Tempo maior de licença pode interferir de maneira positiva na vida dos bebês e das famílias, trazendo impactos para toda a sociedade
Uma decisão do STF pode obrigar o Congresso Nacional a ampliar a licença-paternidade no país. Para especialistas, a medida é importante para equilibrar as tarefas de cuidado entre ambos os sexos e valorizar o trabalho não remunerado de reprodução social.
“Experiências de outros países que já garantiram a licença-paternidade mostram que a taxa de evasão escolar caiu. Além disso, que a criança que também recebe afeto do pai se torna um adulto com menos tendência à violência”, afirma a advogada Ana Carolina Caputo Bastos, membra da CoPai, coalizão formada por diversas organizações que defendem a licença estendida, remunerada e obrigatória.
Em nome da Associação Elas Pedem Vista e do Grupo Mulheres do Brasil, Bastos participou como Amicus Curiae, em etapa de sustentação oral no Supremo Tribunal Federal (STF), defendendo a urgência da regulamentação da licença-paternidade no Brasil.
Em meio às discussões sobre a sobrecarga da mulher nas tarefas de cuidado dos filhos e a necessidade de divisão desse trabalho, o STF decide este mês a regulamentação da licença-paternidade. Com a aprovação da norma, o Congresso Nacional deverá seguir as regras da licença-maternidade, que tem duração de 120 dias, tempo pago pelo empregador.
Em tese, o direito à licença equivalente para pais e mães está previsto na Constituição Federal de 1988. Mas a lei que deveria garantir as regras para efetivar a medida nunca foi votada. Hoje, o tempo previsto para licença-paternidade é de cinco dias, o que pode fazer com que pais deixem de presenciar marcos importantes do desenvolvimento infantil. O próprio cordão umbilical, que transfere oxigênio e micronutrientes da mãe para o feto, leva de 7 a 15 dias para cair após o nascimento.
“A licença não é um direito exclusivamente do pai, ela deve ser enxergada como um direito, sobretudo das crianças, porque elas são as maiores beneficiadas. Mas a gente também vê que é um direito que afeta toda a sociedade”, defende Bastos.
Atualmente, metade das mulheres perde o emprego após retornar da licença-maternidade, como mostra pesquisa da Fundação Getúlio Vargas. No entanto, são elas que também estão à frente de 47,8% dos lares brasileiros como únicas responsáveis pela família. É o que diz um estudo realizado pelo Grupo Globo e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Nesse sentido, Bastos defende a equiparação das licenças maternidade e paternidade tanto como forma de garantir saúde mental e física aos cuidadores, quanto de proteger os direitos das mulheres no mercado de trabalho.
“Se os homens ocupam efetivamente o seu papel de paternidade, consequentemente, as mulheres não são sobrecarregadas e não são colocadas exclusivamente nesse papel de cuidado, podendo apostar em outros papéis sociais”, ressalta Bastos.
A economista Gabriela Chaves também acredita que a medida contribui para mudanças de cultura, principalmente desconstruindo a ideia de que as mulheres têm mais aptidão para cuidar do que os homens.
“Essa licença de hoje traz quase uma penalização para as mulheres que escolhem ser mães”, destaca Chaves. Ela também é fundadora da NoFront Empoderamento Financeiro e membra do coletivo South Feminist Futures. A regulamentação da licença-paternidade, para ela, traz uma mensagem social importante: o cuidado de um bebê recém-nascido é responsabilidade de toda a sociedade.
Apesar disso, o trabalho de reprodução social e manutenção da vida ainda é desvalorizado. Um levantamento do Laboratório Think Olga mostrou que se tarefas como alimentar e dar banho, por exemplo, fossem pagas, seu montante representaria 11% do PIB brasileiro. Isso corresponde a mais que o dobro do que todo o setor agropecuário produz.
Além disso, a economista destaca que é necessário a interlocução de outros agentes como o governo e o setor privado. Assim, seria possível corrigir as desigualdades sociais que envolvem o cuidado.
“A conta de reprodução social precisa ser dividida, mas hoje ela recai sobre as famílias”, diz Chaves.
“Quando minha filha Sofia nasceu, em 2015, tive que ter a iniciativa de organizar para que a empresa fosse atrás das normas que permitiam a licença-paternidade de 20 dias”, conta o jornalista Rodrigo Gomes. Ele também atrasou férias e juntou folgas para acompanhar o nascimento da filha e conseguir estar em casa por 55 dias junto à esposa Fernanda.
O tempo maior que passou com a primeira filha garantiu que a rotina de cuidados essenciais nos primeiros meses de vida fossem compartilhados por igual com a esposa. “Foi essencial no cuidado dela, mas também do nosso enquanto casal, para nenhum dos dois enlouquecer nesse período, principalmente a Fernanda que tinha a tarefa extra de amamentar, que eu não podia fazer”, relembra.
Não por acaso, um quinto dos casais termina a relação nos primeiros 12 meses de vida da criança. Isso acontece principalmente devido à falta de comunicação e divisão de tarefas. É o que aponta uma pesquisa realizada pelo programa de TV americano “The Baby Show” e pelo ChannelMum.com, uma comunidade de pais do Reino Unido.
Durante o nascimento do segundo filho, Lucas, em 2018, a licença de Rodrigo foi de 33 dias. Nesse tempo, o pai assumiu integralmente os cuidados da filha mais velha e apoiou a esposa no acolhimento do novo bebê. “A gente compartilhou muito, principalmente porque não tínhamos nenhum parente próximo para dividir e a Sofia ainda acordava à noite e mamava, mesmo que fosse só para um aconchego e não mais para se alimentar”, diz.
Rodrigo acredita que o período de sua licença não foi suficiente para compreender a nova rotina e as necessidades de um bebê que acabou de nascer. Por isso, defende sua ampliação por, pelo menos, três meses. “Também seria muito importante para o sustento da família, para que as pessoas se mantenham bem e até para o próprio relacionamento. Porque é uma exaustão muito grande o cuidado de uma criança.”
Em 2021, todos os funcionários da Volvo Car Brasil com pelo menos 12 meses de trabalho passaram a ter o direito a uma licença de 180 dias no nascimento de um filho. Apesar de se tratar de uma iniciativa fora da curva, a empresa precisou incentivar os colaboradores homens a usufruírem do benefício.
Essa foi uma oportunidade para a Volvo realizar um trabalho cultural, com palestras sobre os seis primeiros meses de vida da criança, cruciais para o desenvolvimento pleno do ser humano. A ideia era reforçar a importância da presença paterna, não por meio de uma ajuda eventual, mas da participação efetiva.
De acordo com um estudo publicado no periódico americano Pediatrics, a chance de sucesso na amamentação quando o pai também demonstra apoio e considera isso importante aumenta quase 100%. Após oito semanas de nascimento, o número dos bebês que se manteve em aleitamento materno foi de 77,5% quando havia apoio dos pais. Em contrapartida, a porcentagem era de 33,3%, quando os homens se declararam indiferentes.
Abdallah Madi, gerente de produto da Volvo Car América Latina, voltou da licença do seu segundo filho há menos de um mês e definiu o momento de estar com a família como “uma experiência incrível.”
“No meu primeiro filho a Volvo ainda não tinha esse programa, então eu pude comparar as duas experiências. Posso dizer que, desta vez, nitidamente, o laço que eu criei com meu filho é muito mais forte do que com o primeiro nesse mesmo período”, dispara o pai. Ele também viu o impacto de sua presença no bem-estar da esposa, que encarou a fase do puerpério com mais tranquilidade.
“Dificilmente a história de uma empresa vai mudar em seis meses, só porque uma pessoa está fora. Mas a importância do pai estar conectado com o filho e, hoje, ter a segurança de estar aqui no trabalho e saber que está tudo bem em casa não tem preço”, expressa Abdallah.
Há 35 anos, membros do Congresso Nacional recebiam com risadas a votação de emenda que garantia a licença-paternidade de cinco dias. “É uma homenagem ao homem gestante”, disse em tom de chacota o presidente Ulisses Guimarães, no microfone do Plenário da Câmara.
Na sequência, o médico Alceni Guerra, deputado constituinte e autor do texto da proposta, resolveu protestar. Na véspera da votação, ele havia passado a noite cuidando da sua filha recém-nascida. A mãe da criança estava internada, devido a um acidente anestésico no momento do parto.
“Senhor presidente, não havia no mundo, naquele instante, nenhuma Assembleia Nacional Constituinte, nenhum emprego e nenhum patrão que me tirasse do lado dela e dos meus filhos”, disse o deputado em seu discurso. O depoimento fez com que Guimarães pedisse desculpas durante a sessão.
Passadas três décadas, a medida pode enfrentar não apenas o machismo no Plenário, mas também o lobby das empresas, que temem perder lucros e ver o rendimento dos funcionários cair. Acima de tudo, pois o planejamento da licença-paternidade ultrapassa a esfera jurídica.
“A grande dor do mercado é entender quem vai pagar essa conta”, ressalta Chaves. A economista sugere que as empresas assumam a responsabilidade social pelos custos da licença, apesar de considerar que o número de trabalhadores informais no Brasil vem aumentando ano a ano.
Já a advogada Bastos defende que o Estado tenha papel fundamental na medida e crie mecanismos que subsidiem a proposta. Entre eles, a diminuição de impostos durante o período da licença-paternidade. “A gente não pode obrigar que isso seja feito a qualquer custo, principalmente por quem gera emprego. Os efeitos colaterais poderiam ser terríveis. Isso é papel do Estado, que tem que se preparar como se preparou para o benefício da mulher, que é arcado quase exclusivamente pela esfera pública”, dispara.
A votação do STF começou no dia 8 de novembro em plenário virtual. Oito dos nove votos proferidos pelos ministros foram favoráveis a uma equiparação das licenças de homens e mulheres, reconhecendo assim existência de omissão constitucional. Apesar da sinalização positiva da Corte, caberá ao Congresso decidir como serão as regras.
“O que está em questão é a divisão social do trabalho entre gêneros”, disse o ministro Luís Roberto Barroso.
Agora, um grupo de trabalho liderado pelas deputadas Tábata Amaral (PSB) e Amanda Gentil (PP) está em andamento na Câmara dos Deputados. Também participam diversos representantes da indústria, da justiça do trabalho, do ministério público e da família. A apresentação do relatório final virá como um projeto de lei, com as considerações de todos os envolvidos.
“A gente sabe que elas têm conversado com todas as lideranças também. O nosso grupo formou o que seria um comitê de relações institucionais e governamentais, que está fazendo um trabalho de campo orquestrado com as deputadas. Então, se elas sinalizam, por exemplo, alguma dificuldade, a gente tenta preparar material e despachar com essas assessorias”, relata Bastos.
Pela primeira vez na história, são grandes as chances de tornar o cuidado dos filhos nos primeiros meses de vida algo mais equilibrado entre os pais. Apesar disso, Bastos avalia que será um processo de aprendizado. E ainda de assunção de responsabilidade, que deverá contar com empatia de todos os lados, além de incentivo permanente. Tudo isso para que, no futuro, o provérbio africano que diz que é preciso de uma aldeia inteira para cuidar de uma criança seja realidade.
Atualmente, 25.844 mil empresas fazem parte do Programa Empresa Cidadã do governo federal, instituído em 2008. A iniciativa, mantida pela Receita Federal, garante extensão de 15 dias de licença, além dos cinco dias garantidos por lei e deduções fiscais para o empregador. Todas as empresas podem aderir ao regime, mas apenas as que são tributadas sobre os lucros reais recebem benefícios fiscais.