Michèle Petit nos convida a encontrar beleza mesmo na crise

Em seu novo livro “Somos animais poéticos”, a antropóloga francesa Michèle Petit defende o contato com a beleza por meio da arte desde a primeiríssima infância

Célia Fernanda Lima Renata Rossi Publicado em 11.10.2024
Imagem de capa para matéria sobre novo delivro de Michèle Petit mostra uma menina negra, de cabelos com tranças, sorrindo em meio a um campo de flores laranjas.
OUVIR

Resumo

Em entrevista ao Lunetas, a antropóloga francesa Michèle Petit reflete sobre como o contato com a arte e a beleza, desde a infância, nos constitui e nos humaniza, e é fundamental para nosso contato com o mundo.

“As crianças são sensíveis à beleza e gostam de partilhar momentos de exploração dos seus rostos, lugares, objetos e livros. A beleza está na vida, até no dia a dia. O que importa é prestar atenção.” Para a escritora e antropóloga francesa Michèle Petit, a beleza, seja ela criada por meio das artes ou contemplada a partir da natureza, tem papel fundamental no equilíbrio de nossos afetos e de nossa relação com o mundo.

Em entrevista ao Lunetas, Petit afirma que as crianças nos mostram isso desde a primeiríssima infância. “Elas têm necessidade de uma língua melodiosa, de canções, de histórias, de imagens dotadas de qualidades estéticas”. Então, para ela, isso permite que experimentem “um bem-estar físico e psíquico, muito particular. De sentir uma harmonia, de estar em sintonia com seu entorno e seu mundo interior. Sensação momentânea, mas que se inscreve no corpo e no espírito, e deixa rastros”.

Mas como falar de beleza em contextos de extrema vulnerabilidade? Em seu novo livro, “Somos animais poéticos: a arte, os livros e a beleza em tempos de crise” (Editora 34), a autora reúne uma série de ensaios apresentados em conferências nos últimos anos. Nele, há um convite a reaprender a olhar o mundo, sobretudo em tempos de crises sociais, climática e violentas.

“O direito à beleza deveria ser o resumo final de todos os outros direitos humanos” – Luis García Montero, poeta espanhol

O escândalo de falar sobre beleza em meio ao caos

É justamente quando há miséria e catástrofes que a beleza se torna ainda mais necessária, em especial a quem enfrenta as dificuldades. Contudo, preservar o olhar das crianças, que se espanta com o mundo e quer explorar seus mistérios, não é tarefa fácil.

Por isso, Petit destaca a importante contribuição de quem as conduz para que reconheçam a beleza ao redor. Seja nas miudezas do cotidiano ou na grandiosidade da natureza, como no texto em que o escritor uruguaio Eduardo Galeano conta do menino que pede ao pai que o ajude a olhar o mar pela primeira vez.

Segundo ela, apesar de todas as adversidades nos contextos de crise, a vida resiste a partir da imaginação. Muitas vezes com a dedicação de pais, educadores, bibliotecários, mediadores de leitura, contadores de histórias ou artistas. Essas pessoas – a quem chama de “facilitadores culturais” – combinam literatura, arte e até ciência. Tudo para construir formas de convivência mais amáveis e solidárias para crianças e adolescentes.

“Eles [os facilitadores culturais] sabem que não vão corrigir os desajustes nem as desigualdades. Mas observam que contribuem para abrir um campo de manobra e ampliar o horizonte de possibilidades. Também para redescobrir a noção de futuro e a frágil, mas vital, possibilidade de sonhar — o que já é muito”, explica em um trecho de “Somos animais poéticos”. Para ela, “existe no coração da criança uma disposição enciclopédica indomável que é o amor pelo mundo“. E é essa disposição que as fará, mais tarde, querer cuidar dele, preservá-lo.

Entre as muitas vozes que costura no livro, de pessoas famosas e anônimas de diversas partes do mundo, Petit cita o trabalho do escritor francês François Cheng, sobre meditações em torno da beleza. “Nestes tempos de miséria onipresente, de catástrofes naturais ou ecológicas, falar de beleza pode parecer incoerente, inapropriado, até provocativo. Quase um escândalo.”

Image
“Somos animais poéticos: a arte, os livros e a beleza em tempos de crise”, Michèle Petit (Editora 34)

Neste conjunto de textos, a antropóloga, escritora e pesquisadora Michèle Petit considera como a literatura, oral, escrita, e outras formas de arte podem nos ajudar a recuperar nossos desejos. Também a nos conectar conosco e com o mundo à nossa volta. Há 20 anos, ela coordena um programa de leitura em espaços de crise. Tem estudos sobre a relação das crianças e dos adolescentes com os livros, investigações sobre a leitura no meio rural e o papel das bibliotecas públicas contra os processos de exclusão. Atualmente, analisa a leitura em zonas de conflitos armados, migrações forçadas e comunidades empobrecidas.

A imaginação que nos ajuda a enfrentar a realidade

“Em todas as culturas, aprendemos antes a música da língua e sua prosódia, que não se ensina, transmite-se”, afirma Petit em seu livro. A partir dessa compreensão, percebemos que, antes de uma criança falar, ela dança. E que antes de entender as sílabas, os bebês são sensíveis à melodia da voz.

Portanto, a defesa de Petit é de que precisamos da beleza “não para ‘elevar o espírito’, mas para sonhar o mundo”. Uma vez que essas experiências chegam como tentativas de reconstrução e de restaurar a capacidade de sonhar, pode estar aí a potência do contato com a arte nos contextos de crise.

Por outro lado, a ausência do “sonho cotidiano da humanidade”, que são essas construções estéticas e culturais, nos destrói. Como antídoto a esse esvaziamento Petit relembra o que nos ensinou o professor Antonio Cândido: não existe ser humano que possa viver, no dia a dia, sem uma dimensão poética, ficcional ou dramática. “Para ele (e para mim), trata-se de uma necessidade universal que deve ser satisfeita, e cuja satisfação constitui um direito”.

“A beleza traz doçura ao mesmo tempo que acalma, acolhe, traz de volta a capacidade de sonhar, mas também permite dar forma e sentido a acontecimentos insanos, pensar o impensável em vez de se tornar para sempre prisioneiro dele.”

Ousar parar o tempo para se conectar com as crianças pela linguagem é o que pode nos levar a enxergar o belo, mesmo diante de grandes enfrentamentos cotidianos. Presente nas comunidades originárias, “durante muito tempo as culturas orais apresentaram com alguma poesia o mundo às crianças. Deram-lhes acesso à beleza, a uma linguagem melodiosa e metafórica, graças às cantigas, canções, ditados, mitos ou lendas”, diz Petit.

Desse modo, as tradições orais permitem às crianças “se interpor entre si e entre todo um tecido de canções, palavras e histórias”. Envolver as crianças nesse processo é dar a elas a oportunidade de construir seus olhares para reconhecer a beleza e construir “um mundo invisível que completa o mundo real e o torna habitável”.

“Esse outro mundo, inapreensível, invisível, mas tão real quanto o mundo que podemos tocar e que o prolonga, foram as culturas orais muito mais do que as escritas que há muito tempo o moldaram.”

Libertar a leitura das amarras da utilidade e aproximá-la das emoções

Na infância, é comum associar o primeiro contato com os livros a uma “moral da história”. Ou então, à alfabetização e a objetivos como aprender algo de ordem prática (as cores, por exemplo). Nesse sentido, o direito à beleza de uma poesia, à inventividade de um livro ilustrado ou à conexão com a ancestralidade de um conto oral podem ficar em segundo plano. Em resumo, para a pesquisadora, atribuir à leitura algo que sempre precisa ser útil pode levar o “direito à beleza” a ser mal interpretado.

Em seu novo livro, Petit responsabiliza as instituições educativas e culturais por desenvolver apenas o que é útil e mensurável. “A obsessão pela utilidade é contraproducente. A leitura, assim, se torna uma tarefa à qual se deve submeter para satisfazer os adultos”, alerta.

Além disso, as experiências mais bem-sucedidas que encontrou em anos de estudos sobre as práticas de leitura em contextos críticos mostram o contrário. Segundo ela, todas foram desenvolvidas sem pensar em uma “rentabilidade imediata ou em resultados quantificáveis”. É assim que se estimula o interesse por aprender. “Este ambiente reativa o devaneio, o pensamento, a disposição inventiva e estimula o interesse pela aprendizagem.”

Efeitos do contato com a arte desde a infância

Um estudo realizado pelo National Endowment for the Arts, com estudantes da Inglaterra, Austrália e EUA, mostrou que jovens de classes mais baixas são os que parecem tirar melhor proveito da exposição às artes na infância e adolescência. A taxa de desistência no ensino médio entre os estudantes que tiveram contato com as artes em idade escolar é de 4%, em contraposição a 22% entre aqueles que não participaram de atividades culturais. A vaga na universidade se tornou realidade para 18% dos jovens que participaram de atividades culturais. Além dos benefícios para a vida escolar, há mais chances de sucesso profissional e cidadãos mais engajados em suas comunidades.

Resgatar o que é belo dia a dia

Essa educação da atenção, do olhar, é fundamental numa época em que a relação que nos rodeia é, sobretudo, de consumo ou de depredação devastadora”, define Michèle Petit. Ainda mais diante da concorrência com telas e do hiperestímulo a que está sujeita a infância.

Além disso, a luta pela sobrevivência e o trabalho cotidiano cada vez mais tomam o tempo dos adultos. Então, segundo ela, estamos menos disponíveis para transmitir essa poética. Mesmo sendo as histórias de família, cantigas ou causos dos antigos. Todo o conjunto de saberes que constitui a nossa cultura e cada um de nós. Em geral, deixamos para trás “uma linguagem que carrega mitologia e poesia” nem partilhamos com os filhos “momentos para contar, descobrir e sonhar com o mundo”.

Em vez disso, a comunicação entre pais e filhos acaba servindo apenas para “a designação imediata e utilitarista, ou para dar ordens”. Além disso, a linguagem engessada impede de “experimentar uma sintonia com o mundo e com seu interior”, faz com que “nenhum mundo imaginário complemente o mundo real” dessas crianças.

Para reverter isso e recuperar a capacidade de enxergar a beleza, Petit recomenda momentos de conexão. Uma conversa com avós, a escuta de uma canção com os irmãos, a leitura de poesias com os pais ou um trava-língua com os professores.

Em vez de pensarem na utilidade ao ler ou contar histórias para os filhos, que os pais possam se dedicar “gratuitamente ao uso das palavras tão vital quanto ‘inútil’, livre, próximo às emoções, ao prazer compartilhado, distante do controle e da avaliação”. Ou seja, aproveitar a palavra, sem precisar de um objetivo. Apenas deixá-la fluir. Como ela diz, os rastros deixados por esse olhar que acolhe as belezas seguem para a vida.

Leia mais

Comunicar erro
Comentários 1 Comentários Mostrar comentários
REPORTAGENS RELACIONADAS