Maria Clara e Francisco perderam a mãe; Maya perdeu o pai. As histórias dessas famílias mostram que é possível atravessar o luto com cuidado, memória e presença
 
 Como falar de morte com uma criança que perdeu a mãe ou o pai? Rafael e Jessica atravessaram o luto ao lado dos filhos e descobriram novos jeitos de viver. Em suas histórias, a ausência é preenchida com cuidado, memória e presença.
“Eu pensei que era uma gripe, mas minha mãe morreu de uma doença chamada câncer de mama”, conta Maria Clara, 13 anos, em uma palestra, de 2024. “Eu sinto saudades dela e isso dói, mas ainda assim sou muito feliz, porque tenho pessoas incríveis ao meu redor.” Ela e o irmão Francisco, de nove anos, perderam a mãe, Micaela, em 2018.
Desde então, “a reconstrução da nossa família não foi sobre voltar a ser o que a gente era, mas sobre inventar uma nova forma de ser três”, diz Rafael Stein, pai da Maria Clara.
Rafael precisou reconfigurar a própria vida enquanto lidava com a ausência da esposa e, ao mesmo tempo, se tornava cada vez mais presente na vida dos filhos. “A falta nunca vai deixar de existir, mas o amor também não.”
Jessica Nolte perdeu o marido Markus em 2022, quando a filha Maya tinha quatro anos. A gentileza e o apoio das pessoas ao redor foi essencial para o recomeço. “As famílias da escola da Maya se mobilizaram para me acolher. Fizeram um ritual que me emociona até hoje. Além disso, a professora dela também nos visitou no dia da morte”, conta. “A corrente de afeto que recebi nesse momento me deu muita força, pois foi essa comunidade que me fez seguir.”
Conviver com a morte fica ainda mais difícil quando ela atravessa a infância com a perda precoce de uma mãe ou de um pai. Nestes depoimentos, Rafael e Jessica contam a história de suas famílias para Lunetas. Compartilhando dores e aprendizados, eles falam de luto mas também sobre cuidado, amor e a força dos recomeços.

“Antes da morte da Micaela, éramos uma família comum, mas bonita. Eu estava sempre correndo, envolvido com trabalho, prazos, contas. Ela era o centro da casa, quem sabia o que faltava, o que as crianças tinham feito.
A relação dela com os filhos era de um cuidado absurdo. Ela tinha a capacidade de transformar qualquer coisa em afeto. Aprendi observando-a, mas só agora, ao cuidar dos dois sozinho, vivencio o que ela fazia.
Então, em 2016 veio o diagnóstico. A Mi decidiu que contaria para a Maria, com cinco anos na época. Olhou nos olhos dela e explicou que estava ‘dodói’, que tinha uns bichinhos e que tomaria uns remedinhos. Falou também que o cabelo cairia. Maria riu e as duas se abraçaram. O Francisco era muito pequeno, então a Mi falava com ele do jeito dela. ‘Filho, a mamãe vai precisar da sua ajuda agora’, ela dizia.
Quando soubemos que não tinha cura, nunca escondemos das crianças, mas também não colocamos a morte como ponto final. Era sempre sobre amor, sobre continuar juntos de outro jeito. Não teve uma conversa pontual, mas passamos a falar mais sobre o tema através de livros e histórias.
No dia em que a Mi faleceu, segurei suas mãos e disse que estava tudo bem. Ela fechou os olhos e não os abriu mais. As crianças não foram ao velório porque foi uma decisão conjunta dela e da psicóloga. A Maria tinha um passeio da escola, e a gente decidiu manter. Era o jeito que ela queria: que a vida deles seguisse, que não fosse marcada só pela despedida.
Quando voltei pra casa, mostrei um objeto da Mi para a Maria e disse: ‘a mamãe quer que você fique com isso.’ Ela me olhou e perguntou: ‘a mamãe morreu?’. Eu disse que sim. Ela gritou, chorou muito, e eu chorei junto. A gente se abraçou por muito tempo. Contei a história de como a gente escolheu o nome dela. Falei que tudo bem chorar e sentir saudade. Depois disso, ela repetiu tudo para o Francisco, que tinha só dois anos. Ele não entendia o que era morte. Cresceu sem a presença física da mãe, mas com as histórias que a gente conta, com as lembranças que mantemos viva dentro de casa.
Foi assim.”
“As crianças cresceram dentro da falta, mas sem que a falta virasse um buraco. A ausência da mãe é uma presença constante aqui. A gente fala dela o tempo todo. A Maria fala com naturalidade, o Francisco guarda mais. Cada um encontrou o seu jeito de continuar amando.
A gente aprendeu a rir de novo, a planejar de novo, a viver de novo. E, com o tempo, fomos criando nossos próprios rituais para continuar com a Micaela por perto. No Dia das Mães, a gente faz o bolo preferido dela, coloca flores, conversa sobre as lembranças. No aniversário, cantamos parabéns. Ela continua aqui e nós continuamos com ela. É difícil explicar, mas às vezes parece que a Mi só foi dar um passeio, e daqui a pouco vai voltar.”

“Eu e o Markus éramos inseparáveis. Quando a Maya nasceu, ela passou a fazer parte dessa dinâmica, e nos tornamos um time. Eles tinham uma relação linda, de puro amor.
Markus foi diagnosticado com câncer de cabeça e pescoço quando Maya tinha três meses. Conseguimos manter a leveza e isso fez com que ela vivesse tudo de forma mais suave. Tivemos muitas conversas ao longo dos quatro anos da doença, diferentes em cada fase da Maya. Nunca menti. Conforme ela me perguntava algo, eu encontrava jeitos de responder, de forma lúdica.
Os livros nos ajudaram a dar sentido ao que estava acontecendo. Li muita obra teórica sobre morte e luto, mas foram os livros infantis que mais me moveram. As ilustrações traziam camadas de interpretação e poesia.
Markus melhorou e a vida parecia voltar ao normal. Mas então veio o segundo diagnóstico. Metástase. Foram tratamentos difíceis. Maya sabia quando o papai estava mais cansado e precisava se isolar num quarto. Ela mandava cartinhas por baixo da porta.
Eu explicava pra Maya que aquilo era uma doença, mas que a gente estava tentando tudo para ele melhorar. Lemos muitos livros sobre ciclos da vida. Então, a ideia da morte foi sendo criada no imaginário dela. Quando chegamos perto do fim da vida do Markus, ela logo entendeu o que ia acontecer.
Ele quis morrer perto da família. Em casa, Maya entrava e saía do quarto, sempre levando presentes e desenhos para ele. Nas últimas semanas, criamos um ritual: acender uma vela toda noite para agradecer alguma coisa da nossa vida. Na última noite juntos, fizemos o ritual de agradecimento com o Markus, que já falava com dificuldade, mas se esforçou para conseguir estar presente. Maya agradeceu a presença e o amor dele. Foi lindo.
Ela foi dormir em paz, e ele também.
Contei pra Maya que o pai dela tinha morrido. Disse que ele não estava mais aqui, que tinha virado pó de estrela e que ia voltar ao ciclo da natureza. Ela, na hora, não reagiu. Aceitou aquilo como algo normal e foi brincar. Depois, o luto se manifestou de diversas formas: ela sentiu raiva de mim, porque foi onde conseguiu extravasar. Tinha ataques de raiva, e ainda tem. Mas com muita paciência e conversa, fomos superando cada desafio. E seguimos.”
“Markus me ensinou a viver tudo com intensidade. Então, vivo dessa forma em homenagem a ele. Sinto que o desrespeito quando não estou aproveitando cada minuto da vida, que é tão frágil, tão passageira.
Acho que a Maya ainda vai viver muitos lutos ao longo da vida. Percebo que em cada fase, algo diferente se manifesta. Hoje, com sete anos, já tem muitas ferramentas para lidar com a tristeza, a saudade, a raiva, o não pertencimento. E nós criamos um vínculo muito forte. Então, ela me conta tudo e também me enche de perguntas difíceis. Mas é através dessas questões que vamos encontrando as respostas juntas.
Ela também tem seus próprios rituais. Montou no quarto um cantinho do papai, onde coloca tudo que acha precioso para ele. Também tem um caderno para desenhar e escrever memórias. Tem os álbuns de fotos que olha sempre que sente saudade. Às vezes chora, quer ficar sozinha, e tudo bem. O luto a acompanhará sempre.”
“Enquanto o adulto tem recursos simbólicos e cognitivos mais desenvolvidos para elaborar uma perda, a criança vive o luto de modo fragmentado, alternando momentos de aparente normalidade com outros de intensa tristeza”, explica o psicólogo Rodrigo Trevisan, especialista em luto. “Além disso, a criança depende do olhar e da estabilidade emocional dos adultos ao redor para dar sentido à ausência e sentir-se segura novamente.”
Cada criança vai reagir de uma forma — tristeza, medo, culpa, irritabilidade, regressões comportamentais, alterações no sono e apetite, dificuldade de concentração ou apego excessivo. “São jeitos de elaborar a ausência. O importante é ter um adulto disponível e confiável para acolher e nomear o que está ela está sentido.”
De acordo com Rodrigo, a compreensão da morte evolui com o desenvolvimento infantil:
Por isso, a forma de explicar e de acompanhar o luto precisa ser adequada à idade e à linguagem emocional da criança, afirma o psicólogo. No geral, ele reforça que “a comunicação deve ser honesta, simples e amorosa. Metáforas como ‘virou estrelinha’ podem confundir as menores. Portanto, o ideal é usar palavras que ela entenda porque a clareza protege emocionalmente e ajuda a construir confiança.”
Jessica usou algumas metáforas para explicar a morte do pai para Maya, mas sempre acompanhada da verdade. Agora, com sete anos, sente que a filha já consegue entender tudo de forma concreta e, juntas, conversam sobre o assunto. “Falamos sobre religião, vida após a morte, enterros, cremações, rituais, biologia e os ciclos da natureza, sobre doenças e mortalidade. Criamos nossas próprias teorias e isso ajuda muito.”
“O luto não passa. A gente se adapta a ele, e ele se torna menor dentro do nosso mundo, que se torna cada vez maior.” – Jessica Nolte
Perguntas como “por que a mamãe não está mais aqui?” ou “para onde foi o papai?”, por exemplo, expressam o esforço da criança para compreender algo que, até para os adultos, é difícil de entender: a finitude da vida. A orientação de Rodrigo é responder com honestidade e simplicidade, adaptando a linguagem à idade e ao nível de compreensão da criança. Nesse sentido, no lugar de metáforas, ou junto delas, pode-se dizer:
Ninguém sabe o que fazer diante da morte e, em uma sociedade que exalta a felicidade, sofrer parece errado. “Parece que as crianças têm que estar sempre felizes”, diz Jessica. “Muito se fala sobre os sentimentos infantis, mas será que mães e pais sabem mesmo sustentá-los quando se manifestam?”
Jessica conta que, quando o marido morreu, a tendência de muitas pessoas era mudar de assunto e contar algo feliz. Mas ela lembra que não era a melhor maneira lidar. “É a pior coisa que se pode fazer com alguém enlutado porque o que mais queremos é falar. Talvez isso nos faça chorar, mas não significa que é desconfortável.”
“Sentir tristeza pode ser poético e curativo.” – Jessica Nolte
O psicólogo Rodrigo Trevisan explica que falar sobre quem morreu não reabre a ferida, pelo contrário, ajuda a cicatrizá-la. Por isso, “evitar o assunto transmite a ideia de que o tema é proibido. A orientação é escutar com naturalidade, deixar que a criança conduza o ritmo da conversa, responder o que for perguntado e validar os sentimentos.”
Manter presença, rotina e previsibilidade ajuda a criança a se sentir segura, explica o especialista. “Ela pode querer ficar em silêncio e falar quando se sentir pronta, especialmente se perceber que os adultos suportam falar sobre a morte sem esconder ou dramatizar.”
“Muitos amigos se afastaram, principalmente os homens”, relata Rafael. “Acho que pra eles era ainda mais desafiador me ver falando sobre sentimentos, dor, luto, e mudando completamente a vida para cuidar dos filhos.”
Ele lembra que ao mesmo tempo que algumas pessoas tentaram preencher o silêncio com frases prontas, outras simplesmente sumiram. Mas ainda teve quem ficou quieto, presente, sem tentar consertar nada. “Foram essas presenças silenciosas que mais me ajudaram. O ‘tô aqui’ sem precisar explicar nada.”
“O luto é um território que a gente atravessa sozinho, mas não precisa atravessar sem companhia.” – Rafael Stein
“Não tente ser forte o tempo todo, isso só adia a dor e faz com que ela volte maior. Peça ajuda, chore na frente dos seus filhos. Eles precisam ver que o amor também sofre, mas continua. Para as crianças, diga que a falta nunca vai deixar de existir, mas o amor também não.” – Rafael Stein
“Converse sobre a morte. Não precisamos ter todas as respostas; o interesse já é suficiente. Pergunte pra criança o que ela acha, pensa, sente. Não tenha medo de perguntar sobre a pessoa que morreu, ela segue vivendo através de memórias. E aprendam a sustentar o choro e a tristeza. A felicidade não existe sem a tristeza, a vida não existe sem a morte.” – Jessica Nolte
O adulto enlutado não precisa ser forte o tempo todo porque mostrar tristeza é humano e também educativo. No entanto, Rodrigo Trevisan afirma que é importante não inverter os papéis. Isto é, a criança não deve se tornar cuidadora emocional do adulto. “É importante buscar apoio psicológico e momentos de descanso.”
É o tempo que vai permitir que mães, pais e crianças consigam “simbolizar a ausência, integrar a lembrança da pessoa que morreu à própria identidade e seguir desenvolvendo vínculos com outras figuras afetivas”, explica o psicólogo. No entanto, “o tempo só favorece essa elaboração quando há presença de adultos disponíveis, escuta e espaço para expressão emocional. O que ajuda não é o tempo em si, mas o que se faz dentro dele.”
Depois da morte da esposa, Rafael começou a escrever — no projeto “Cartas para Maria”, com bilhetes para que os filhos leiam no futuro, e na newsletter “do Depois”, com crônicas que reúnem “palavras que não querem curar, mas sentar do teu lado, na ponta da cama, e dizer: ‘eu também tô tentando’.” Ele ainda é coautor dos livros “Luto por perdas não legitimadas na atualidade” e “Quando a morte chega em casa”, voluntário na Casa Paliativa e membro do projeto Luto do Homem.
“Recomeçar não é esquecer, é seguir levando a presença de quem partiu dentro de nós. Tenham paciência com o tempo de cada um e busquem ajuda quando for preciso. Cuidar da criança também é cuidar da própria dor.” – Rodrigo Trevisan
“Nosso luto gerou estranhamento. Parecia que éramos as únicas no mundo vivendo isso”, conta Jessica. A melhor ideia que teve para mudar a situação foi criar a livraria infantil Casa Cosmos. Para ela, se trata de um espaço de acolhimento, onde outras pessoas podem procurar ajuda. “Nossa especialidade são temas considerados tabus, polêmicos, que causam afastamento.”
Jessica indica os livros que ajudaram ela e a filha Maya nos momentos mais difíceis.
 
 
Uma narrativa sobre morte, luto e transformação, com olhar poético que surge a partir da pergunta de uma garotinha, a Gabriela: o que acontece com as coisas quando elas desacontecem? Assim, a menina tenta algumas respostas: semente desacontece para ser planta, nuvem vira chuva, e onda vira espuma. Mas e as pessoas, para onde vão?
 
 
Na obra, uma mãe ensina aos filhos que todos estamos ligados por um fio invisível feito de amor — um sentimento que, mesmo sem ser visto, pode ser sentido no coração. Além disso, a história traz conforto diante da separação, da saudade e da perda. Ela mostra, então, que o amor é uma conexão eterna que une as pessoas onde quer que estejam.
 
 
O livro celebra a vida e valoriza as lembranças contando a história de uma raposa, que teve uma vida longa e feliz. Mas quando sentiu-se muito cansada, decidiu partir. Então, seus amigos da floresta se reúnem para lembrar os momentos felizes que viveram juntos.