Escuta e atenção ao comportamento de crianças e adolescentes podem ajudar a evitar as mortes; família, escola e sociedade têm papel importante na prevenção
Os casos de suicídio infantil têm crescido no Brasil e no mundo. Quais são os motivos para crianças e adolescentes atentarem contra a própria vida? O Lunetas conversa com especialistas para entender essa questão de saúde pública.
Há assuntos sobre os quais pouco se fala. Mesmo deixando mais perguntas que respostas, quando acontece um suicídio infantil, é importante conversar sobre. Há alguns meses, um telefonema impôs à Cláudia* a necessidade de lidar com a notícia de um suicídio cometido por um colega de escola que abalou muito a enteada, de 13 anos. Além disso, não foi um caso isolado. Mais ou menos na mesma época, a menina mencionou um amigo que chegou a comentar sobre a vontade de seguir o mesmo caminho.
Agora, Cláudia precisava tratar do tema em casa, mas, “e aí, como abordar a questão?”. Depois de refletir sobre possíveis causas para o fenômeno e qual seria o papel dela, das outras famílias e da escola ao acolher as crianças, Cláudia entendeu que, apesar de ser “um assunto extremamente sensível, quando a gente vê acontecendo ao nosso redor, não pode ser um tabu, precisa ser conversado”.
As palavras infância e morte, que parecem dissonantes, têm caminhando cada vez mais juntas, por causa dessa questão delicada que é também uma questão de saúde pública: o suicídio infantil. Ele configura a quarta principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos. E ainda tem crescido entre crianças de 5 a 14 anos, no Brasil e no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Em 2021, foram 200 casos nessa faixa etária no país, o maior número registrado pelo Ministério da Saúde por ano desde 1996. Cinco deles entre menores de nove anos. A pesquisa Violência autoprovocada na infância e na adolescência, da Fiocruz, mostra que, entre 2006 e 2017, foram identificados 58 óbitos de crianças brasileiras decorrentes dessa causa. Se contados os casos de suicídio infantil registrados nos últimos 25 anos pelo Ministério da Saúde, o número chega a 3,2 mil. “Existe uma tendência de aumento do comportamento suicida e da automutilação, que, embora correlato, não necessariamente está ligado ao comportamento suicida”, afirma a coordenadora do estudo, Joviana Avanci, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz).
Todos os anos, cerca de 700 mil pessoas tiram a própria vida, segundo a OMS. Para cada caso, há outras tentativas por trás – uma tentativa de suicídio é o maior fator de risco para a concretização de um caso. Eles são uma tragédia familiar, comunitária e têm efeitos duradouros para quem fica, sendo comum desenvolver sentimentos de raiva e culpa. Apesar disso, são evitáveis, explica a OMS.
Para começar a compreender o que pode levar uma pessoa e, no caso dos suicídios infantis, uma criança ou adolescente a pensar nessa possibilidade, é preciso saber que não há uma causa única e isolada para o suicídio: trata-se de um problema multifatorial. “É sempre provocado por um conjunto de fatores, que passam por questões biológicas, um histórico familiar ou questões sociais e ambientais, como falta de recursos psíquicos e a influência das redes sociais”, traz Angelita Wisnieski, psicóloga do Hospital Pequeno Príncipe.
De acordo com a OMS, embora a ligação entre suicídio e transtornos mentais seja bem estabelecida em países de alta renda, muitas ocorrências acontecem impulsivamente em momentos de crise, como uma ruptura na capacidade de lidar com o estresse, problemas financeiros, rompimento de relacionamentos, dores crônicas ou doenças. Outras questões como vivenciar conflitos, desastres, violência, abuso, perda ou sensação de isolamento também podem contribuir.
“Quando a gente olha para a adolescência, há questões de bullying e violência entre namorados que, muitas vezes, são gatilhos para desencadear o comportamento”, afirma Avanci.
No caso de crianças e adolescentes, a pesquisa da Fiocruz mostrou que todos os casos de suicídio e tentativas pesquisados tinham uma história pregressa na família ou envolvendo amigos, colegas, vizinhos e conhecidos. Na maioria, havia ainda histórico de problemas psiquiátricos na família, como depressão e ansiedade, além de abuso do consumo de álcool. No geral, o levantamento evidenciou que os casos de tentativas ocorriam em contextos de vida marcados por mal-estar emocional, desafetos, insatisfações e vulnerabilidades. A ideia de que as pessoas que ameaçam só estão querendo chamar a atenção é falsa.
O suicídio, em geral, é o limite de uma situação que pode vir acompanhada ou precedida de outros comportamentos. São sinais de alerta questões como: isolamento, perda de interesse no entorno, alterações do sono e apetite, desempenho escolar modificado e questões mais visíveis, como a automutilação (tanto a autolesão não suicida, algo feito voluntariamente, mas sem intenção de morrer; ou a autolesão com intenção de suicídio).
Já em relação ao suicídio de fato, há também algumas separações. Uma delas é o pensamento de morte, algo passivo, ou seja, sem controle. É quando a cabeça vive cheias de pensamentos negativos e a pessoa não consegue enxergar uma saída diante dos problemas, além de se ver como um peso para os demais. O pensamento suicida, quando a pessoa está num quadro em que se sente invalidada e começa a pensar que se ela morrer, sumir, dormir e não acordar mais será melhor para os demais, mas de forma não consciente, sem um pensamento estruturado. E há o planejamento, quando a pessoa tem um plano, de forma violenta ou não, para morrer.
“Geralmente, alguns sinais de alarme são: ela se despede, começa a escrever cartas, marca uma data, começa a cuidar de tudo ao redor até chegar ao finalmente”, diz Karol Modesto, médica especializada em psiquiatria que atua na Francisca Júlia, instituição de saúde mental mantida pelo Centro de Valorização da Vida (CVV).
Segundo a médica, o mais comum na adolescência é não haver esse planejamento, mas que exista o pensamento de morte passivo ou ativo, e que a tentativa aconteça no impulso, geralmente associada a uma frustração.
O fenômeno de suicídio na infância e adolescência não é algo recente, apesar do aumento nos casos desde 2016. Há pelo menos duas décadas, o Brasil vem apresentando uma variação para cima na média de casos. Durante muitos anos não se falou sobre o tema por medo de estimular a prática, mas tem-se entendido cada vez mais que é preciso abordar o assunto com responsabilidade, sobretudo porque esta não é uma questão individual, mas coletiva.
Questões como a pandemia, por exemplo, devem ser levadas em consideração para entender o aumento de casos. Os dois anos em que a covid-19 se espalhou de forma mais forte pelo mundo foi um período em que crianças e adolescentes tiveram o contato social, com amigos e familiares, reduzido.
A ausência de convívio presencial na escola também privou, sobretudo os adolescentes, de lidar com um espaço de conflitos. Além da saúde mental afetada pelo tempo de reclusão, eles deixaram de aprender a lidar com as dinâmicas de discordância e embates que emergem no ambiente escolar. “Em 2022, vimos muitos adolescentes com uma fragilidade grande para lidar com conflitos que podem ser vistos como benéficos para o desenvolvimento”, afirma Wisnieski.
Outro fator a ser considerado é a própria mudança provocada pela comunicação e interação digital, a pressão colocada pelas redes sociais e as vidas “perfeitas”, fantasiosas, publicizadas nesses meios. “São espaços onde eles encontram, muitas vezes, informações sobre como realizar um suicídio”, lembra Wisnieski. Segundo ela, a vida digital também tem limitado as relações familiares.
“O apelo ao uso do celular distancia os adultos das crianças. É bastante comum entre as famílias, em ambientes sociais, a falta de troca, de contato humano”, acrescenta.
Modesto complementa com a observação de que “os mecanismos, as ferramentas sociais, ficaram prejudicadas”. Segundo ela, alguns estudos mostram que, com o uso de telas, adolescentes perdem a capacidade de leitura facial, de entender o que o outro está pensando. Isso vem antes da pandemia, mas foi potencializado nela, pois a internet era o que a gente tinha para se comunicar”, diz.
A vida digital também provocou o rompimento da necessidade de espera para interagir socialmente ou até mesmo para ter acesso a um vídeo ou desenho animado. “Hoje, a criança pode pular comercial na televisão, pode avançar uma música se não gostar dela. Ela vai desaprendendo a esperar e a suportar aquilo que é desgostoso. Não é só a questão das redes sociais, de ver a grama do vizinho sempre mais verde. Não há um desenvolvimento da resiliência como antes”, explica Modesto.
Na infância, a questão do suicídio tem mais particularidades, principalmente porque, para desejar a morte, a criança precisa, primeiro, entender esse conceito, o que só acontece geralmente em torno dos oito, nove anos. Até os seis anos, o mais comum é não compreender integralmente o que significa morrer. Apesar da média geral, a percepção e o entendimento podem chegar mais cedo se a criança é exposta à violência cotidiana, como, por exemplo, em zonas de guerra ou de conflitos policiais.
A universalidade ensina que todos os humanos vão morrer; a irreversibilidade diz que não há solução para a morte; e um óbito impede contato físico com quem partiu.
O desejo de morte sobretudo em crianças menores de seis anos também pode vir atrelado à vivência de um trauma, abuso ou a um ambiente familiar violento e conturbado. “A desigualdade social afeta de forma indireta, dificultando o acesso das crianças e adolescentes ao cuidado, aos serviços, o que acaba interferindo no desenvolvimento dos transtornos”, diz Avanci.
Os índices na infância são menores também porque a criança não têm tanto acesso aos meios como adolescentes e adultos. Estima-se que a cada suicídio de um adulto, há 10 ou 20 tentativas. “Na infância a gente conhece pouco desse comportamento, ele é muito camuflado, e a intencionalidade do ato não é tão clara”, diz Avanci. No caso das crianças, é uma situação consumada a cada 300 iniciativas. Muitos casos também são associados a acidentes, o que dificulta o levantamento de estatísticas e estudos, levando a uma provável subnotificação.
Aprender a lidar com os sentimentos é uma chave para destravar as angústias que circundam a vida da criança e do adolescente, e que podem ajudar a prevenir o suicídio. A adolescência é um momento de transição, em que mudanças hormonais, biológicas, ambientais e psíquicas acontecem. Ao mesmo tempo, ocorre uma maior exposição à vida externa e a necessidade de tomar decisões, mas sem a mesma liberdade ou ferramentas da vida adulta. Nesse momento, faz diferença se a pessoa foi ensinada a lidar com frustrações e tristezas desde a infância.
Isso acontece porque, quando o adolescente não tem apoio adequado e tem alguma predisposição ou patologia psiquiátrica, haverá mais dificuldade em lidar com planejamento, freio e mudanças de perspectiva. Em consequência, será mais difícil sair de algumas situações complexas, levando à frustração. “Os adolescentes costumam ser impulsivos. Mas, quando você já tem uma dificuldade de lidar com essas questões, gera angústia. E a angústia vai tomar conta. Aí vem o pensamento de morte, a ideação suicida”, explica Modesto.
Para ela, é importante que a criança aprenda desde cedo a identificar o que está sentindo e qual o papel e o valor de cada sentimento, o que deve ser reafirmado na adolescência. “A tristeza e a raiva ajudam a pensar, conseguir digerir algo negativo e servir de impulso para mudar um comportamento. Tudo o que você sente tem um propósito protetivo”, detalha Modesto.
Da mesma forma, é preciso formar uma rede de apoio. A criança e o adolescente precisam de um caminho aberto para pedirem ajuda para enfrentar esses sentimentos à vontade, sem serem obrigados a falar. Por isso, é preciso também lidar com a banalização dos conceitos de adoecimento mental, lembra Wisnieski. Isso porque é importante separar o que de fato é um processo de ansiedade, depressão, distúrbio alimentar, entre outras doenças, de um conflito normal da vida.
Um segredo está na palavra prejuízo, ou seja, em identificar como algumas ações corriqueiras do mundo atual prejudicam a vida da criança ou adolescente. “Quando eu deixo de viver coisas reais, concretas, porque estou no celular, é hora de os pais prestarem atenção. É também importante olhar para as tendências de isolamento porque esses sinais apontam que as coisas não estão saudáveis. Por isso a família deve prestar atenção aos conteúdos que os filhos acessam no mundo virtual. Porque crianças e adolescentes não têm a capacidade de identificar riscos consolidada”, afirma Wisnieski.
A família ocupa o papel de ajudar a criança a discernir a realidade da ficção nas redes sociais. Mas a função de cuidar e prevenir o suicídio não é integral dos pais, pois este é um problema social e multifatorial. No que diz respeito às redes sociais, a figura do influencer digital, hoje, tem uma responsabilidade também no desenvolvimento da infância e adolescência. “É importante a criança ter adultos que mostrem pra ela que o influencer também é uma pessoa com fragilidades”, afirma Wisnieski.
A escola também precisa se implicar na construção dessa compreensão dos sentimentos, pois é um espaço de aprendizado social, em que professores podem intervir para ensinar sobre limites, ética, regras, respeito às diferenças. “Os educadores ajudam no processo de autorregulação. Até o bullying, que é algo ruim, ensina que quem faz e recebe está passando por um processo de sofrimento”, afirma Modesto. “Por lidar diretamente com crianças e adolescentes, a escola é um lugar privilegiado para identificar situações de sofrimento e oferecer apoio”, explica Avanci.
Ainda que a maioria dos suicídios seja prevenível, há situações em que eles se concretizam. Quando ocorreu o episódio próximo à enteada de Cláudia, o primeiro passo foi entender como lidar com “o dia seguinte”. Em casa, ela decidiu conversar com a menina e entender o que rondava a cabeça de quem recém havia perdido um colega. Antes de qualquer atitude, a recomendação das especialistas entrevistadas pelo Lunetas – também seguida por Cláudia – é procurar ajuda profissional.
Na escola, houve homenagens e um momento de troca entre os alunos. É recomendado haver um espaço para cuidar da saúde mental de maneira transversal. Isso significa não só um apoio formal, com a presença de um psicólogo, mas levar o tema para a sala de aula, cuidar da saúde mental também dos professores e se implicar em identificar comportamentos para debater, com a família, buscando entender como um caso repercute na comunidade escolar.
Além disso, nunca se deve ignorar uma tentativa ou sinal de tentativa de suicídio. E, sempre que necessário, falar sobre o tema, não transformá-lo em um tabu. Como cada história é única, é preciso entender o contexto que levou àquela tentativa ou ao suicídio. No caso das famílias de uma vítima, isso permite a intervenção no ambiente para sanar feridas abertas que podem ter influenciado no comportamento. Em relação a quem viveu uma situação com alguma pessoa próxima, isso ajuda no processo de entendimento. “É importante que as pessoas envolvidas com a criança tenham atenção também com a sua autoregulação”, alerta Wisnieski.
“O suicídio ou tentativa é um pedido de ajuda. Um pedido distorcido, mas é”, ressalta Modesto.
É fundamental, em todos os casos, lidar com a questão sem julgamentos. Isso abre uma porta para a criança ou adolescente contar o que está sentindo, por meio de conversas, desenhos ou escrita, por exemplo. Filmes como “Soul” e “Divertidamente” podem ajudar na discussão e a mostrar que eles não estão sozinhos. Além disso, o adulto deve mostrar que há um interesse pelo o que estão vivendo e se mostrar disponível. Ao reforçar as qualidades e seus potenciais, mostra-se à criança e ao adolescente que vale a pena viver.
* Nome fictício e sem sobrenome para preservar a identidade e privacidade da entrevistada.
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