Rotinas de beleza, maquiagem e cosméticos: é coisa de criança?

Famílias e especialistas debatem até que ponto é saudável o uso de maquiagens e produtos de skincare pelas crianças

Beatriz Carneiro Camilla Hoshino Publicado em 26.02.2024
Imagem de capa para matéria sobre maquiagem para crianças mostra uma menina loira de cabelos longos passando batom diante do espelho, em uma penteadeira com outros produtos na mesa.
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Resumo

Tutoriais de maquiagem para crianças são uma onda crescente e têm estimulado o consumo, especialmente pelas meninas. Para além do uso lúdico desses produtos, famílias e especialistas debatem quais os impactos na saúde e na construção da autoimagem.

Os vídeos get ready with me (arrume-se comigo, em tradução livre) estão inundando as redes sociais. Basta mostrar a aplicação de séruns, base e máscara de cílios com alguma dancinha do momento que surge um viral no TikTok ou Instagram. O fenômeno poderia ser apenas mais uma tendência virtual se não fosse por um detalhe: meninas estão se tornando protagonistas e consumidoras de tutoriais de maquiagem para crianças.

Manuela, 8, começou a se pintar aos quatro anos, quando ganhou a primeira maquiagem. “Eu acho que isso [se maquiar] começa mais como uma brincadeira, mas pode acabar evoluindo para uma preocupação em estar bonita”, diz a mãe, Marina Verissimo.

Hoje, com mais frequência, Marina conta que a filha adora fazer vídeos se maquiando para postar nas redes sociais. “Volta e meia, ela está se maquiando para fazer vídeos. Ela adora fazer esses tutoriais de maquiagem. Acredito que a influência vem das adolescentes que ela costuma assistir no YouTube”, explica.

Influências e influencers

O Brasil é o terceiro país no ranking mundial de produtos infantis de higiene e beleza, com vendas que ultrapassam U$ 5,5 bilhões, segundo a Euromonitor, empresa que pesquisa mercados globais. Como sinaliza a coordenadora do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, Maria Melo, esse cenário se justifica em partes pelo investimento das empresas em publicidade, inclusive infantil, prática proibida desde 1990, por meio do Código de Defesa do Consumidor. Isso porque dificilmente as crianças identificam o caráter de persuasão da publicidade.

“É ilegal e abusiva a prática de comunicação mercadológica voltada para crianças, independentemente do produto”, diz Melo.

De acordo com a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2021, 85% das meninas entre 11 e 17 anos afirmam ter visto algum tipo de divulgação comercial ao usar a internet. Destas, 73% dizem ter sido impactadas com propagandas sobre maquiagem ou outros produtos de beleza. No mesmo estudo, meninas relatam que, na maioria das vezes, a ação publicitária aparece em conteúdos que ensinam como usar um produto (71%).

É o caso da atuação da Estrela Beauty, City Girls Kids e Magia de Princesa. Essas empresas foram notificadas pelo Criança e Consumo, por influenciadoras mirins recomendarem os produtos de beleza das marcas. Além disso, também se identificou outra prática das empresas para vender maquiagens ao público infantil. É a chamada “way makeup”, que envolve produtos em embalagens lúdicas, que exploram o universo da brincadeira.

“A pressão estética e de hiperconsumo que afeta as mulheres na nossa sociedade também afeta as meninas de forma preocupante”, diz Melo. “Estamos falando de pessoas em fase de desenvolvimento, que são hipervulneráveis e que são incentivadas a um processo de adultização precoce.”

Para a escritora Renata Corrêa, em entrevista ao Criança e Consumo, “em um mundo que ridiculariza a aparência das mulheres para controlar seus corpos, comportamentos e emoções, essa é uma estratégia inteligente: plantar insegurança o mais cedo possível no coração das meninas. E, claro, lucrar muito com isso!“.

Como minimizar os impactos da publicidade infantil?

  • Compreender o interesse mercadológico das empresas e o impacto desse conteúdo na vida das crianças;
  • Mediar o que as crianças acessam, evitando superexposição de conteúdos que induzam ao consumo;
  • Denunciar empresas que fazem publicidade infantil;
  • Respeitar a idade mínima (13 anos) de uso da plataformas, como Facebook, Instagram e TikTok;
  • Estimular brincadeiras longe das telas, em contato com a natureza.

Peles sensíveis

Apesar de não haver consenso entre os dermatologistas pediátricos acerca da idade mínima para o uso de maquiagem, eles recomendam a partir dos 12 anos. Na puberdade, as glândulas sebáceas e sudoríparas se tornam mais ativas, deixando a pele mais espessa e garantindo uma proteção maior. É o que explica Cauê Cedar, dermatologista e especialista em saúde da população negra e LGBTQIA+.

Antes disso, segundo ele, o organismo das crianças absorve os produtos com mais facilidade. “O corpo delas é mais sensível a influências físicas, químicas e bacterianas, até mesmo à ação da água, sabão, sol, calor e da própria roupa.” Embora não haja uma condição clínica que seja associada sempre ao uso da maquiagem na criança,com frequência, componentes que são encontrados na maquiagem de adultos podem causar ressecamento, coceira, irritação e vermelhidão na pele mais delicada das crianças”, esclarece.

Entre eles está o retinol, ativo presente em produtos de beleza para retardar os sinais de envelhecimento. Em excesso, pode causar danos, assim como ocorreu com Amélia Gregory, 13, que quase ficou cega por seguir uma dica de beleza que viu no TikTok. O jornal britânico Daily Mail apurou esse caso.

Em relação ao uso dos cosméticos, principalmente à maquiagem e produtos para o cuidado com a pele, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) adverte que crianças só devem usar produtos infantis e licenciados. Então, o recomendado é que a maquiagem infantil tenha baixa fixação, seja facilmente removível com água e contenha substâncias com sabor amargo para evitar ingestão acidental.

Caso as crianças tenham alergias devido ao uso de maquiagem, Cedar aconselha que os pais lavem o rosto com água e sabão neutro, e procurem um dermatologista credenciado pela Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD).

O profissional ainda alerta que é importante considerar as diferenças para uma abordagem que leve em consideração cada tipo de pele, em especial na adolescência. “Na pele branca, dermatites irritativas são mais visíveis, enquanto na pele preta é comum ocorrer hiperpigmentação [manchas ou cicatrizes que ficam marcadas na pele]. Além disso, a pele preta tende a ser mais oleosa no rosto e couro cabeludo, sendo recomendado o uso de produtos que não contêm óleos ou mais fluidos em sua formulação.”

Estereótipos de gênero

“Quando nasce uma mulher, é preciso demarcar esse gênero de uma forma muito acentuada visualmente”, diz a maquiadora e doutoranda em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, Vanessa Rozan, sobre a preocupação com a aparência presente desde muito cedo. “Ao contrário dos meninos, as meninas costumam usar laçarotes apertados, depois chuquinhas quando os cabelos começam a crescer, além de furarem muito cedo as orelhas para usarem brincos.’

“O valor da mulher é sempre atrelado à beleza, localizada no corpo. Então, as meninas já nascem, em geral, com essa referência”, observa Rozan.

Não por acaso, os elogios costumam estar relacionados ao visual: “Como você está linda” ou “parece uma princesa”. Essa performance se completa ao ganharem de presente bonecas, carrinhos de bebê e joguinhos de chá, demarcando o campo reconhecido como “feminino”. Ou seja, “os brinquedos que a criança recebe, incluindo a maquiagem, já são ensaios lúdicos para performances esperadas”, diz a maquiadora.

Apesar disso, para Rozan, a maquiagem também faz parte do “faz de conta” e da cópia do mundo adulto ao redor. Por isso, a sugestão dela é que as famílias não reprimam, mas atentem aos estereótipos de gênero. “Os pais devem tomar cuidado para que o reforço positivo seja em cima da inteligência, da coragem e de todos os outros atributos que uma criança pode ter, não apenas da aparência.”

A neuropsicóloga e terapeuta cognitivo comportamental para crianças e adolescentes, Thaís Zanin, reitera a importância de ensinar às crianças que a felicidade não está ligada apenas à beleza externa. Segundo ela, auxiliá-las a enxergar, desde cedo, pontos positivos internos, ajuda na construção da autoimagem e autoestima, evitando que, futuramente, passem a buscar se enquadrar em um padrão de beleza inalcançável.

Quando as famílias percebem que algo está saindo do controle [quanto ao uso de maquiagem], a orientação de Zanin é “sondar o que as crianças estão assistindo, em quais pessoas estão se inspirando e tentar conversar para entender como se sentem vendo tudo isso”.

Maquiagem para crianças: brincadeira ou insegurança?

Raíssa, 2, ganhou seu primeiro batom no último aniversário. Desde então, a menina expressou interesse em se maquiar, explorando paletas de cores. No entanto, o que inicialmente era uma brincadeira, evoluiu para uma preocupação com a própria aparência.

“Com apenas dois anos, ela já é bastante vaidosa. Ela sempre busca manter o cabelo arrumado, saindo maquiada e com as unhas pintadas. Ela frequentemente recorre aos meus batons. É um acessório indispensável sempre que sai”, relata a mãe, Gilvaneide Alves.

Segundo a psiquiatra da infância e adolescência, Danielle Admoni, é natural as crianças crescerem imitando o padrão de quem admiram, geralmente pais e responsáveis. Com a maquiagem não é diferente, já que ela passa a integrar um contexto lúdico, natural no desenvolvimento infantil.

“Agora, se a criança acha que não pode ser vista sem maquiagem ou se ela sempre tem que copiar o adulto, daí precisamos pensar, porque isso sai do que é esperado para a idade”, diz Admoni.

A psiquiatra sugere alguns pontos de atenção que podem prejudicar o propósito lúdico. Por exemplo, quando a criança começa a sentir necessidade de se maquiar sempre antes de sair, tirar fotos apenas se estiver maquiada ou solicitar para apagar certas imagens devido a insatisfações com sua aparência.

De acordo com Admoni, o alerta é quando a criança demonstra preocupação excessiva com a maneira como é percebida pelos outros, sempre tentando atender às expectativas alheias. Diante disso, ela sugere que as famílias estejam atentas para garantir um equilíbrio saudável entre a expressão criativa e o desenvolvimento da autoimagem da criança.

“Os pais não necessariamente precisam encorajar o uso de maquiagem, mas também não é imperativo proibi-lo. Entretanto, quando o interesse pela maquiagem começa a se assemelhar demasiadamente ao comportamento de adultos, é crucial intervir”, recomenda. “Manter a criança dentro dos parâmetros adequados à sua idade é essencial para preservar a inocência e promover um desenvolvimento saudável, sobretudo do ponto de vista mental.”

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