Que mudanças no Código Civil podem impactar mulheres e crianças?

Prestes a ser aprovado, o novo texto altera questões relacionadas a divórcio, reprodução assistida e registro de paternidade

Célia Fernanda Lima Publicado em 23.05.2024
imagem de capa de matéria sobre o novo código civil mostra uma mulher negra, com cabelos dreads locks longos, sorridente e segurando no colo um bebê menino negro que também sorri
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Resumo

Novos conceitos de família, processo de divórcio, regras para reprodução assistida e registro de paternidade são alguns assuntos que o Novo Código Civil Brasileiro vai revisar. As mudanças podem impactar diretamente a vida de mulheres e crianças.

É a primeira vez que mulheres participam da construção do Código Civil. Um grupo de 38 juristas, sendo 14 mulheres, entre ministras do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e desembargadoras, estão há oito meses conduzindo uma reforma no conjunto de leis que determinam os direitos e deveres das pessoas. Mesmo ainda sem data para conclusão, especialistas discutem o Novo Código Civil a partir das mudanças que ele trará para a sociedade.

Ao alterar leis relacionadas a casamento, divórcio, registro de paternidade e reprodução assistida, por exemplo, as mudanças previstas impactam diretamente os direitos das mulheres e das relações familiares. Consequentemente, a vida das crianças também pode mudar.

De acordo com Vanessa André Paiva, advogada e professora de Direito de Família, num país onde 48% das mulheres são responsáveis pelo sustento de seus lares, segundo o IBGE, ainda não há uma divisão justa sobre a renda e o tempo usados para a criação dos filhos. “Enquanto o pai pode ter até 30% de seu salário comprometido para pagamento de pensão alimentícia, as mulheres arcam com todo o resto. Isso normalmente compromete mais de 70% da renda delas”, diz.

Por isso, ela defende “igualar os direitos e deveres entre homens e mulheres. Além disso, é importante reconhecer legalmente o trabalho invisível desempenhado por mulheres. O juiciário muitas vezes sequer enxerga esses cuidados diários, como, por exemplo, levar os filhos ao médico quando estão doentes”.

Por que um Novo Código Civil? 

O primeiro Código Civil Brasileiro foi promulgado em 1916, mas o documento que usamos hoje é de 2002. Passados 20 anos, um consenso no Congresso decidiu que essa última versão precisava de atualizações. Na época, por exemplo, nem existiam as redes sociais ou a legalização do casamento homoafetivo. O novo texto foi apresentado em abril ao Senado, que vai formular uma proposta de lei e levar à aprovação do presidente. Conforme explicou a comissão, o objetivo dessa reforma é ampliar os direitos de todas as pessoas, considerando a diversidade de gênero e idade. Foram mais de 400 ofícios com pedidos de sugestões enviados por associações e organizações da sociedade civil, além das faculdades de direito.

Quais assuntos influenciam diretamente na vida das mulheres?

Se antes o Código dizia que as mulheres casadas eram “incapazes” de participar de decisões políticas e precisavam pedir autorização para trabalhar fora de casa, o novo texto já não as trata mais dessa maneira. Porém, mesmo com a proposta de revisão ainda há pontos que precisam de atenção, como o amparo financeiro de mulheres que ficaram viúvas e que se dedicaram aos trabalhos domésticos.

Ampliação do conceito de família e reconhecimento da união homoafetiva

Apesar de assegurada por lei desde 2011, questões relacionadas à união homoafetiva ainda deixavam margens de interpretação. O documento de 2002, por exemplo, menciona que o casamento civil ou a união estável se realizam entre “homem e mulher”. Por isso, o novo texto sugere a palavra “conviventes”. A ideia é legitimar uniões estáveis e casamentos entre duas pessoas, independente de gênero ou orientação sexual.

Do mesmo modo, o novo Código Civil prevê a composição de família tanto por uma união conjugal entre duas pessoas, quanto por um vínculo não conjugal, como mãe e filhos ou entre irmãos. Ou seja, reconhece que as famílias sem a configuração “marido, esposa e filhos” têm os mesmos direitos e proteção. Assim, esse tipo de vínculo passa a chamar “parental” e alguns termos serão substituídos. Por exemplo, “entidade familiar” muda para “família” e “poder familiar” agora é “autoridade parental”.

Em resumo, o novo Código Civil classifica as famílias em:

  • Famílias formadas por mães ou pais solos
  • Casais que tenham convívio estável, contínuo, duradouro e público
  • Grupos que vivem no mesmo lar e que têm responsabilidades familiares

Divórcio

Agora o pedido de separação pode ser feito por só uma das pessoas, mesmo sem ter consenso. A solicitação deve estar registrada em cartório para que a outra parte seja notificada e tenha um prazo para se manifestar. Para a advogada Vanessa Paiva, a proposta de facilitar um processo de divórcio – que pode concluir em apenas cinco dias – pode “tornar regra uma exceção”.

Embora a nova proposta dispense um processo judicial, outros pontos ainda precisam desse recurso, como a partilha de bens, a pensão alimentícia e a guarda dos filhos. Outra garantia é o compartilhamento igual das despesas com as crianças, bens e animais de estimação.

Atualmente, as separações pedidas por uma parte do casal são aceitas por liminar de um juiz em alguns casos, como o de violência doméstica. Paiva explica que, mesmo precisando apenas de um cartório, não significa que o divórcio seja, de fato, decretado. “Na prática, os juízes ainda preferem ‘instaurar o contraditório’ [chamar a outra parte envolvida] e o processo pode demorar meses para acontecer.”

Herança e bens de casamentos

Com o fim da exigência de que um dos cônjuges seja o herdeiro necessário, a sugestão é que apenas filhos, mães e pais tenham direito de receber uma herança. Esse ponto é um dos que mais implica no direitos de mulheres que foram casadas ou viveram uma união estável sem possuir fontes externas de renda. O viúvo ou viúva só terá direito se o casamento seguiu a comunhão de bens. Nesse sentido, mulheres que viviam em separação de bens podem ficar desamparadas financeiramente.

“Pode haver um alto índice de mulheres miseráveis após o falecimento de seus cônjuges, mesmo se viviam em outros tipos de regime de bens. Retirar uma pessoa que se dedicou e cuidou, muitas vezes, sozinha do companheiro(a) até o fim, para não ser herdeira é um retrocesso”, afirma Paiva.

Segundo ela, as mulheres são maioria em ficar com “o encargo de cuidar da casa e da família” e, por isso, não têm as mesmas oportunidades de seguirem suas carreiras. “Retirá-las do rol de herdeiros necessários prejudicará muito a mulher que se dedicou ao lar”, diz.

A justificativa dos juristas é de que, com relações de mais igualdade entre homens e mulheres, poderia haver alguma vantagem para as mulheres em não precisar deixar bens para seus parceiros.

Registro de paternidade

No contexto onde quase 500 crianças são registradas sem o nome do pai na certidão de nascimento por dia, o novo Código Civil prevê a possibilidade do “registro compulsório de paternidade”. Isso significa que, se a mãe indicar quem é o pai, a justiça vai intimá-lo a concluir o registro ou marcar uma data para fazer o exame de DNA. “Caso ele não concorde com nenhuma das hipóteses, o registro será compulsório”, explica Paiva.

“O que se busca é a proteção integral da criança, pois ainda há muita burocracia nessas questões. Enquanto o tempo passa, a criança fica desamparada materialmente e sem o nome do pai no documento”. O registro só poderá ser alterado se a pessoa comprovar não ter vínculo genético.

Reprodução assistida e barriga solidária

O novo Código pretende assegurar que todas as pessoas nascidas por técnicas de reprodução assistida tenham os “mesmos direitos e deveres garantidos às pessoas concebidas naturalmente”. Além disso, define regras sobre o que pode e o que não pode em relação ao procedimento, como o doador ter mais de 18 anos e o sigilo de seus dados (quebrados apenas por decisão judicial). Dentre as proibições, estão o uso das técnicas reprodutivas para:

  • Criar seres humanos geneticamente modificados
  • Comercializar óvulos e espermatozoides
  • Criar embriões para investigação científica
  • Escolher sexo ou cor da pele

Outro asunto é a chamada “barriga solidária”, que aparece no texto como “cessão temporária de útero”. A permissão acontece em casos em que “a gestação não seja possível em razão de causa natural ou em casos de contraindicação médica”.

Também há recomendação de que a pessoa que gerar o bebê tenha algum vínculo de parentesco com os futuros pais e a decisão deve ser documentada antes dos procedimentos. A recompensa financeira da barriga solidária permanece proibida.

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