Gabriela Kapim: ‘Alimentar-se bem é como uma previdência privada’

A nutricionista e apresentadora de TV defende que o cuidado com as escolhas alimentares é um investimento mais barato e a longo prazo

Laís Barros Martins Publicado em 03.11.2020
Imagem de uma menina segurando uma maçã mordida em frente ao rosto e sorri. A imagem ilustra uma entrevista com Gabriela Kapim
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Resumo

Comer também é um ato político. A nutricionista e apresentadora Gabriela Kapim conversou com o Lunetas sobre escolhas e rotinas alimentares, saúde infantil a partir do prato, e como desigualdades sociais e econômicas influenciam no que é servido à mesa.

Há mais de 20 anos trabalhando a relação da criança com a comida, a nutricionista e apresentadora Gabriela Kapim deu uma pausa nas gravações de seus programas “Socorro, meu filho come mal” e “Socorro, meus pais comem mal”, ambos do GNT, mas já estuda outras formas de “ampliar o trabalho de formiguinha em larga escala”, diz.

Enquanto isso, falar de comida no Brasil, num momento em que o país volta para o mapa da fome e há desigualdades sociais históricas, é uma forma de protesto. Mas, ainda mais marcante que a questão econômica, Kapim insiste que o gargalo de pessoas comerem melhor ou pior está no acesso e em valorizar opções naturais em detrimento de empacotados, ensacados, embalados, enlatados.

“A educação alimentar passa por ter acesso e trazer o alimento de qualidade para dentro de casa, mais próximo das pessoas, e aprender a valorizá-lo”, defende. “Se você botar na ponta do lápis, vai perceber que comer bem não é mais caro que comprar produtos industrializados”.

Foto de Gabriela KapimEntrevista completa com Gabriela Kapim

Lunetas – Apesar da complexidade territorial e das particularidades de cada casa, é possível pensar como é a alimentação das crianças brasileiras hoje?
Gabriela Kapim – Apesar da extensão territorial do nosso país, o arroz e o feijão estão na rotina do brasileiro. Essa combinação de leguminosa e cereal é muito competente como base de uma alimentação, e geralmente se incorpora a ela uma proteína, de origem animal ou vegetal, e outros vegetais que vão completar as cinco cores no prato. Ou seja, esse complemento pode ser bem diverso, folhas em saladas que são mais comuns no Sudeste ou tubérculos e raízes, mais comuns no Norte e Nordeste, por exemplo.

Além de contar as cinco cores no prato, como garantir uma boa alimentação às crianças brasileiras?
GK – As cinco cores no prato garantem uma nutrição básica com um consumo mínimo, constante e regular de vegetais, fibras, vitaminas, minerais, de acordo com as deficiências e particularidades de cada região. Além disso, esse é um estímulo ou um comando simples que as crianças entendem facilmente. Tem um lugar lúdico mas também um potencial nutricional bem forte. Para além das cinco cores com regularidade, é importante incluir frutas na rotina das crianças e estimular o hábito de consumir água para a manutenção da saúde.

Para grande parte da população que não tem renda para bancar um cardápio variado de nutrientes, há alguma saída?
GK – Para mim, o gargalo não é exatamente a renda, existe uma questão a ser considerada que é o pouco acesso aos alimentos in natura por grande parte da população. Se você vai a feira, o pé de alface tem um valor às oito horas da manhã e outro valor ao meio-dia, essa é uma das maneiras de economizar. Quando eu falo de acesso é porque em muitos lugares existem desertos alimentares, onde para se achar produtos in natura é preciso andar quilômetros. Se perto da sua casa não tem um feira com produtos in natura, mas a cada esquina você acha uma birosca com refrigerantes, bolachas, enlatados, ensacados, empacotados, é mais caro ir até a feira ou a mercados grã-finos para achar frutas, legumes e verduras. Então, a educação alimentar passa por ter acesso e trazer o alimento de qualidade para dentro de casa, mais próximo das pessoas e aprender a valorizá-lo. Assim, nos damos conta de que comprar uma dúzia de banana te alimenta melhor que um pacote de bolacha recheada, embora a banana não tenha rótulo para dizer das suas informações nutricionais.

Com a experiência de acompanhar as rotinas alimentares de muitas famílias, o que você observou de pontos de atenção e também potências para explorar em relação aos hábitos alimentares?
GK – Percebi que a valorização da alimentação saudável, do dia a dia, dentro das famílias é um discurso desalinhado da prática: pais insistem que os filhos comam bem, mas eles mesmos não comem bem. Isso é difícil de contornar, porque como você vai convencer a criança a comer bem, se as maiores referências dela não comem direito? É muito confuso para a cabeça da criança ver que o pai janta assistindo ao jornal e a mãe toma shake para emagrecer, por exemplo, mas ela precisa ter cinco cores no prato e comer sentada à mesa, sem eletrônicos. Como? Isso não faz sentido nenhum. E quando as coisas (qualquer coisa) não fazem sentido pra gente, é mais difícil de aderir, né?

Que medidas simples podem incentivar uma alimentação saudável no ambiente familiar? A partir de que idade e de que forma essa rotina deve ser “implementada” sem que vire uma pressão – para as crianças e para os pais?
GK – A base de uma rotina ou dinâmica alimentar deve seguir a forma como os pais se estruturam. Ou seja, se valorizam uma alimentação saudável, é natural que isso seja passado à criança. Desde a introdução alimentar, o bebê já pode ser incorporado nesse contexto e compartilhar desses valores: de seis meses a um ano, é a fase das experimentações; a partir de um ano, já é permitido comer de tudo que está na mesa, e ele vai se apropriando dessa alimentação colorida, com variedade. Vai ter conflito às vezes, mas é preciso estar seguro de que oferecer um alimento adequado à criança é o melhor que se pode fazer para os filhos e, com base nisso preservar e estimular sua saúde.

Como lidar com as dificuldades alimentares das crianças? Existe uma estratégia básica e comum com mais chances de dar certo?
GK – Uma estratégia básica e com resultados surpreendentes é colocar a criança para participar do processo de elaboração das refeições. Existem inúmeras possibilidades para se fazer isso: desde pensar o cardápio, botar a mesa, ir às compras no mercado, preparar a lista, descascar alimentos, ajudar numa receita. Isso tudo faz com que a criança se aproprie daquela comida que ajudou a pensar, ou a preparar, ou a servir… Essa relação da criança com a comida tem um valor diferente, pois tira a obrigatoriedade do “tem que comer” e ocupa o lugar em que ela tem uma participação ativa na produção da própria comida. Quando isso é construído desde cedo, com naturalidade, os conflitos são mais raros.

Qual mensagem o espaço compartilhado da cozinha pode trazer para pais e filhos?
GK – Estar em volta da mesa é o lugar que mais me encanta, é onde compartilhamos uma refeição e também compartilhamos conversas, o dia a dia, a vida. Foi à mesa que eduquei meus filhos para serem pessoas bacanas. Sem esse lugar, perde-se o convívio à mesa (do preparo da refeição ao momento de servi-la e a hora de comer), perde-se a oportunidade de conhecer o outro, perde-se essa formação das crianças como indivíduos e perdem-se valores importantes que têm poder de educar. À mesa podemos falar de tudo: política, arte, sonhos, tabus, economia… qualquer assunto.

Como você vê as estratégias para conseguir que a criança coma, inclusive recorrendo a aparatos tecnológicos, e para recompensar quem comeu, fazendo combinados com os filhos?
GK – Os combinados são fundamentais para se ter consciência das opções e entender as possibilidades e suas consequências diante das escolhas feitas, como tudo na vida, né? Como a intenção é gerar um bem comum, deve ser pautado por uma construção consciente de uma atitude positiva em relação à alimentação. O que é bem diferente de castigos, recompensas ou premiações que pretendem obter um resultado imediato, por imposições muitas vezes autoritárias. Os combinados, para mim, são chave para uma boa educação, com eles a gente faz junto, com consciência e responsabilidade pelas escolhas.

Qual é o impacto dos ultraprocessados à infância a curto e longo prazos?
GK – As consequências de uma alimentação inadequada são deficiências nutricionais que estão sendo vistas nos consultórios, cada vez mais cedo. Quando recebemos crianças de 10 anos que já apresentam diabetes, hipertensão, colesterol alto, é de assustar. As taxas de obesidade aumentam a cada ano, e foram intensificadas pela pandemia. Trata-se de uma doença inflamatória, que prejudica a condição de outras doenças. Os impactos já estão acontecendo na infância.

“É a primeira vez na história da humanidade que a expectativa de vida é menor, devido a alimentação inadequada, sono irregular, falta atividade física”

O que você acha sobre a tentativa do governo em alterar o guia alimentar brasileiro, um documento reconhecido globalmente que classifica alimentos segundo o grau de processamento industrial? Quais as principais perdas que estão em jogo?
GK – É uma vergonha! Não é só a qualidade da alimentação que está em jogo, que se fosse já seria muita coisa. Mas é um desrespeito absurdo com a população, que terá um documento incrível adulterado para favorecer poucos, e prejudicar muitos. Minimizar os prejuízos na saúde do indivíduo com o consumo de ultraprocessados é de uma irresponsabilidade tremenda. Amenizar ou não levar em consideração os impactos ambientais que a produção desses alimentos causa no nosso planeta é inaceitável nos dias de hoje. Nosso guia alimentar é exemplo no mundo todo, mas o poder da indústria alimentícia com impacto financeiro que representa deixa claro que comida de verdade e uma população verdadeiramente saudável não dão lucro para ninguém. Comida e educação são direitos básicos que o governo deveria proteger, e não vender.

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Como viabilizar que crianças possam acessar mais produtos naturais/orgânicos e ser uma possibilidade para mais famílias, e não apenas as mais privilegiadas economicamente?
GK – É preciso haver acessibilidade: garantir acesso a uma alimentação mais saudável. Se você botar na ponta do lápis, vai perceber que comer bem não é mais caro que comprar produtos industrializados. Também é preciso educação, para conscientizar a sociedade de que uma alimentação equilibrada tem impactos vitais para uma criança, afetando a sua disposição no dia a dia, seu crescimento e desenvolvimento. Mas essa cultura foi criada com muita participação da indústria, dos governos, da publicidade, então temo uma luta árdua pela frente.

Como você vê a interferência da renda nas condições de vida e saúde, incluindo a qualidade da alimentação?
GK – O poder aquisitivo fala da possibilidade do acesso, mas não fala da consciência, da educação e do processo de escolha. Há muita gente que foi massificada pela publicidade e acha que tudo bem dar um copo de refrigerante zero a uma criança porque tem menos calorias que um copo de suco de laranja. Esse exemplo fala de escolha a partir de uma informação equivocada de valor. Atenção e cuidado com as escolhas alimentares é um investimento a longo prazo. De que adianta eu garantir minha aposentadoria se quando for mais velha eu não puder sentar no chão para brincar com meus netos, não tiver saúde para rodar o mundo em viagens incríveis com o dinheiro que guardei a vida toda?

“Cuidar da alimentação é uma previdência privada da saúde”

Sabemos que você já ensinou bastante, mas o que você já aprendeu de mais importante, inusitado e/ou interessante nesse contato com outras realidades na hora de comer?
GK – O meu maior aprendizado está mesmo na escuta das crianças, ouvir o que as crianças estão falando e o que têm a dizer a partir de uma curiosidade genuína, perguntando, explicando, se interessando por ter contato direto com esse mundinho deles. Dessas conversas surgiu muita troca: seus argumentos, ideias e justificativas me impulsionaram a criar muitas das minhas estratégias e teorias. Gosto de ouvir e questionar por que a criança não quer comer. Então, explico que não faz sentido ela escolher isso pra si.

“Muitos me conhecem como ‘a moça que faz as crianças comerem bem’, mas eu sou a moça que faz as crianças quererem comer bem”

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