A imagem de miniadultos nem sempre é garantia de empoderamento e protagonismo infantil; a prioridade é respeitar a infância de cada criança
Coaches, pastores e influenciadores mirins podem parecer fofos à primeira vista. Mas, até que ponto a exposição é saudável? Especialistas explicam os limites entre participação e exploração, e como assegurar um protagonismo que faça sentido para as crianças.
Eloquentes, divertidas, carismáticas, lideranças mirins têm atraído a atenção de multidões, mas boa parte ainda sequer tem dois dígitos de idade. Pastores, influenciadores e coaches com discursos ensaiados, esses pequenos protagonistas podem estar assumindo responsabilidades que ainda não têm maturidade emocional ou cognitiva para sustentar, conforme sugerem especialistas.
A ideia de protagonismo infantil está ligada ao reconhecimento da criança como sujeito de direitos. Mas o direito à participação “precisa fazer sentido para a criança, e não deve ser usado para atender interesses comerciais ou causar impacto nas redes sociais”, afirma a psicóloga Êdela Nicoletti. Segundo ela, a participação “tem mais a ver com levar a criança a sério e incluí-la nas decisões que afetam sua vida, escutando-a de verdade”. Isto é, respeitando seu tempo, sua linguagem e sua forma de ver o mundo.
“Participar é crescer sentindo que tem voz, espaço e valor. Quanto mais abrimos espaço para essa escuta real, mais contribuímos para formar cidadãos empáticos, críticos e conscientes do seu papel no mundo”
Além disso, “o uso excessivo de estratégias que trazem conteúdos prontos e que, muitas vezes, tendem a induzir o que a criança vai dizer e como vai expressar é uma forma de reproduzir uma lógica adultocêntrica a essa suposta participação”, explica Ana Cláudia Leite, especialista em educação e infâncias do Instituto Alana.
“As crianças têm um modo próprio de pensar a vida”, diz. Por isso, “é importante ter um genuíno interesse no que ela tem a nos dizer, sem manipular suas narrativas, seus gestos e comportamentos”. Dessa forma, ao considerar suas perspectivas, “valorizamos o modo singular de exercício de protagonismo delas, evitando a reprodução de valores competitivos, consumistas, desiguais e excludentes”.
Práticas que colocam crianças como “miniadultos”, em posições de destaque (como coaches, pastores, influenciadores ou empreendedores mirins) podem soar inspiradoras, em um primeiro momento. Mas é necessário olhar com cuidado. “Por trás de falas ensaiadas e uma confiança aparente, pode haver uma pressão enorme por desempenhar esse papel”, avalia Êdela.
“Quando esse espaço deixa de ser um lugar seguro de escuta, corremos o risco de transformar a infância em um palco de performance”
Portanto, segundo a psicóloga, é preciso evitar a exposição desnecessária ou mesmo uma forma disfarçada de adultização quando a criança ocupa um lugar de autoridade, dando conselhos ou reproduzindo discursos que nem sempre entende. “Se ela precisa performar, entregar resultados, agradar ou carregar responsabilidades que ainda não dá conta, isso cria um cenário de expectativas irreais e constantes, que podem gerar sentimentos de culpa, vergonha, medo de falhar, baixa autoestima e até traumas emocionais mais profundos.”
Além da exposição em ambientes digitais, na mídia ou plataformas de entretenimento, podem haver interesses comerciais, como contratos, monetização de vídeos ou produtos atrelados à imagem da criança. “Nesses casos, existe um risco concreto de exploração infantil, mesmo quando disfarçadas de ‘oportunidade’”, ressalta a psicóloga. “Nesse processo, o que se perde é inegociável: o direito de brincar, descansar, errar.”
“A infância é um tempo de experimentação livre e segura, não de metas e métricas”
Além disso, crianças que são colocadas na posição de influenciadoras, “vendendo” sucesso, empreendedorismo precoce ou fórmulas mágicas para ficar rico, acabam servindo como referência para outras crianças, que ainda estão na fase de construção da própria identidade e não têm recursos para filtrar o que estão consumindo. Com isso, pode haver um reforço de um ideal de infância baseado em performance, status e visibilidade, e não em desenvolvimento, vínculo e aprendizado.
Um outro cuidado importante é observar se o ambiente é seguro. Isso porque a criança precisa se sentir confortável, livre para dizer o que pensa, sem medo de errar ou de julgamento. “Isso vale para reuniões na escola, vídeos na internet ou qualquer projeto em que ela esteja presente”, alerta Êdela.
“Criança não pode nem deve trabalhar. Mas, a participação em atividades artísticas, culturais, esportivas e religiosas pode ser autorizada judicialmente, desde que observadas uma série de garantias, como o respeito ao direito ao estudo, descanso, convivência familiar e comunitária, lazer, integridade física, emocional e moral da criança”, explica a advogada e professora doutora especialista em direito infantojuvenil, Antonina Leão.
Para apresentações públicas de remuneração ou exposição significativa, por exemplo, a advogada reforça que é necessário autorização judicial. Nesse sentido, a colaboração infantil legítima precisa estar inserida em um contexto de proteção, escuta e respeito à condição peculiar da criança como sujeito em desenvolvimento.
“A espetacularização não promove o protagonismo infantil, mas o subverte, tratando a criança como meio para fins comerciais ou midiáticos”
Quando a imagem da criança é excessivamente exposta, vários direitos ficam comprometidos. “Além do ECA, que assegura o direito ao respeito e à inviolabilidade da imagem, identidade, autonomia e vida privada da criança, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) impõe limites rígidos para o tratamento de dados e imagens de crianças, exigindo consentimento específico e atenção ao seu melhor interesse”, diz a advogada.
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De acordo com a psicóloga Êdela Nicoletti, o que define se a participação da criança é saudável ou não é a forma como os adultos ao redor cuidam disso. Se vem com afeto, respeito, escuta e limites claros, “pode ser transformadora”. Mas, se vem com cobrança, exposição e adultização, machuca, mesmo quando “maquiada de sucesso”.
Portanto, para a advogada Antonina Leão, “é essencial garantir que essa participação seja uma escolha da criança, e não uma imposição familiar, institucional ou mercadológica”, afirma. “Quando bem conduzida, essa vivência pode fortalecer a autoestima, a responsabilidade social, o senso de pertencimento e o vínculo com a comunidade.”
Por outro lado, uma exposição desmedida pode sujeitar a criança a situações de vulnerabilidade, facilitando a ocorrência de abusos e exploração, violando o princípio de proteção integral e prioridade absoluta. “Essa exposição pode comprometer a formação da identidade, ocasionar transtornos mentais e prejudicar o pleno exercício da autonomia progressiva”, destaca Antonina. “Os responsáveis pela exposição inadequada podem incorrer em diversas responsabilidades legais, incluindo reparação por danos morais e materiais, bem como responder por crimes.
“A infância não pode ser um atalho para o sucesso adulto”, diz Êdela. Então, o primeiro passo é respeitar os limites da criança, ouvir o que ela quer, explicar as coisas de um jeito que ela entenda e pedir consentimento, não somente dos adultos responsáveis, mas também da própria criança. “Às vezes, uma criança aceita participar, mas começa a apresentar sinais de que a exposição está passando dos limites”. Alguns desses sinais são:
Nesses casos, é hora de recalcular a rota. “Se esses sinais aparecem, é hora de parar e reorganizar prioridades, sempre considerando o bem-estar da criança em primeiro lugar. O papel dos adultos é proteger, acolher e, se necessário, rever os limites”, afirma a psicóloga.
Ou seja, a espetacularização da infância não promove o protagonismo infantil. Por isso, “é importante supervisionar os conteúdos para garantir que haja coerência com valores de proteção e educação. Principalmente, lembrar que toda criança tem direito de ser protegida até mesmo do sucesso precoce que não pediu para viver”.
“A melhor forma de participação é aquela em que conseguimos trazer a singularidade de nossa forma de ser”, afirma Ana Cláudia Leite, especialista em educação e infâncias do Instituto Alana. “Ouvir as crianças como elas realmente são é o primeiro passo para que o protagonismo infantil seja, de fato, verdadeiro e transformador. É preciso olhar a criança a partir de suas potencialidades de expressão. A partir desse modo, garantir que elas participem com seus corpos, gestos, desenhos, narrativas, com o seu brincar. É ali que mora a autenticidade.”
“Se a gente quer construir uma sociedade mais justa, empática e realmente democrática, esse caminho começa com o reconhecimento profundo de que a infância não é uma preparação para a vida”, diz a psicóloga Êdela Nicoletti. “A infância já é a vida, e precisa ser vivida com cuidado, presença e proteção.”
Segundo uma pesquisa feita pela agência especializada em marketing de influência INFLR, em 2022, cerca de 75% dos jovens brasileiros entre 8 e 14 anos querem ser infuenciadores digitais. Em 2024, o G1 encontrou mais de 30 vídeos de anúncio no Instagram e no TikTok com crianças e adolescentes vendendo cursos para mini-influencers e sobre como ganhar dinheiro na internet.