Para onde ir quando falta segurança para as crianças da favela?

‘O Estado falhou em proteger as crianças da favela’, diz a psicanalista Ilana Katz sobre ciclo de violência no Rio de Janeiro

Beatriz Carneiro Camilla Hoshino Publicado em 04.12.2025
Foto em preto e branco mostra duas mulheres se abraçando. A matéria fala de segurança pública para as crianças da favela depois da mais recente operação policial no Rio de Janeiro.
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Resumo

Diante da megaoperação policial nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, especialistas defendem que garantir segurança pública para todos é o primeiro passo para o cuidado de crianças e acesso a outros direitos em territórios marcados por violência armada.

Segurança pública precisa ser um bem comum. Mas e quando a cidade não é um espaço seguro? O bairro não é um espaço seguro? A casa não é um espaço seguro?

Primeiro, é preciso garantir o direito de se movimentar com segurança. É o que defende Ilana Katz, psicanalista e doutora em Psicologia e Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Isso começa, de acordo com ela, com o olhar da comunidade. “Cuidar da aldeia é a única saída de um futuro. Ninguém cuida de crianças e adolescentes sem cuidado territorial.”

No entanto, “a presença do Estado nas comunidades é basicamente a presença da polícia”, critica Pedro Pereira, coordenador do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca – RJ). Além disso, muitas vezes a localização de instituições públicas dificulta o acesso à justiça.

Segurança pública não pode ter CEP

No Rio de Janeiro, depois das megaoperações policiais que deixaram 121 mortos no mês passado, os moradores do Complexo do Alemão, por exemplo, devem procurar o Conselho Tutelar que atende o bairro de Inhaúma, enquanto o Complexo da Penha depende do Conselho Tutelar de Ramos, ambos na Zona Norte da capital. Órgãos como a Delegacia Especializada de Atendimento à Criança e ao Adolescente (Decave) ou a Defensoria Pública (que presta assistência jurídica gratuita) ficam no centro da cidade, a quilômetros de distância de muitas comunidades.

Quando há violação de direitos de crianças e adolescentes, inclusive em contextos de operações de segurança pública, os conselheiros tutelares são responsáveis por fazer encaminhamentos à rede de proteção, como serviços de assistência social, saúde, educação e proteção psicossocial, conforme previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Mas “esses deslocamentos acabam desestimulando as famílias a buscar seus direitos”, diz Tainá Alvarenga, assistente social e coordenadora do eixo de Segurança Pública e Acesso à Justiça, da Redes da Maré, organização que há mais de 20 anos atua pela garantia dos direitos humanos no Complexo da Maré. Lá, cerca de 140 mil habitantes não contam com Conselho Tutelar e Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). “As famílias estão perdendo a confiança nas instituições que deveriam protegê-las. Contudo, sem relatar oficialmente as violações, fica mais difícil conhecer a situação e elaborar respostas eficazes.”

Para ela, apesar da segurança pública ser um direito de todos, o Estado falhou em proteger as famílias que vivem em territórios vulnerabilizados, marcados pelo crime organizado e por operações policiais cada vez mais letais.

Um lugar onde a vida de quem se ama não tem valor

Na última semana, em mais uma operação policial na Maré, Pedro Henrique, de 12 anos, foi atingido na perna esquerda por um tiro, dentro do Ciep Hélio Smidt, na favela Rubens Vaz. Antes de ser encaminhado ao hospital, passou pela Clínica da Família que leva o nome de Jeremias Moraes da Silva, morto aos 13 anos durante uma operação policial.

“Não há proteção possível enquanto o ciclo da violência continuar. Nenhum cuidado substitui a negligência estatal”, afirma Ilana Katz.

Nos últimos nove anos, a Rede da Maré acompanhou 172 homicídios – muitos com indícios de execução -, mas em apenas 16 houve perícia, segundo a organização. Então, “como as famílias podem acreditar que é possível ter acesso à justiça se algo tão fundamental como a perícia não acontece?”, questiona Tainá.

Na falta de uma política de segurança pública que alcance toda a sociedade, a Redes da Maré realiza, desde 2016, o Plantão de Operação Policial. Nesse projeto, membros da organização e moradores das 16 comunidades da Maré acompanham as operações em campo e oferecem acolhimento e atendimento às famílias impactadas. Esse monitoramento ajuda na produção periódica do Boletim de Segurança Pública na Maré, com informações que podem então orientar políticas públicas em territórios de favela.

De acordo com dados do Ministério Público do Rio de Janeiro, 679 crianças foram vítimas de violência armada nos últimos oito anos e 286 delas foram atingidas em operações policiais. Na região da Maré, no mesmo período, oito crianças perderam a vida e seis foram feridas por armas de fogo, segundo dados do projeto “De Olho na Maré”. Para Ilana, “quando você vive em um lugar onde a vida de quem você ama não tem valor, acaba aprendendo que a sua também não tem. Isso é um fator de adoecimento profundo”.

Impactos sobre as crianças da favela

A violência armada nas comunidades também afasta crianças e suas famílias de direitos básicos, como saúde e educação, por exemplo. Uma pesquisa publicada em outubro deste ano pela Redes da Maré, em parceria com o Fundo das Nações Unidas para à Infância (Unicef), constatou que, em dias de operação policial, a taxa de vacinação infantil diminui em 90%. Isto é, se em dias normais aplicam‑se uma média de 187 doses e vacinam 89 crianças, nos dias de intervenção esse número cai para cerca de 20 doses e nove crianças vacinadas.

As aulas também ficam suspensas. Em 2025, até agora, foram 15 operações na Maré e nove dias sem aulas. Em 2024, as escolas de lá permaneceram fechadas ou parcialmente fechadas por 42 dias devido às operações policiais.

Desde que o projeto “De olho na Maré” começou a monitorar as ações das polícias militar e civil, em 2016, já foram contabilizadas 230 operações e 162 dias sem aulas. Isso significa uma diferença de dois anos de escolarização entre um estudante de fora da favela e um da Maré. O Ministério Público Federal do Rio de Janeiro instaurou então um inquérito para apurar esse assunto, levando o Ministério da Educação a criar uma comissão permanente para acompanhar o cumprimento dos 200 dias letivos obrigatórios, previstos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).

Concorrência desleal

Por fim, Ariel de Castro, advogado e membro da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, do Conselho Federal da OAB, destaca que a exclusão educacional e social de crianças e adolescentes favorece a cooptação de jovens por organizações criminosas. “Quando o Estado e a sociedade excluem, o crime inclui”, analisa. “Há uma espécie de concorrência desleal nas comunidades. Enquanto o Estado oferece poucas vagas nas escolas, o tráfico muitas vezes paga de R$ 200 a R$ 500 por dia para que adolescentes atuem no comércio de drogas.”

De acordo com um levantamento de 2022 da USP e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil investe quatro vezes mais no sistema prisional em comparação com a educação básica. Cada preso custa, em média, R$ 1,8 mil por mês. Já um aluno de escola pública nesta fase de ensino recebe R$ 470 em investimentos mensais.

Por isso, Ariel sugere “estratégias e políticas de segurança pública que se apoiem na educação em tempo integral e na preparação para o mundo do trabalho”. Segundo ele, isso inclui programas de aprendizagem, estágios, cursos supletivos e ensinos técnicos, além de bolsas de estudo e subsídios financeiros.

Informação é uma espécie de proteção

Para reverter essa realidade, é preciso se informar, saber como funciona o Estado e suas instituições, especialmente como opera o sistema de justiça. Também é importante conhecer como vivem as famílias em territórios de violência armada. Principalmente as mulheres. Principalmente as mulheres negras.

Isso porque “são elas que estão na linha de frente da defesa dos jovens e homens negros impactados pela violência armada”, afirma a assistente social Tainá Alvarenga. “São elas que, muitas vezes, saem primeiro às ruas para denunciar que pessoas estão sendo torturadas, violentadas e, em várias situações, são elas que resgatam corpos.”

Para o advogado Ariel de Castro, “essas operações deveriam ser precedidas de planejamentos e protocolos específicos para a proteção de crianças e adolescentes diante de seus riscos inerentes”.

Nesse sentido, a megaoperação realizada no Rio de Janeiro, de acordo com ele, “significou uma afronta à decisão do STF” por descumprir as determinações da ADPF das Favelas, que estabelece normas de prevenção para aumentar a transparência e reduzir a letalidade das ações policiais em comunidades do Rio de Janeiro. Ele ressalta que, desde 2013, existe um protocolo de atuação para proteção integral de crianças e adolescentes, mas que vem sendo desrespeitado.

O que prevê a ADPF das Favelas?

Além do planejamento prévio das operações, a ADPF das Favelas prevê, entre outras ações, que operações em proximidade de escolas e hospitais devem respeitar o uso da força, especialmente no horário de entrada e saída das aulas, e que deve haver acompanhamento obrigatório de ambulâncias e equipes de saúde. Para policiais envolvidos em operações com mortes, a assistência psicológica é obrigatória. Também é obrigatório o uso de câmeras de áudio e vídeo nas viaturas das polícias militar e civil, e nas fardas dos agentes, exceto em casos de investigação.

O que pode ser feito?

Para denunciar violações de direitos humanos, incluindo violência, existem serviços gratuitos como o “Disque 100”. Também é possível procurar núcleos especializados como:

  • Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA): órgão consultivo e deliberativo responsável por acompanhar as políticas de proteção.
  • Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente: atuam em âmbito municipal para garantir direitos.
  • Secretaria de Estado de Direitos Humanos ou Secretaria de Assistência Social: geralmente responsável por políticas públicas de proteção.
  • Ministério Público (MP) e Promotorias de Justiça da Infância e Juventude: atuam na defesa dos direitos de crianças e adolescentes, promovendo ações judiciais quando necessário.
  • Delegacias Especializadas de Proteção à Criança e ao Adolescente: foco na investigação e repressão de crimes contra crianças e adolescentes.
  • Juizados da Infância e Juventude: responsáveis por julgar casos de proteção à criança e ao adolescente, incluindo medidas de proteção e medidas socioeducativas.
  • SOS Criança e Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS): serviços de atendimento às vítimas de violência, abuso e exploração.

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