Uma criança que come de tudo cresce para ser livre

Apresentar diversos alimentos saudáveis às crianças e incentivá-las a comer de tudo é uma forma de preservar seu poder de escolha

Michele Bravos Publicado em 06.06.2022
Duas meninas num ambiente ao ar livre. Ambas vestem camiseta branca e tem cabelos escuros. A menor está segurando um pedaço de melancia e olha pra cima. A maior olha para a criança.
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Resumo

Incentivar a criança a comer de tudo é uma forma de garantir que ela exerça seu poder de escolha em diferentes cenários - de uma mudança no orçamento a restrições alimentares. Quando a criança tem um perfil seletivo, é preciso paciência, afeto e criatividade.

Com o alto preço de determinados alimentos e o favorecimento à indústria de ultraprocessados, é preciso atenção e afeto para guiar as crianças no que irão colocar no prato. Na casa de Bernardo, 4, na cidade de Curitiba (PR), a estratégia é tornar tão fácil comer uma fruta quanto seria abrir um pacote de bolacha. “As escolhas que fazemos no mercado impactam diretamente em como vamos nos alimentar em casa, por isso eu evito comprar alimentos muito processados e tento deixar sempre à mão opções mais saudáveis, como frutas e legumes higienizados e cortados”, conta a mãe, Andressa Fontoura, 35. Em São Luís do Maranhão (MA), ir ao mercado com as irmãs Maria Clara, Valentina, Giulia, de 11, 2, e 1 ano e 9 meses respectivamente, é “tarefa difícil”, porque elas não gostam muito de frutas, verduras e legumes, diz a mãe, Renata Rodrigues, 36.

A alimentação de algumas crianças não corresponde ao ideal de “comer de tudo” e isso não se restringe às crianças em situação de vulnerabilidade. Crianças privilegiadas – que teriam condições de ter uma alimentação diversa e saudável – podem não tê-la por inúmeras razões, e uma delas é o excesso de ultraprocessados a que são expostas, como explica a nutricionista Priscila Maximino, pesquisadora no Instituto Pensi (Pesquisa e Ensino em Saúde Infantil). “A criança que tem ‘apetite pequeno’ fica sem fome quando há consumo de guloseimas, bebidas doces, refrigerantes, por exemplo, ou falta de rotina, com horário definido para as refeições.”

A campanha “Não engula essa”, do IDEC e da ACT visa conscientizar a população sobre as relações que existem entre indústria de alimentos e os poderes governamentais para impulsionar a venda e, consequentemente, o consumo de refrigerantes e bebidas açucaradas, que podem levar a óbito 13 mil pessoas no Brasil por ano, segundo dados divulgados pela campanha.

Incentivar as crianças a comer de tudo – o que é saudável – não é fácil em meio a cortes de orçamento familiar, competição com rótulos chamativos nas prateleiras dos mercados, mas é necessário. “Comer de tudo amplia o poder de escolha de uma pessoa. Quanto maior a variedade de alimentos que a criança gosta, maior a possibilidade de consumir todos os nutrientes que precisa”, afirma o pediatra e nutrólogo Mauro Fisberg, também vinculado ao Instituto Pensi. Ele complementa que podemos retirar os nutrientes que necessitamos para viver de diferentes alimentos – e não apenas de um –, o que é muito positivo. “Nossa capacidade de poder escolher nos permite adaptação a diferentes contextos, até mesmo de uma crise climática como a que está em curso.”

Tanto na família curitibana quanto na maranhense, há disposição para oferecer uma alimentação diversa e saudável para as crianças, respeitando seus gostos e as questões culturais de cada localidade. Para Bernardo, não pode faltar tomate cereja. “Ele ama!”, diz a mãe Andressa. Ela também conta que o café da manhã do filho é caprichado. “Sempre tem uma fruta, um laticínio e carboidrato. As outras refeições, ele faz na escola, que tem um cardápio riquíssimo sem ultraprocessados e açúcar. Em casa, ele ainda faz mais um lanche e janta”. Já para as meninas, apesar do dilema com as frutas, cada uma tem a sua preferida. “A mais nova é apaixonada por uva, a do meio por laranja e a mais velha por babona [banana-figo]”. Renata reforça que não pode faltar arroz, feijão e frango no dia a dia e que elas também amam cuscuz de arroz e milho – muito comum no Maranhão.

O nutrólogo explica que pessoas de uma mesma região, por exemplo, podem comer pouco determinados alimentos e isso pode não significar um problema, se elas estiverem comendo de todos os grupos alimentares. “A alimentação está sempre ligada a questões culturais e, se uma determinada escolha prevalece, tudo indica que ela é adequada para aquelas pessoas.” Dessa forma, ressalta que a alimentação saudável não pode estar restrita a um tipo de alimento e nem a uma refeição. “Cada alimento tem a sua função no corpo. A alimentação saudável é uma combinação de condições básicas que permitem que uma pessoa esteja nutrida, garantindo que ela tenha bom desenvolvimento, defesa contra infecções e prazer. Ela deve ser estabelecida ao longo do tempo, em quantidade e frequência”, comenta.

Recusa alimentar por doença ou alergia

Dentre as causas da recusa alimentar também podem estar questões orgânicas e patológicas. “Crianças com problemas gastrointestinais ou psicológicos podem ter queda de apetite e perda de peso”, explica a nutricionista Priscila. Além disso, cada fase da criança reflete na sua vontade de comer e é preciso que os responsáveis tenham consciência disso. “No primeiro ano de vida, a criança triplica o seu peso de nascimento e cresce mais de 20 cm, fazendo com que ela tenha um apetite e uma voracidade maior, mas isso não se manterá. Quando a criança conquista uma atividade motora mais intensa, querendo sair da mesa, com muita curiosidade para explorar o mundo, as queixas sobre recusa alimentar costumam aumentar muito”. 

A recusa alimentar também pode estar associada a experiências traumáticas com algum alimento, levando a criança a desenvolver medos e fobias, explica Priscila. Entre situações particulares de cada criança, reações alérgicas capazes de causar lesões de pele, alteração respiratória e aproximá-la de um risco real de morte podem ser associadas a um trauma. De acordo com o pediatra Mauro, em momentos assim, os pais precisam ser bastante cautelosos para não impor restrições desnecessárias que, no futuro, podem até se tornar um transtorno alimentar.

Os pais de Bernardo passaram por um susto bem no início da introdução alimentar, que seguiu o método de desmame guiado pelo bebê. “Dentro de alguns dias após o Ber aceitar o primeiro alimento, ele teve uma reação alérgica, com manchas avermelhadas na pele. Não sabíamos identificar exatamente a que. Com orientação de uma nutricionista, paramos tudo por algumas semanas e recomeçamos em etapas mais lentas. Oferecíamos a ele apenas um tipo de alimento por dia, parava um dia e recomeçava no outro. Após algumas semanas de experimentos, associamos a alergia à banana. Por algum tempo, precisamos suspender a oferta dessa fruta e também outros alérgenos (como oleaginosas e abacate). Com o tempo, o intestino do Ber amadureceu e passou a aceitar também esses alimentos. No fim, essa livre exploração pelos cheiros, texturas e sabores dos alimentos é muito mais do que alimentar-se“, relata Andressa.

Muitas cores e novas texturas

Por fim, um último motivo possível para a recusa alimentar é a criança ter um perfil seletivo. “Ela simplesmente prefere o alimento A em relação ao alimento B. Isso costuma gerar uma grande insatisfação nos responsáveis. Eles devem ficar atentos a esse sentimento para não insistir, chantagear ou até ameaçar a criança”, recomenda Priscila. Na casa das irmãs maranhenses, frutas, verduras e legumes representam um dilema a ser contornado. “Tento sempre fazer pratos coloridos para estimular uma alimentação saudável. Além disso, cada uma tem um gosto diferente, então, é preciso atender a isso”, diz a mãe. Ela ainda compartilha que a filha do meio é a que tem mais dificuldade para comer e a saída tem sido mudar a forma como eles são consumidos. “Eu faço preparos com as frutas ou legumes e verduras amassados ou batidos no liquidificador para incentivar que ela coma.” 

Para a nutricionista do Instituto Pensi, toda tentativa respeitosa de inserir mais diversidade de alimentos no prato da criança é válida e uma das melhores formas de incentivá-la a comer de tudo, se ela não tem nenhuma doença, é pelo exemplo da família. “Como a criança aprende por imitação, ela vai comer aquilo que o meio social dela permite. Isso vai desde as primeiras refeições, com seis meses de vida e mesmo após a criança já ter conquistado uma certa autonomia para comer, por volta de cinco anos”. Outra estratégia apresentada por Priscila é incentivar que a criança tenha contato com a comida para além da hora da refeição. “Programar atividades que sejam adequadas para a faixa etária delas, permitindo que manuseiem alimentos, cheirem, ajudem nas atividades. A criança passa a conhecer o alimento sem precisar comê-lo primeiro”, sugere. 

Na cozinha da casa de Bernardo, ele tem espaço garantido para experimentar nesse ambiente e até leva jeito. “O Ber sempre demonstrou interesse em participar do preparo de alimentos, e, surpreendentemente, até certa habilidade com o frigir dos ovos e a mistura de ingredientes. Vejo os olhinhos dele brilhando quando nossas receitas ficam prontas e ele diz ‘nós que fizemos juntos, né, mamãe?!'”. Para Andressa, esse é um momento especial. “Quando estamos juntos na cozinha, percebo oportunidades únicas de encorajá-lo a explorar seus diversos sentidos enquanto prova e se desafia no mundo dos sabores.”

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