A participação dos mais novos na construção da democracia

Se a democracia deve ser um espaço coletivo de decisão, por que ainda consideramos pouco a participação de meninos e meninas?

Camila Salmazio Publicado em 23.09.2025
Foto de Zsuzsanna Rutai, uma mulher branca que veste roupa preta e uma camisa jeans. Ela é especialista em direitos da infância e a matéria fala sobre a participação significativa dos mais novos.

Resumo

Cada vez mais crianças e adolescentes têm assumido papéis de liderança em suas comunidades, escolas e espaços de decisão, mas permanecem os desafios para garantir uma escuta verdadeira e segura.

“As gerações mais jovens sentem a mesma frustração dos adultos em relação às instituições e, muitas vezes, perdem a confiança na democracia”, afirma a especialista em direitos da infância Zsuzsanna Rutai. Em visita ao Brasil para compartilhar sua experiência no Conselho da Europa, Zsuzsanna diz que a melhor forma de recuperar a confiança deles e garantir engajamento político é por meio da chamada participação significativa.

Isto é, não basta simplesmente incluir crianças e adolescentes em espaços de decisão e convidá-los para uma consulta simbólica. A ideia por trás da participação significativa é garantir que tenham acesso às mesmas informações que os adultos, compreendam os processos em que estão envolvidos e possam então influenciar as escolhas.

“É preciso garantir que suas opiniões sejam consideradas e, caso não sejam incorporadas, explicar claramente os motivos”, diz Zsuzsanna.

As diversas maneiras de participar

Uma carta, um relatório ou uma análise por escrito são resultados comuns em conferências, reuniões e outros espaços de decisão. Mas “nem sempre é a maneira que os jovens querem se expressar”, alerta Zsuzsanna.

Portanto, segundo ela, é preciso que os adultos estejam preparados para receber contribuições em outros formatos, como um vídeo, uma encenação ou uma música, por exemplo. “Os adultos têm que ter a capacidade de interpretar as diferentes formas de expressão dos mais novos.”

Ouvir as crianças não é concessão nem gesto simbólico. É reconhecer que sem elas a democracia fica incompleta.

Levar a sério suas opiniões é o único caminho possível para a democracia. Isso porque ela se constrói no cotidiano, quando cidadãos de todas as idades têm suas vozes ouvidas e respeitadas – e não apenas nas eleições. Apesar disso, para milhões de crianças e adolescentes, esse princípio ainda está distante.

Barreiras de participação para os mais novos

“Quando a gente fala e é ouvido, isso já é um ato de democracia”, afirma Renan, de 15 anos. Ele descobriu a política na escola, ao integrar o grêmio estudantil, na zona leste de São Paulo. A eleição da chapa que ajudou a formar foi o ponto de partida para que ele se reconhecesse como ativista. “Sempre gostei da ideia de pensar em como a gente pode mudar o ensino para então melhorar a escola.” 

“A democracia deveria ser ouvir quem realmente vive os problemas. No entanto, muitas vezes, só quem tem poder decide. Isso vale para grandes conferências e também para o dia a dia da escola e da comunidade”, diz. Hoje, Renan se define como defensor dos direitos humanos e ambientais. Do grêmio, ele foi indicado ao Conselhinho de Crianças e Adolescentes do Instituto Alana, onde passou a se engajar em debates sobre crise climática e enfrentamento ao racismo.

Segundo Sofia, 17, jovem do extremo leste de São Paulo que integra iniciativas de participação infantojuvenil junto a Girl Up, os espaços até existem, mas ainda são limitados e, geralmente, pouco valorizados. “Somos os primeiros a sentir os impactos dos problemas sociais. É por isso que participamos.”

Além disso, frequentemente lhes negam a credibilidade. “Muitos adultos não nos levam a sério, acham que jovens são inconsequentes”, diz. “Não é que a gente não tenha o que dizer. O problema é que, muitas vezes, chamam as crianças só para dar uma opinião rápida, não para construir junto.” 

A palavra do jovem acaba sendo decorativa.” 

Para ela, democracia de verdade só se cumpre quando meninos e meninas podem acompanhar o processo todo – da formulação de ideias e projetos até a decisão.

“O que a gente mais ouve é: ‘finalmente me escutaram'”, conta a coordenadora de Comunicação da Girl Up, Marília Taufic. Nesse sentido, o apoio de adultos aliados faz diferença. “Isso muda tudo.”

“É importante que crianças e adolescentes não recebam apenas ordens de fazer isso ou aquilo”, comenta Zsuzsanna. De acordo com ela, a confiança dos jovens na tomada de decisão nasce do cotidiano, quando podem expressar seus desejos, inclusive quando são contrariados. 

No projeto Imprensa Jovem, estudantes assumem o microfone para falar de seus temas de interesse, em escolas públicas de São Paulo. O professor orientador Rafael Alves observa que os jovens envolvidos passam a assumir mais responsabilidades em relação ao lugar onde vivem. Dessa forma, “eles ganham segurança para dialogar com diferentes atores da comunidade.”

Um chamado para diversificar as infâncias

Como lembra Zsuzsanna Rutai, a maioria das crianças em conselhos e eventos vem de famílias de classe média. “Crianças refugiadas, com deficiência ou que não falam a língua dominante muitas vezes ficam de fora.” Garantir essa diversidade exige condições básicas, como transporte, alimentação e acessibilidade, por exemplo.

“Precisamos criar formas de incluir e ouvir essas vozes, sem excluir ninguém.”

Ela cita como exemplo uma rede global de conselheiros mirins, que consulta pares em diferentes países e elabora relatórios conjuntos para a ONU. “Assim, uma criança não fala apenas por si, mas com base em um processo coletivo e democrático.”

No Brasil, meninas negras e periféricas têm construído espaços de incidência a partir da educação em direitos e das redes de apoio entre pares, conta Ana Neri Lima, da Plan Internacional. Já em São Bernardo do Campo, o educador Guilherme Melo implementou rodas de conversa no Serviço de Convivência. “A escuta vira parte da rotina. Não é algo especial, é o jeito como a gente vive junto”, explica.

Para se inspirar

A Casa da Criança (Barnahus, em islandês), na Eslovênia – e implementada em outros países da Europa – é um exemplo de como as discussões “podem ir além da escola ou do recreio” e sobre a importância de consultar as crianças também sobre temas difíceis, diz Zsuzsanna.

Trata-se de um espaço integrado de atendimento a vítimas ou testemunhas infantis de abuso, que valoriza a escuta e proteção. “É literalmente uma casa, um ambiente amigo da criança, onde o juiz, a polícia, o médico e outros profissionais vão até ela, protegendo a sua privacidade e garantindo que vítimas de violência sexual possam denunciar suas experiências”, explica a especialista. De acordo com ela, ter acesso a temas sensíveis é uma forma de ajudar a criança a se proteger e a criar repertórios diante das adversidades.

Lá, as crianças recebem apoio psicológico, médico e jurídico em um único local, sem precisar percorrer delegacias e tribunais. Isso evita que revivam a situação de violência diversas vezes. “Tem que haver salvaguarda e proteção. Mas, acima de tudo, temos que ser capazes de reagir se as crianças precisarem de apoio”, diz Zsuzsanna.

Como funciona a Casa da Criança (Barnahus)

  • Escuta a criança uma única vez, de forma respeitosa.
  • Garante tratamento médico, psicológico e social imediato.
  • Coordena justiça e proteção social em um só espaço.
  • Coloca a criança no centro das decisões.

Durante a elaboração da lei que regulamentou a iniciativa, meninos e meninas foram consultados em oficinas que traduziam a linguagem jurídica em termos acessíveis. “Foi graças às crianças que alguns elementos da lei mudaram”, conta Zsuzsanna. As recomendações feitas por elas chegaram até a ministra da Justiça e resultaram em mudanças reais, como a proibição da presença do agressor no mesmo espaço durante o depoimento da criança.

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