem a qualidade necessária por causa da lotação das creches.

Estar em creches de qualidade assegura o pleno desenvolvimento infantil

O que as famílias também devem levar em consideração é o acolhimento de qualidade. Portanto, mesmo conseguindo a tão disputada vaga, é preciso estar atento à superlotação. “A fila existe porque as instituições já estão superlotadas. Uma ação judicial vai obrigar uma creche que já está operando com dificuldade a receber mais uma criança. A pergunta que fica é: em quais condições todas essas crianças estão?”, questiona Mariana Luz, CEO da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal e integrante do Comitê para a Política Nacional Integrada para a Primeira Infância (PNIPI).

Ela ressalta que esses fatores refletem diretamente no desenvolvimento infantil assim como nos benefícios garantidos por uma educação de qualidade logo na primeira infância. Tudo isso repercute ao longo da vida da criança e também têm impacto na redução das desigualdades sociais.

“Uma criança que passou por uma educação infantil de qualidade tem até três vezes mais chances de aprender em toda a sua trajetória escolar”, afirma Mariana Luz. “Numa escola de educação infantil de qualidade, as crianças têm maior chance de alcançar seu máximo potencial, quebrando ciclos de pobreza e rompendo com as desigualdades.”

Na mesma linha, Alessandra Gotti lembra ainda que as creches podem colaborar com a mitigação da insegurança alimentar e com a prevenção das violências. “Os benefícios se traduzem em maior aprendizado ao longo da trajetória escolar. As crianças podem ter mais chances de ingresso na universidade, menos envolvimento em atividades ilícitas, menos chances de gravidez precoce e melhor empregabilidade”, diz.

Quais os caminhos para zerar as filas?

Antes de conseguir o acesso para todas as crianças, os municípios precisam conhecer sua demanda. É o que diz a Lei 14.851, que obriga o poder municipal a criar mecanismos para garantir o atendimento à educação infantil antes dos 3 anos de idade. Além disso, é importante definir critérios, priorizando as famílias que mais precisam de atendimento

Alessandra Gotti aponta que 56% dos municípios brasileiros não têm uma política de priorização para formar as filas de creches. Isso, portanto, seria um passo importante a ser dado. “Muitos [municípios] sequer coletam informações como renda familiar e participação em programas sociais, que seriam importantes para administrar essa política”, explica. “Então, estabelecer uma regra para ordenação de vagas dá às entidades do Sistema de Justiça uma perspectiva e, com o diálogo e a cooperação entre os setores, poderá inclusive reduzir a necessidade de judicialização.”

Outra medida eficiente é ter novas creches. Para isso, o programa nacional Novo PAC – Programa de Aceleração do Crescimento – assegurou que, até 2026, vai construir 2.500 creches e pré-escolas. O edital aponta que as novas unidades estarão em áreas de vulnerabilidade social. A expectativa é beneficiar mais de 110 mil crianças de 0 a 5 anos em 1.177 municípios e no Distrito Federal.

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