Conselho Tutelar serve para proteger a criança, não para punir

Mais de 30 mil conselheiros tutelares serão eleitos este ano por voto popular. Mas para que serve o órgão criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente?

Célia Fernanda Lima Publicado em 31.05.2023
Foto em preto e branco com foco em mãos de uma criança dadas com a de um adulto
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Resumo

Os Conselhos Tutelares atuam diretamente na proteção e no acolhimento de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Em ano de eleições unificadas, que vai escolher mais de 30 mil conselheiros em todo o país, entenda a atuação desse órgão.

Abandono, maus-tratos, exploração, abuso sexual infantil… Se tem uma situação que coloca em risco a segurança de crianças e adolescentes, um Conselho Tutelar pode ser acionado. Sua missão imediata é acolher e proteger menores de idade em situação de vulnerabilidade social e que sejam vítimas de negligências, encaminhando as denúncias a órgãos policiais ou judiciais, além de buscar diálogos com as famílias com a prestação de serviços sociais.

Como um elo que aproxima a comunidade do poder público, os Conselhos Tutelares foram criados para proteger a infância, uma necessidade que antes do ECA não era atendida, já que essa população era assistida pelo Estado por meio do Código de Menores e instituições, como a Fundação Estadual para o Bem-estar do Menor (Febem).

Apesar disso, ainda é comum a ideia de que os conselheiros podem “tirar a guarda” de uma criança da família ou que ela pode ser “abandonada” em um conselho tutelar, como uma prisão. “O Conselho Tutelar ainda é visto como um órgão punitivo, e não um órgão preventivo, de orientação e de proteção”, diz o psicólogo Alexandre de Paula, autor da pesquisa “Redes de proteção e garantia de direitos: representações sociais por conselheiros tutelares”, pela USP de Ribeirão Preto (SP).

Durante a pesquisa, o psicólogo ouviu conselheiros tutelares do interior de São Paulo e eles confirmaram que a comunidade ainda não entende para que serve e como atuam os conselhos. “Tem mães que chegam pedindo vaga em creche, por exemplo, mas os conselheiros não fazem isso, pois não são gestores ou políticos”. Toda cidade com pelo menos 100 mil habitantes tem um Conselho Tutelar, mas De Paula conta que a divulgação do papel do órgão por parte das prefeituras às quais está vinculado administrativamente ainda é insuficiente.

Com a campanha “Apoiar e proteger”, o Instituto Alana e outras organizações buscam esclarecer os objetivos dos Conselhos Tutelares e promover a qualificação dos conselheiros no estado de São Paulo, com planos para estender a mobilização e articulação a outras regiões.

“As pessoas vêm pedir ajuda. A gente atende, orienta e encaminha aos órgãos competentes porque não temos o poder de justiça nem de polícia”, explica a assistente social e psicopedagoga Rosa Quemel, conselheira tutelar no município de Bragança (PA). Mesmo assim, já teve que acolher em casa uma criança de três anos. “Ela era torturada pela madrasta e ficava trancada em um armário. Na época, a juíza deixou que ela passasse a noite comigo, pois ainda não tinha abrigo na cidade”.

3 dúvidas respondidas sobre a atuação dos Conselhos Tutelares:

  • Em que casos um Conselho Tutelar pode acompanhar e acolher crianças?
    – Emergências hospitalares
    – Ações policiais
    – Combate à evasão escolar
    – Fiscalização em instituições de abrigo infantil
    – Aconselhamento a familiares
  • O Conselho Tutelar pune as famílias?
    Não. Os conselhos não têm poder de polícia ou de juiz. Portanto, não cabe ao órgão julgar ou punir as pessoas envolvidas nas denúncias. Os conselheiros podem fiscalizar a situação de crianças e adolescentes, ouvi-los e encaminhar as denúncias para os órgãos competentes, como o Ministério Público e as delegacias especializadas.
  • O conselho pode tirar a guarda de uma criança?
    Depende. O Conselho Tutelar fiscaliza as condições de crianças e adolescentes após as denúncias, pode intervir e acolhê-los se constatar que sofriam negligências, indicando a transferência da guarda para um parente ou família acolhedora. Mas quem decide é a justiça.

O que impede uma melhor atuação dos Conselhos Tutelares?

O volume de denúncias e a falta de recursos para atender melhor a comunidade são algumas das dificuldades enfrentadas pelos conselheiros. Quemel conta que, durante um mês, chegou a encaminhar ao Poder Judiciário 16 casos de estupro de vulnerável, fora as outras ocorrências. “Recebemos denúncias na sede, por telefone, nas ruas e atendemos aquelas que chegam nas delegacias. Nosso trabalho é árduo e de risco. Já fui ameaçada e tive que recorrer à justiça pedindo proteção”.

Muitos conselhos não têm prédio próprio e funcionam com estrutura precária em casas ou espaços alugados pelas prefeituras. “Aqui passamos muito calor e não tem banheiro adequado. Eu que arrumei esse espaço para as crianças ficarem”, conta a conselheira ao mostrar uma sala decorada com alguns brinquedos.

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Célia Fernanda

Para atender crianças e adolescentes vítimas de negligências, os Conselhos Tutelares precisam de melhor estrutura e capacitação para os atendentes. No Pará, a conselheira Rosa Quemel explica a importância desse serviço: “Somos a porta de entrada das denúncias para a proteção das crianças”.

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Célia Fernanda

Para atender crianças e adolescentes vítimas de negligências, os Conselhos Tutelares precisam de melhor estrutura e capacitação para os atendentes. No Pará, a conselheira Rosa Quemel explica a importância desse serviço: “Somos a porta de entrada das denúncias para a proteção das crianças”.

Outras queixas envolvem a falta de conhecimento especializado para o acolhimento de crianças e adolescentes e a falta de apoio psicológico. “Já passei por algumas capacitações, mas, de uns tempos para cá, estamos muito carentes disso”, conta Quemel. “Também não temos progressão de salário. Plano de saúde, seguro de vida e acompanhamento psicológico só se pagarmos por conta própria”. Essas reivindicações coincidem com as dos conselheiros ouvidos na pesquisa de De Paula, que dizem precisar de conhecimento técnico e de acompanhamento psicológico porque “lidam com situações muito difíceis e sensíveis”. O pesquisador defende que o atendimento especializado é necessário para encaminhar a denúncia, já que os documentos registrados pelos conselheiros têm valor de prova jurídica.

“Casos de negligência às crianças demandam uma escuta qualificada. Quanto mais sensível for essa escuta, maior a qualidade do registro que resultará no trabalho efetivo do Conselho Tutelar”.

Em relação à interferência político-partidária, De Paula explica que figuras políticas, ao perceberem que os conselheiros têm uma relação de influência nas comunidades, costumam usar a instituição para interesses próprios. Essa prática também é criticada pela socióloga e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Estela Scheinvar, que pesquisa a origem dos Conselhos Tutelares e suas transformações. Segundo ela, o conselheiro tutelar não pode ser vinculado a grupos políticos porque “isso inibe a atuação e a capacidade do conselheiro de enfrentar o poder público”.

Ela ressalta que, como a proposta inicial era que o conselheiro fosse ligado a movimentos sociais, as pessoas mais indicadas para o cargo seriam aquelas envolvidas com o seu bairro além da experiência individual, e que participassem de mobilizações com a comunidade. Scheinvar conclui que o perfil dos conselheiros mudou e, por isso, é preciso articular melhor as lutas de acordo com a realidade local, para que os municípios tenham mais atenção às necessidades da população que acessa os conselhos.

Eleições para escolher os conselheiros da cidade  

Qualquer pessoa pode se candidatar ao posto de conselheiro ou conselheira tutelar, desde que seja maior de 21 anos, resida no município em questão há pelo menos dois anos, esteja com o título de eleitor regularizado e comprove experiência de 2 a 3 anos em atividades em defesa dos direitos  da criança e do adolescente. No dia 1º de outubro, o voto popular vai eleger 30.500 conselheiros tutelares em quase todos os municípios brasileiros para um mandato de quatro anos. O processo é aberto para toda a população, que tem o direito de escolher cinco representantes para cada conselho. “Vamos escolher os profissionais que estarão de prontidão para proteger crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade”, afirma o advogado Pedro Mendes, do Instituto Alana. “Defendemos que esse processo ocorra respeitando o melhor interesse dessa população, com absoluta prioridade, dentro dos pilares democráticos”, diz. As eleições para escolher os conselheiros ocorrem sempre no primeiro domingo de outubro do ano seguinte às eleições presidenciais. Este ano, serão unificadas em todo o país, com o apoio de órgãos como o Ministério Público, o Tribunal Regional Eleitoral e a Ordem dos Advogados do Brasil. “As eleições são importantes especialmente após o período pandêmico e suas consequências, como a evasão escolar e o aumento de denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes”, lembra Mendes. Para tirar as dúvidas da população sobre o processo, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania lançou um “Guia de orientação”.

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