A Páscoa das crianças entre brindes em ovos e memes de preços

Como aproveitar datas comemorativas além do valor comercial é uma discussão que não sai de moda nas casas das famílias brasileiras

Michele Bravos Publicado em 06.04.2023
Foto de uma mulher e uma menina fazendo ovos de Páscoa juntas. Ambas são negras e usam roupas brancas
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Resumo

O preço em alta do chocolate e os novos produtos chegando ao mercado marcam mais uma Páscoa. Criar um repertório afetivo em família para essa data pode ser um caminho para afastar as crianças dos estímulos ao consumismo.

Todo ano o meme dos preços do chocolate em barra e do bombom em comparação ao preço dos ovos de Páscoa cada vez mais caros vem nos lembrar das explorações comerciais que marcam a data e o apelo aos desejos infantis. Pela primeira vez neste ano, Malu, 13, pediu um ovo desses bem chamativos – de uma marca reconhecida pelos brindes que acompanham o chocolate – e deixou sua mãe, Juliana Montoya, num impasse. Não apenas porque comprar ovos de Páscoa não é uma prática da família, mas também pelas grandes cifras: o quilo de alguns ovos de Páscoa se aproximam do valor de uma cesta básica (cerca de R$ 700)

“Depois de pensar muito, decidi comprar o ovo de chocolate que ela pediu, porque eu não quero que esse desejo não atendido encontre lugar num sonho idealizado, podendo gerar o efeito contrário da intenção de mostrar a ela que o que importa são as relações e de que é possível consumir de forma responsável”, diz Montoya.

Em 2023, o quilo dos ovos de Páscoa industrializados está em média R$ 183, de acordo com levantamento feito pela consultoria Kantar. Esse valor revela que os ovos de Páscoa subiram muito acima da inflação acumulada no último ano. Segundo dados da FGV, o produto teve uma aceleração de preço de 27,31% enquanto a inflação esteve em 4,81%. Já o quilo do ovo de Páscoa artesanal é R$ 51 mais barato do que o industrializado.

Mãe também de Sarah, 8, Montoya percebe que, conforme as filhas ficam mais velhas, é cada vez mais difícil afastá-las de estímulos ao consumismo. “A gente fica tentando escapar dessa prisão de ter que se adequar ao que nos é oferecido, mas nem sempre conseguimos”. Nesse desabafo fica evidente que é preciso mais do que boa vontade para superar o consumismo, principalmente em uma comemoração como a Páscoa, em que, em 2023, a previsão é colocar no mercado brasileiro 440 produtos associados à data, sendo 163 lançamentos. É o maior número desde 2015, de acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Amendoim e Balas (Abicab).

Para a jovem ativista climática Caroline dos Santos, 20, integrante do Movimento ESG Antirracista, essas datas comemorativas escancaram as desigualdades sociais do país. Por isso, ela sugere se questionar: a favor de quem acontece a movimentação da economia? Uma forma de mostrar para as crianças como o consumo pode ser mais responsável, segundo ela, é considerar o coletivo ao comprar produtos de Páscoa, apoiando os microempreendedores e famílias locais.

A máquina de desejos que gera crianças consumistas

Thaís Rugolo, advogada do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, comenta que, apesar de ser uma prática ilegal, grandes empresas investem milhões em publicidade infantil, aproveitando-se de uma fase em que as crianças ainda não possuem todas as habilidades cognitivas e sociais para fazer um juízo de valor das peças publicitárias. Além disso, a publicidade infantil apela para uma mensagem de pertencimento que leva crianças a acreditarem que, tendo o que desejam, se sentirão mais incluídas – o que não é verdade. 

O bem viver da criança, considerando a garantia de seus direitos, é responsabilidade compartilhada entre família, sociedade (incluindo empresas) e Estado:

  • Para as famílias: incentivar momentos que valorizem o ser mais do que o ter; conversar com as crianças sobre como a publicidade funciona, explicando os impactos negativos do consumismo; e denunciar práticas de empresas que violem os direitos de crianças e adolescentes.
  • Para as empresas: assumir a responsabilidade de respeitar os direitos de crianças e adolescentes, abstendo-se de realizar publicidade infantil; e direcionar suas comunicações mercadológicas aos responsáveis, que são capazes de reagir criticamente às informações apresentadas.
  • Para o Estado: garantir que as empresas cumpram com a legislação, coibindo abusos e responsabilizando violações.

Como expõe Rugolo, “na Páscoa, as marcas recorrem a estratégias como o uso de embalagens coloridas e brindes relacionados a personagens de desenhos animados ou de programações infantis, com a intenção de se aproveitar da deficiência de julgamento das crianças”. Ela explica que as crianças utilizam do “fator amolação” ao pedirem por algo de forma insistente até que os adultos cedam e comprem o que querem – sendo que, muitas vezes, são motivadas apenas pelo desejo de ter os brindes que estão dentro dos ovos de Páscoa. Isso pode gerar um estresse familiar e até levar ao endividamento das famílias, ressalta. A advogada ainda alerta que esse tipo de venda é proibida, pois é considerado venda casada, ação vedada pelo Código de Defesa do Consumidor no seu artigo 39, inciso I. 

“O programa Criança e Consumo sempre enfatiza que ‘ninguém nasce consumista’. Ou seja, o consumismo é uma construção social. E quando nos deparamos com uma sociedade consumista, acabamos convivendo desde muito cedo com estímulos que nos ensinam que ter algo vale muito mais do que ser“, afirma Rugolo. Para ela, um pensamento crítico sobre a Páscoa também importante de ser abordado com as crianças é em relação aos impactos na vida de pessoas mais vulneráveis e no meio ambiente causados por grande quantidade de plástico nas embalagens e brindes.

Reconhecendo que a responsabilidade não é só das famílias, mas também pensando de uma forma mais propositiva em relação aos problemas em torno do consumismo, Rugolo sugere que os adultos reflitam sempre sobre suas próprias relações com o consumo. “Afinal sabemos que as crianças se espelham no comportamento dos adultos com quem convivem”, diz. E tem o apoio de Montoya, que desconhece prática melhor que o exemplo para ensinar algo para as crianças. 

“É importante que as famílias encontrem as suas próprias estratégias de superar o consumismo, não se comparando com outras. O que vale é tentar. Às vezes conseguimos, às vezes não…”

Tradições baseadas no afeto

Para Santos, a melhor forma das famílias driblarem o consumismo é criar um repertório afetivo com as crianças e valorizar o tempo juntos. “Criar momentos em família em que as crianças possam fazer chocolates é uma boa ideia, além de tentar reduzir o tempo de tela das crianças, onde frequentemente estão sendo veiculados anúncios“.

Na família Montoya, a Páscoa é comemorada com refeições em família, pegadinhas de coelho pela casa, caça ao tesouro, momentos de fazer bolachas e chocolates caseiros. Já houve anos em que relembraram passagens bíblicas que contam a história da Páscoa e outros em que apenas curtiram os dias de feriado… 

Para a mãe de Malu e Sarah, passar tempo juntos em família segue uma das melhores estratégias para mostrar às filhas o que realmente importa em datas como a Páscoa, mas também na vida. “Valorizamos o tempo junto, com presença. O afeto entre as pessoas se revela de diferentes formas, mas pressupõe olhar para o outro e é isso que queremos passar para elas”.

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