Comunicação Não Violenta pode ajudar a construir um espaço seguro para expressar sentimentos e necessidades, além de relações mais saudáveis com as crianças
Identificar e expressar sentimentos e necessidades por meio da Comunicação Não Violenta (CNV), assim como reconhecer erros e menos exigência por parte dos adultos encoraja as crianças a se relacionarem de modo mais saudável e fortalecerem a conexão.
“Eu vejo que você está bravo porque o brinquedo quebrou. O que podemos fazer para consertá-lo?“ Conversar de modo não violento com as crianças menores, com frases e explicações simples e curtas, é a orientação da psicóloga e fundadora da Escola de Empatia, Camila Marques. Isso porque, entre 2 e 5 anos, elas ainda têm um entendimento limitado de conceitos abstratos.
Já para crianças em idade escolar, por volta dos 6 aos 12 anos, é possível encorajar discussões sobre os sentimentos e incentivar a empatia, sugerindo que se coloquem no lugar de um colega ou familiar. Por exemplo, diante de um conflito envolvendo mais crianças, o adulto pode perguntar ao grupo: “Como vocês acham que o João se sentiu quando não foi convidado para jogar com vocês?“
Mas, se hoje Camila fala ao Lunetas sobre como ter relações mais saudáveis, foi preciso primeiro perceber “o quanto era desafiador ser empática e me comunicar de maneira mais compassiva com pessoas próximas”, diz. Isso aconteceu quando ela se tornou mãe de um menino, hoje com 10 anos. Foi então que veio a motivação para começar a estudar Comunicação Não Violenta (CNV).
Engana-se quem procura a CNV acreditando que vai viver livre de conflitos, ou que vai aprender a falar de um jeito bonito, ou ainda que vai desenvolver uma técnica para convencimento. O que o conhecimento sobre CNV possibilita é perceber e lidar com os conflitos com mais disposição e coragem para transformá-los.
“A prática da CNV nos sugere esse processo de transformação, sempre de dentro para fora e em constante troca com o outro”, diz Camila Marques
“Eu diria que é uma proposta de mudança do nosso jeito de ser e de estar no mundo aplicado a uma nova forma de nos comunicar”, define Silvia Silva, psicóloga e facilitadora de CNV. “Como afirma o sistematizador da CNV, Marshall Rosenberg, em virtude da sociedade fundada em violência em que vivemos, somos educados a ser pessoas violentas, ainda que de forma inconsciente.”
Para ela, a mudança proposta pela CNV implica em reconhecer a humanidade das pessoas, e também em romper com o padrão de querer dominar e controlar tudo e todos. “É um convite para adotarmos um modelo de relações horizontalizadas e de poder compartilhado.” Nesse modelo, prevalecem acordos construídos com diálogo e, portanto, escuta atenta das crianças.
1. Observar: se a leitura dos fatos está gerando ou pode gerar conflito, é melhor relatar os acontecimentos sem adjetivos, suposições, acusações ou julgamentos.
2. Perceber sentimentos: é olhar para dentro de si para tentar identificar quais sentimentos estão mais fortes naquele momento.
3. Identificar necessidades: avaliar quais necessidades podem ter sido deixadas de lado em um conflito e também quais estão bem atendidas ajuda a entender por que os sentimentos percebidos estão tão evidentes.
4. Fazer pedido: por fim, é hora de comunicar o que você gostaria de fazer ou o que gostaria que o outro fizesse. Nesse caso, vale lembrar que um pedido não é uma exigência. Ou seja, há margem para que o pedido seja aceito parcialmente ou até recusado. Isso demandaria um repensar conjunto sobre a transformação do conflito.
Fonte: Instituto CNV Brasil
A psicóloga e mãe Camila Marques sugere que, antes de querer praticar a CNV, os adultos passem a naturalizar o sentir e dar o exemplo sobre como é possível se expressar melhor na comunicação com os filhos. “Precisamos ser vulneráveis, pedir apoio e demonstrar frustrações.”
“Quando temos empatia com nossos filhos, estamos dizendo nas entrelinhas ‘quero me conectar com você’. E, a partir daí, os caminhos para os acordos estarão mais abertos”
Ela conta que, recentemente, após o filho retornar de um fim de semana na casa do pai, ela reforçou o acordo que há em sua casa sobre não usar o celular durante a semana, ao que o filho respondeu irritado: “Quero morar com meu pai, quando eu tiver 13 anos!”
Tendo como base a CNV, essa situação não é respondida com ressentimento e nem com silêncio. A conversa continua, com o adulto consciente de suas emoções e da criança.Então, ao perceber a chateação do filho, Marques sinalizou que reconhecia o sentimento de frustração do menino, mas também expôs sua preocupação com o sono e a saúde dele. Assim, depois de compreender o lado da mãe, entregou-lhe o celular e o acordo prevaleceu. “Isto não é permissividade, mas a demonstração da nossa disponibilidade para conectar.”
Para a psicóloga e facilitadora de CNV, Silvia Silva, ser provocada a identificar necessidades atendidas ou não é o que nos tira do lugar da culpabilização e isso pode ser libertador. “Jogar luz sobre as nossas necessidades é um ato de maturidade. Isso nos leva a abandonar uma postura mimada e avaliar como estamos contribuindo para o insucesso das nossas relações.”
Tudo isso pode afetar o desenvolvimento infantil, explica Marques. “Em um ambiente permeado pela violência, que se manifesta na desconexão, as crianças crescem com medo, culpa, insegurança, baixa autoestima, tendências a comportamentos agressivos e problemas de saúde física e mental. Elas também podem enfrentar dificuldades sociais, escolares e na formação de um senso moral.”
Estimular a percepção das necessidades humanas é especialmente válido para crianças, pois impulsiona o seu autoconhecimento e ajuda a prevenir violências desde cedo. Assim, algumas estratégias podem apoiar esse percurso de aprendizagem, conforme lista Camila Marques:
Outra forma de apresentar a CNV para as crianças é por meio da leitura em família:
Uma reflexão sobre como é possível promover autoestima, autonomia, autodisciplina e resiliência, nos adultos e nas crianças.
Quais ferramentas são necessárias para que Lara desenvolva autoconhecimento e um olhar de atenção para os desafios que seus amigos da nova escola estão passando?
Para Marques, as estratégias de ensino da CNV contribuem para o desenvolvimento da empatia e a preocupação com o coletivo, os quais devem começar em casa. “Essa é a base para que nossos filhos sejam pessoas empáticas.” Por isso, alerta que “se entrarmos no jogo ‘mas é o meu filho que está errado’, não os ensinaremos sobre a importância de reconhecer o lado do outro”.
Por isso, a psicóloga e facilitadora de CNV Silvia Silva se impressiona como “as crianças cobram, sem constrangimento, coerência dos adultos – sobre o que falam e fazem. Isso é muito maravilhoso!”
As necessidades humanas devem ser compreendidas dentro de contextos culturais específicos, respeitando e valorizando a diversidade de experiências e perspectivas. Essa é uma crítica à teoria da Hierarquia das Necessidades, de Abraham Maslow, que foi desenvolvida no contexto ocidental. Portanto, ela reflete valores e prioridades que podem não ser aplicáveis ou relevantes em outras culturas.
Por exemplo, em muitas sociedades indígenas, a conexão espiritual (colocada no topo da pirâmide de Maslow) pode ser mais importante para o bem-estar do que se sentir seguro fisicamente ou financeiramente (necessidades mais próximas da base da pirâmide). Por isso, Silva questiona: “De que universal se estava falando?”, “Será que se considerou outras cosmovisões de mundo para além da perspectiva ocidental?”.
Integrar a CNV em nossas vidas pode melhorar as relações, trazer mais autoconhecimento e até mais saúde mental. Mas, para isso ser pleno e duradouro, diz Silva, é preciso reconhecer que somos diversos. “Sou uma mulher negra e da periferia. Como tal, vivi e vivo experiências que não via representadas na maioria dos espaços de aprendizado e práticas da CNV”, escreveu em uma rede social. “Nossos corpos e trajetórias são lidas e recepcionadas no mundo de formas muito diferentes e isso gera impactos individuais e coletivos principalmente em sociedades tragicamente desiguais como a nossa.”
“Sem reflexão crítica sobre a CNV, podemos reproduzir violências com pessoas historicamente desprivilegiadas. Com isso, corremos o risco de as silenciar e as obrigar a internalizar regras de fala e comportamento que podem não fazer sentido para suas experiências de vida.”
Alguns fatores que favorecem essa conexão: