Como ficam as crianças refugiadas que vivem no Brasil?

Quando não acolhidas, crianças em situação de refúgio podem ter o desenvolvimento infantil comprometido e seu presente e futuro impactados

Michele Bravos Publicado em 12.07.2021
De costas, uma criança com cabelos negros trançados, usa camiseta rosa e uma mochila, e segura uma boneca de plástico com vestido florido no braço esquerdo.
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Resumo

Entre as famílias que buscam refúgio, estão crianças que vivem um processo abrupto de quebra de vínculos. O refúgio pode afetar o desenvolvimento infantil quando estas crianças não são ouvidas e acolhidas.

“Isso é português. A língua do Brasil”, diz Jeison, 4, que já consegue reconhecer a diferença entre o idioma brasileiro e o de seu país de origem, a Venezuela. Há dois anos, a família de Jeison está refugiada no Brasil. Após um longo percurso, envolvendo medos, perda de vínculos e tentativas de adaptação cultural, Jeison e a família – atualmente, vivendo em Curitiba (PR) – persistem em prosseguir com suas vidas.  

Os venezuelanos representam a maioria dos deslocamentos forçados ao Brasil, com 260 mil refugiados e migrantes provenientes da Venezuela vivendo aqui, de acordo com dados do Governo Federal. Dentre eles, cerca de 47 mil já tiveram sua situação de refúgio reconhecida pelo país – de um total de 52 mil pessoas refugiadas de outras nacionalidades -, como aponta relatório do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) de maio de 2021. 

Conforme prevê a Convenção de Genebra, refugiados são aqueles que são reconhecidos e se encontram fora do país de sua nacionalidade – ou de onde tinham residência habitual – e não podem voltar a ele, pois temem serem perseguidos por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. Segundo a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), das 82,4 milhões de pessoas deslocadas forçadamente no mundo (incluindo outras categorias como apátridas, ou seja, pessoas que não possuem vínculo de nacionalidade com qualquer Estado, por falta de reconhecimento de cidadania), existem cerca de 27,1 milhões refugiados – cerca de metade tem menos de 18 anos.
O núme

A história de Jeison e sua família começa há 605 quilômetros da fronteira entre Brasil e Venezuela, onde está Ciudad Guayana, a capital do estado de Bolívar. Era lá que Jeison, seu irmão Kalet, 2, e seus pais Ester Villanueva e Francisco González viviam antes de precisarem buscar refúgio no Brasil, em 2019.

Ester, que além dos dois meninos, hoje também é mãe de Adiel, 11 meses, já nascido em terras brasileiras, conta que desde 2013 a crise econômica na Venezuela vinha se intensificando e os altos preços dos produtos e serviços foram impedindo a população de terem acessos básicos. 

“Havia dias em que eu precisava deixar de comer para dar algo aos meus filhos. É horrível ver seus filhos passarem fome”

“Por muitas vezes, comíamos sempre a mesma coisa: arroz. As crianças não queriam mais comer só aquilo e choravam. Somado a isso, o meu filho Kalet ficou doente, com uma bactéria estomacal, que o impedia de se manter nutrido. Não havia hospital que o atendesse e uma caixa de remédio estava custando 100 dólares. Eu achei que meu filho ia morrer”, relata Ester.

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Allana Ferreira/ACNUR ©

Os venezuelanos representam a maioria dos deslocamentos forçados ao Brasil: das 52 mil pessoas refugiadas no país, 47 mil são da Venezuela

São condições como essa, de graves violações de direitos humanos, que motivam um pedido de refúgio. Diferente de uma pessoa que escolhe – por vontade própria – mudar de país para estudar ou trabalhar (a essa pessoa chamamos de migrante), a pessoa solicitante de refúgio é forçada a sair do seu país de origem porque sua vida está em risco. Quando há um grande fluxo em que possivelmente há pessoas dos dois grupos, se recomenda dizer que a situação envolve refugiados e migrantes, como é o caso do fluxo da Venezuela para o Brasil. 

De acordo com a definição apresentada pelo ACNUR, o que fundamenta o refúgio são temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados“.

No caso da família González Villanueva, além das violações de direitos à alimentação e à saúde, eles foram vítimas de perseguição política. “O meu marido era militar. Com os protestos ganhando as ruas, os militares receberam a ordem de matar quem fosse preciso para conter as manifestações. Aqueles que se recusaram, como meu marido, foram considerados desertores. Eles disseram ‘você escolhe quem vai morrer: os manifestantes ou a sua família’. Depois disso, foram várias ameaças até que vieram buscá-lo em nossa casa em um sábado, mas o meu marido não estava”, lembra Ester.

“Nesse dia, eu entendi que não podíamos mais ficar lá”

Medo que cruza fronteira

Na fronteira de países que enfrentam um grande fluxo migratório, como é o caso da fronteira entre Brasil e Venezuela, a presença e a atuação em parceria de órgãos governamentais, organizações internacionais de assistência emergencial, como Médicos Sem Fronteiras (MSF), e agências da Organização das Nações Unidas (ONU), entre elas ACNUR e Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), é fundamental para a proteção de crianças e adolescentes, como ressalta Pedro Pacheco, assistente de proteção do ACNUR.

“O acolhimento de crianças e adolescentes é sempre prioritário. Por meio da parceria entre as organizações é possível identificar casos de maior vulnerabilidade, tentando mitigar os principais efeitos prejudiciais do deslocamento”

Depois de mais de oito horas de trajeto percorrido de carona, cruzando o estado de Bolívar, a família de Jeison chegou, no dia 27 de outubro de 2019, à fila que daria acesso à cidade de Pacaraima, em Roraima. Com o filho Kalet em estado grave de saúde, Ester conta que ele foi imediatamente atendido. “Logo que viram como meu filho estava, já deram remédio para ele. Eu sou muito grata, porque isso salvou a sua vida.” 

Ao atravessar a fronteira, inicia-se um longo processo nesta nova etapa da vida. A psicóloga Júlia Lobo, que trabalhou em missões de MSF entre 2019 e 2020, em Roraima, lembra que tão importante quanto cuidar da saúde física das crianças é cuidar da saúde mental delas. 

“Muitas vezes, uma criança se desloca por uma decisão que não é dela, tomada por quem é responsável pelo seu cuidado. O processo envolve muitas perdas de referências e pode gerar ansiedade”

Jeison estava constantemente nervoso durante esse período de saída e chegada no novo país, conta Ester. “Mamãe, onde estamos?”, era o que ele sempre perguntava. Além disso, o medo era visível. 

“O meu filho parecia estar sempre assustado”, diz a mãe.

Júlia explica que o medo é um sentimento adaptativo em situações de perigo, mas o estado constante de alerta é prejudicial para a saúde mental. O deslocamento, a falta de referências, o não pertencimento, a rejeição colocam a criança num estado permanente de medo, podendo gerar dificuldades de concentração, sono e mudanças no apetite.” 

A psicóloga ainda pontua que o desenvolvimento infantil depende das relações e das vivências mediadas, por isso, buscar caminhos que possam minimizar o medo constante é importante para que a criança consiga se sentir confiante para ter novas experiências e trocas significativas. 

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Allana Ferreira/ACNUR ©

Em atividade com crianças refugiadas e migrantes da Venezuela, professor conduz conversa sobre os direitos delas, igualdade de gênero e respeito ao próximo

A importância em acolher e ouvir as crianças refugiadas e migrantes

O processo de transição em que as crianças refugiadas e migrantes se encontram demanda apoio profissional, uma vez que toda a dinâmica familiar está passando por uma reconfiguração. É importante que as crianças tenham espaço seguro para se expressar, que possam compreender o que estão sentindo e que possam desenvolver estratégias de enfrentamento”, afirma a psicóloga Júlia.

Ao chegar em Pacaraima, a família González Villanueva ficou em abrigo por 15 dias. De lá, seguiram para Boa Vista (RR), onde permaneceram por três meses. Nesse tempo, receberam atendimento especializado. “Quando saímos da Venezuela não sabíamos como seríamos recebidos, mas muitas pessoas boas e organizações nos ajudaram. Como toda mãe, tudo o que eu queria – e quero – é ver meus filhos bem e felizes.”

Para garantir atendimento humanizado, o assistente de proteção da ACNUR comenta que as equipes de trabalho são multidisciplinares. Assim, cada especialista tem condição de dar atenção às necessidades específicas das pessoas, e, em conjunto, garantir uma proteção integral. “Os profissionais que trabalham em abrigos são, em especial, advogados e psicólogos. Sociólogos e antropólogos também compõem a equipe. Estamos em constante diálogo com a população atendida, identificando junto com eles os principais problemas e as possíveis soluções”, explica Pedro.

“No caso de crianças e adolescentes, nossa grande preocupação é garantir que suas vozes sejam escutadas”

A psicóloga Júlia reforça que o espaço terapêutico é de extrema necessidade e importância nessa fase. “Nesse espaço, podemos trabalhar questões como autoestima, identidade, pertencimento e prevenção ao abuso sexual“. Ela ainda ressalta que deve se comunicar à criança o que está acontecendo, entendendo que “a adaptação é um processo e que cada criança tem seu ritmo e suas estratégias”.

Ester conta que mantém a comunicação em espanhol com os filhos, para que se sintam acolhidos. Além disso, ela quer manter viva a conexão com a cultura de seu país de origem e a preservação da língua materna é uma das formas. 

Para garantir uma boa comunicação com a comunidade, todo trabalho deve ser adaptado ao idioma e aos símbolos que são comuns para aquelas pessoas. Como lembra a psicóloga, para uma criança, “pode ser grande fonte de apreensão não entender o que as pessoas falam, não conseguir comunicar o que se sente e não entender a forma como as pessoas se comportam”.

Como estratégia para mitigar esse impacto negativo, Pedro ressalta a importância de pessoas refugiadas e migrantes, da própria comunidade, receberem capacitação para dialogar com a população. “Não queremos reproduzir padrões de imposição. Por isso, com frequência, conseguimos capacitar a própria comunidade. Recentemente, venezuelanos da etnia Warao (a mais predominante entre os refugiados e migrantes venezuelanos indígenas) receberam treinamento para serem promotores de diálogos para questões de novas masculinidades e igualdade de gênero.” 

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Allana Ferreira/ACNUR ©

O atendimento de crianças refugiadas e migrantes conta com uma equipe interdisciplinar. ‘Suas vozes precisam ser escutadas’, afirma Pedro Pacheco, da ACNUR

A perda e a reconstrução de vínculos

A tentativa de retomada de uma vida normal é de extrema importância para que as crianças refugiadas e migrantes possam se desenvolver de forma saudável. É nisso que consiste o trabalho em campo. “Nosso objetivo é que as famílias possam voltar a ter uma vida minimamente próxima do normal o mais rápido possível. Por isso, trabalhamos na emergência, no presente, para garantir uma possibilidade de futuro melhor”, afirma Pedro.

A busca pela normalidade passa pela reconstrução de vínculos, uma vez que a ruptura abrupta dos laços afetivos é uma das experiências mais marcantes para as crianças em situação de deslocamento forçado, como aponta a psicóloga Júlia, relembrando sua experiência nos atendimentos de MSF. “Elas podem achar que isso se deu porque tem algo de errado com elas, porque fizeram algo que não deviam, porque não eram suficientemente amadas.” 

Jeison sofreu muito com a saudade nos primeiros meses no Brasil, quando estava em Roraima. “Nós não tínhamos telefone e nem como fazer contato com a minha família na Venezuela. O Jeison perguntava o tempo todo ‘cadê a vovó?’. Ele também sofria muito com o fato de não conhecer ninguém”, lembra Ester. 

A psicóloga explica que é muito importante para a criança entender que ela não está sozinha nos seus enfrentamentos, para que possa se sentir pertencente. 

“O pertencimento é uma necessidade humana. É ele que dá contorno, ponto de apoio e referência para que a criança possa explorar o mundo ao seu redor”

Dentre as inovações que o ACNUR implementou em Roraima, com o intuito de promover, entre outros benefícios, a criação de vínculos, está o projeto Jugando Bien. Como o nome sugere, essa é uma atividade esportiva que é utilizada como estratégia no programa de proteção de crianças. “A metodologia deste projeto foi adaptada para o contexto do Brasil e, a partir dela, podemos exercitar a resolução pacífica de conflitos, o desenvolvimento de autoestima e liderança, e o empoderamento de meninas, lembrando que elas estão mais vulneráveis às violências”, conta Pedro. 

O assistente de proteção do ACNUR compartilha, com ânimo, que existe a intenção de levar esse projeto para fora dos abrigos, promovendo jogos entre pessoas refugiadas e migrantes e a população brasileira. 

A partir de atividades como essas pode ser feito um trabalho de conscientização sobre e combate à xenofobia (preconceito contra pessoas de outro país, que pode se traduzir em hostilidades contra elas).

A xenofobia é crime no Brasil desde 1989, por meio da Lei 7.716/89. Em seu artigo 1º, lê-se: “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Crimes que se enquadram nessa Lei podem ser punidos com penas de reclusão de 1 a 5 anos e multas.

Atividades de integração são necessárias para que a criança perceba que não está sendo rejeitada. De acordo com a psicóloga Júlia, tal percepção evitará com que ela seja vítima de relações abusivas no futuro e permitirá que ela consiga construir novos vínculos saudáveis.

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Allana Ferreira/ACNUR ©

O projeto ‘Jugando Bien’, da ACNUR, realiza atividades esportivas como forma de exercitar a resolução pacífica de conflitos, o desenvolvimento de autoestima e liderança, e estimular as discussões sobre gênero

O desenho do futuro

Parte da integração da população refugiada e migrante no Brasil consiste na interiorização dessas pessoas, o que significa possibilitar com que elas saiam do abrigo, localizado na região de primeira acolhida, e se instalem em uma outra cidade do país, com moradia adequada.

A família González Villanueva faz parte das mais de 50 mil pessoas que já foram interiorizadas no Brasil pela Operação Acolhida desde abril de 2018, segundo dados do Governo Federal de abril de 2021. “Chegamos em Curitiba em fevereiro de 2020. Recebemos uma ajuda da Cáritas (organização do terceiro setor) para que pudéssemos pagar aluguel e comprar alimentos. Logo, eu matriculei os meus filhos na escola e meu marido começou a buscar emprego”, conta Ester. Alguns meses depois, ela engravidou. O pré-natal e o parto foram realizados pelo SUS, tendo sido atendida mensalmente em uma unidade de saúde de seu bairro e dado à luz a Adiel, no Hospital Evangélico de Curitiba. 

O acesso a todos esses serviços públicos só foi possível devido à documentação regularizada da família. “A regularização migratória é a primeira forma de reconhecimento dessas pessoas, garantindo acesso pleno a todo e qualquer direito”, explica Pedro Pacheco. Ele ainda chama a atenção para a importância da documentação como forma de diminuir os riscos de tráfico de pessoas, em especial quando falamos de crianças. Assim como os brasileiros possuem o CPF (Certidão de Pessoa Física), os refugiados e migrantes têm o RNE (Registro Nacional de Estrangeiro). 

Por conta da pandemia de covid-19, as crianças não chegaram a estudar em 2020, mas iniciaram os estudos em 2021. Nos dias de ir à escola pública onde estão matriculados para buscar atividades, Jeison e Kalet aproveitam para brincar no pátio. “A gente quer ficar aqui, mãe”. Toda vez, Ester precisa lidar com esse mesmo pedido explicando que ainda precisam esperar um pouco. 

No local onde vivem, não há outras crianças da mesma idade que os meninos e a escola seria um importante espaço para o desenvolvimento de relações e noções de pertença. Com as atividades todas virtuais, Jeison e Kalet ainda terão de aguardar para fazer novas amizades.  

Júlia Lobo pontua que crianças em fase escolar encontram pertencimento na escola. Por meio de atividades corriqueiras adequadas à sua idade e da interação com professoras e colegas, a criança vai assimilando o novo momento de vida. A psicóloga lembra que em um dos trabalhos sobre pertencimento e identidade que foi realizado pelo MSF com crianças, pediu-se que elas desenhassem suas casas. 

“Uma das crianças desenhou uma casa que metade foi pintada com a bandeira da Venezuela, metade com a bandeira do Brasil”

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