A evolução da educação especial brasileira nos últimos anos

Professores, alunos e famílias contam como a educação especial ampliou os direitos de estudantes com deficiência e o que ainda falta melhorar para a inclusão

Célia Fernanda Lima Publicado em 29.07.2024
imagem de capa para matéria sobre a evolução da educação especial mostra um menino branco com síndrome de down, usando uniforme escolar e mochila, correndo em um pátio de escola com outras crianças ao fundo
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Resumo

Apesar de mais reconhecimento e políticas públicas voltadas para a educação especial de estudantes com deficiência, ainda existem barreiras dentro e fora da escola para alcançar a inclusão efetiva.

Quando era criança, a professora Lucielys Magalhães sentia dificuldades em interagir em sala de aula, no interior da Paraíba. “Eu só estava na escola para acompanhar outros colegas. Não entendia muito bem o que diziam e ria apenas para mascarar”, lembra. Mais tarde, desenvolveu um hiperfoco em temas relacionados à educação e conversar continuava sendo um desafio. “Eu só queria falar sobre as aulas, as pesquisas e como ensinar. Mas meus amigos se afastavam porque não queriam falar disso”. Foi então que descobriu estar dentro do espectro autista.

Já em Sorocaba (SP), Benyamin, 9, teve que ficar seis meses sem frequentar a escola. Além do local não oferecer o suporte necessário para as suas múltiplas deficiências, as constantes situações de capacitismo levaram os pais a procurar a Justiça para conseguir outro lugar para o menino estudar. “Ele tem síndrome de Down, autismo e surdez. Então, precisa, no mínimo, de um professor auxiliar e um intérprete de Libras”, explica a mãe, Gabriela Pereira. Durante esse tempo, o único apoio que Benyamin teve foi da família.

“Existe uma burocracia grande para conseguir que ele estude em uma escola com tudo o que precisa”, diz Gabriela. Por isso, a ativista das causas de diversidade e inclusão, e administradora do perfil “Família Afro Atípica” conta que, apesar dos laudos que comprovam as necessidades do filho, todos os anos fica angustiada na hora da matrícula. “Às vezes, só garantem um profissional de apoio. Mas, geralmente, são pessoas com cursos básicos ou estagiários dos anos iniciais de pedagogia, que não sabem como lidar e educar alunos atípicos.”

“Não é o meu filho que não tem capacidade de estudar em uma escola regular, mas a escola regular que não tem capacidade e preparo para recebê-lo.”

Atualmente, Lucielys dá aulas no ensino fundamental de uma escola pública da zona ribeirinha de Santa Rita, na Paraíba. Porém, apesar da evolução da educação especial, para ela, as salas de aula continuam lotadas e a maioria das crianças com deficiência não tem o mínimo de apoio. “Muitas deixam de ir para a aula e ficam em casa esperando um recurso.”

Cada um dos oito alunos com algum tipo de deficiência na sua turma tem necessidades específicas, mas apenas um conseguiu o direito de ter uma professora auxiliar. “Ela acaba ajudando todos os outros”, conta. Além disso, manter a frequência de aula dos alunos atípicos e fazer uma mediação eficiente, que os incluam de fato, é o mais difícil. “Como vou ensiná-los se eles não vêm para a escola e se não tenho os recursos adequados?”

O que a educação especial deve oferecer aos estudantes?

A educação especial atende necessidades específicas de estudantes com deficiência, autismo e altas habilidades/superdotação. De acordo com a legislação, esses estudantes têm direito a suporte adequado para sua inclusão no ensino regular, o que envolve:

  • Intérprete de Libras
  • Materiais em braile
  • Atendimento Educacional Especializado (AEE)
  • Profissionais de apoio
  • Acessibilidade para cadeirantes (rampas, elevador…)
  • Atividades adaptadas 

Conforme prevê a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), é responsabilidade do Estado “assegurar as condições necessárias para o pleno acesso, participação e aprendizagem dos estudantes com deficiência”. Contudo, um decreto do Governo do Estado de São Paulo autoriza o auxílio de um familiar ou de um profissional particular para acompanhar os estudantes. Para especialistas em educação, a norma pode aumentar ainda mais as desigualdades sociais entre os alunos.

Inclusão esbarra na falta de apoio profissional e no capacitismo

No dia a dia, Lucielys sente “o quanto faz falta a formação e o apoio para que os professores aprendam a lidar com alunos com deficiência. Muitas vezes a própria família deposita na escola a responsabilidade de cuidar e educar”.

Como explica a pesquisadora e professora de educação especial e Libras, Arlete Marinho, que coordena a acessibilidade da Universidade Federal do Pará, ainda falta uma regulamentação oficial para profissionais de apoio qualificados. Ela explica, portanto, que “esse processo está no Congresso Nacional. Se aprovado, será um grande avanço”. Mas, segundo ela, ainda há o pensamento de que o aluno com deficiência ou com altas habilidades é de responsabilidade apenas dos profissionais do AEE. Porém, todos que fazem parte da escola precisam saber acolher e educá-lo”.

Esse pensamento somado à ausência de profissionais de apoio fizeram Gabriela perceber como os professores ficam sobrecarregados. “Minha luta é por uma inclusão feita de maneira correta, para que as crianças tenham atenção integral de cada profissional em seu lugar. Por isso, as escolas deveriam ter assistente social, psicopedagogo e um psicólogo”, diz.

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Arquivo pessoal

Gabriela Pereira precisa recorrer à Justiça para garantir que o filho Benyamin, 9, consiga frequentar a escola, em Sorocaba (SP), com todos os recursos que necessita. Mesmo assim, ele passou a maior parte deste ano sem aulas.

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Arquivo pessoal

A professora paraibana Lucielys Magalhães lembra das dificuldades de interação na infância, antes de seu diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista. Apesar de perceber a evolução nas condições da educação especial, ela afirma que ainda falta estrutura nas escolas.

Além da falta de investimentos do Governo, a professora Lucielys ressalta “o capacitismo contra os estudantes deficientes e a barreira atitudinal” como os maiores desafios para a educação especial inclusiva.

“É preciso parar de pensar que o outro está lá só para ocupar espaço”

Quais são as barreiras enfrentadas pelas pessoas com deficiência?

Além da barreira atitudinal, a LBI classifica-as em:

  • urbanísticas;
  • arquitetônicas;
  • nos transportes;
  • nas comunicações e na informação;
  • tecnológicas.

Qual o percurso da educação especial no Brasil?

Prevista no artigo 58 da Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional (LDB), a educação especial faz parte do contexto da educação inclusiva. Portanto, diz respeito à educação de estudantes diversos em relação à raça, cor, gênero, origem étnica e outras particularidades, dentre elas, a deficiência.

Um dos marcos históricos dessa modalidade no Brasil foi a criação do Instituto dos Meninos Cegos e o Imperial Instituto dos Surdos, ambos no século 19. Já na década de 1960, a LDB previu a inclusão de crianças com síndrome de Down no ensino regular. No entanto, só em 1988 a Constituição Federal legalizou o atendimento especializado de alunos com deficiência. Assim, no ano seguinte, as matrículas desses alunos em qualquer instituição de ensino pública ou particular tornaram-se obrigatórias.

“Antes da Política Nacional de Educação Especial na perspectiva inclusiva, essa modalidade era segregacionista. Portanto, vejo esse percurso como algo positivo, pois organizou as diretrizes para o atendimento desse público”, analisa a pesquisadora Arlete Marinho. Segundo ela, “a educação especial abriu espaço para pensar o AEE na educação básica e ter uma organização prévia para o ensino superior, já pensando nos estudantes que vão ingressar nas universidades”.

A ampliação da educação especial também passou pelo maior acesso a informações e possibilidades de diagnóstico. Outro ponto foi o aumento nas matrículas no ensino regular. De acordo com o Censo Escolar 2023, em cinco anos, o aumento foi de 41%. Ou seja, saltou de 1,2 milhão, em 2019, para 1,7 milhão no ano passado, sendo que 91% desses estudantes estão em classes comuns.

No contexto global, diversos documentos reforçaram diretrizes para a inclusão de pessoas com deficiência na educação regular. Dentre as principais está a Declaração de Salamanca, de 1994, da Organização das Nações Unidas (ONU). O texto aponta políticas e práticas em educação especial que levaram o Brasil e outros 91 países a seguirem as orientações com base em quatro pensamentos:

  • A educação é direito de todos, independente das diferenças individuais
  • Todas as necessidades educativas especiais dos estudantes devem ser atendidas
  • A escola deve adaptar-se às especificidades dos alunos
  • O ensino deve ser diversificado e ocorrer em espaços comuns para todas as crianças

Mais tarde, a mobilização coletiva estimulou a criação de outras referências internacionais. Em 2000, por exemplo, a Unesco firmou a Educação para Todos: o compromisso de Dakar. Ela declara que a educação deve atender as necessidades de populações mais pobres, das comunidades rurais, nômades, minorias étnicas e pessoas com deficiência.

Formação continuada de professores pode fazer a diferença

Conforme dados do Ministério da Educação, de 2022, a conta entre o aumento de matrículas e a falta de profissionais especializados não fecha. Isso porque cerca de 94% dos professores atuantes no país não possuem formação continuada sobre educação especial.

“Ainda precisamos avançar na formação inicial e continuada sobre educação especial e suas especificidades. No Pará, por exemplo, ainda não há uma graduação com Licenciatura em educação especial. Sabemos que apenas uma disciplina sobre o assunto não é suficiente para essa formação”, enfatiza Marinho. Ela também explica que a procura pela formação continuada para trabalhar com Transtorno do Espectro Autista aumentou, mas “ainda há carência para outros públicos da educação especial, como deficiência física, visual, auditiva, intelectual e de alunos com altas habilidades/superdotação”.

A pesquisa “Educação inclusiva e a formação continuada de professores: aprendizados nacionais e internacionais”, realizada pelo Alana, mostra experiências de formação continuada para a educação inclusiva em oito casos no mundo – Cidade Autônoma de Buenos Aires (Argentina); Maracanaú, Pinhais e Santos (Brasil); Glasgow (Escócia); Comunidade Autônoma Valenciana (Espanha); e em Portugal e no Uruguai. Nas três cidades brasileiras, há práticas inclusivas. Em Maracanaú (CE), dois terços das escolas dispõem de salas de recursos multifuncionais; Santos (SP) tem professores do AEE em todas as escolas; e Pinhais (PR) conta com um Centro de Formação dos Profissionais da Educação.
Os casos analisados apontaram caminhos para fortalecer a formação de professores em uma perspectiva coletiva. Isto é, estimulam “a reflexão do papel de gestões públicas, organizações da sociedade civil e dos próprios docentes com a educação inclusiva”. Dentre as principais evidências está a de que “a oferta da formação de qualidade aos professores promove melhorias para uma educação inclusiva em que todas as crianças e todos os adolescentes podem aprender mais e melhor juntos em uma mesma escola”. Com lançamento previsto para setembro, o estudo teve a cooperação da Unesco e coordenação da Vindas Educação Internacional, de Portugal.

“A formação continuada para a educação inclusiva prepara os professores e demais profissionais da educação para promover a responsabilização de todos os estudantes na construção de ambientes inclusivos.”

Quais as próximas metas da educação especial para alcançar a plena inclusão no país?

Ano passado, o Governo Federal anunciou um investimento de mais de 3 bilhões para ações de infraestrutura, transporte, recursos de tecnologia assistiva e pedagógicos, e formação de profissionais. A medida faz parte do Plano de Afirmação e Fortalecimento da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI).

A principal meta é ter mais de 2 milhões de estudantes da educação especial matriculados em classes comuns até o final de 2026. Além disso, a política pretende ofertar mais salas de recursos multifuncionais e ampliar as matrículas na educação infantil. O plano tem quatro eixos centrais de trabalho:

  • Expansão do acesso: com ênfase na educação infantil, deve criar novas turmas e investir em atenção precoce;
  • Qualidade e permanência: maior oferta de transporte escolar, acessibilidade nas escolas, salas de recursos multifuncionais, Atendimento Educacional Especializado (AEE) e regulamentação do trabalho de profissionais de apoio escolar; 
  • Produção de conhecimento: apoio efetivo em pesquisas sobre educação inclusiva e incentivo para pesquisadores com deficiência;
  • Formação: investimentos na formação de professores de salas comuns, professores de AEE e gestores da educação especial na perspectiva da educação inclusiva. 

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