Uma parábola sobre quando as sombras do universo digital esmaecem as nossas experiências cotidianas
O livro "Um senhor notável" convida crianças de todas as idades a refletirem sobre a cultura de superexposição e redescobrir o "eu" em meio às selfies de uma vida cada vez mais entre telas.
É recente mas, desde que a coleção particular de momentos especiais dos álbuns de fotografia migrou para a palma das nossas mãos, os dedos logo se habituaram a deslizar entre os registros que contam a história editada de cada um. Enquanto isso, toda experiência está autorizada a concorrer por um espaço nessa memória de acesso aleatório e a qualquer tempo.
A selfie virou também a linguagem preferida de um senhor notável, reconhecido por ser muito expressivo. Ele compra um celular com “a câmera do modelo mais recente” para, assim, participar da aventura comum de dividir com o mundo um pouco de si.
“‘Clique, clique, clique’ – aquele som maravilhoso que sempre acompanha a multiplicação das imagens”
Até que, certo dia, ao se posicionar em frente ao espelho para fazer a barba, ele “teve a impressão de que seus traços tinham se tornado menos nítidos”. A cada imagem de si que produzia, “mais desfocada sua imagem real parecia ficar”, conta o livro. De tanto se fotografar, seu rosto começa a se desmanchar em pixels, as pequenas unidades que formam uma imagem digital.
Um dos primeiros lançamentos do selo infantil da Todavia, o novo livro da mesma dupla polonesa de “A alma perdida” conta a história de como o Senhor Aparecido começou a desaparecer em meio a uma cultura de superexposição. Essa fábula contemporânea nos conduz por uma busca para redescobrir a singularidade quando os filtros deixam a imagem de todo mundo tão parecida.
Quando a palavra selfie entra pro vocabulário, inaugura também uma nova forma de comunicar a nossa própria imagem e como nos relacionamos com as experiências. “Parece que se temos uma experiência sem fotografar, não a vivemos de fato”, diz Isis Graziele da Silva. A psicóloga catalogou diferentes tipos de selfie na pesquisa “Eu fotografado: as narrativas de si em tempos de selfie”, a partir de entrevistas com jovens.
Segundo ela, os filtros passam a ideia de que “se melhorado, o sujeito condiz com o que se espera. Assim, pode fazer parte do laço social, o que o livra (em geral de forma bastante precária) do sentimento de solidão e abandono”.
Atualmente, 96% das crianças e adolescentes de 9 a 17 anos acessam a internet todos os dias. Nesse sentido, “o uso indiscriminado dos filtros, a necessidade constante de edição das imagens e a pressão para selecionar fotos de si ‘perfeitas’ são hábitos que podem gerar um efeito de comparação”, diz Rodrigo Nejm, doutor em psicologia e consultor especialista em educação digital do Instituto Alana.
Isso causa “prejuízos à saúde mental e insatisfação com o próprio corpo. Sobretudo nessa fase em que as identidades estão em formação e a busca por pertencimento e reconhecimento social são tão importantes”, diz. “É preocupante ver uma criança desvalorizando ou até sacrificando sua singularidade para se adequar a uma versão editada e filtrada. E, justamente, na fase da vida em que pode experimentar múltiplas formas de ser e de se expressar.”
Embora o Senhor Aparecido já tenha mais idade, isso não o impede de se entregar “a pensamentos nada alegres” ao perceber “aquelas mudanças perturbadoras” em sua imagem. Ele então se fecha em casa, longe dos olhos dos outros. Passa a acompanhar “tudo o que era seu desaparecer – quem ele tinha sido e o que significava”.
“Agora as memórias repousam na ‘nuvem’. Como as selfies podem se renovar várias vezes, as memórias passam a ser nuvem também”, reflete a socióloga Wânia Maria Araújo.
Depois de conseguir um novo rosto, “à prova de cliques”, o Senhor Aparecido volta à rua e o que acontece o deixa perplexo. Um livro assim pouco óbvio é capaz de deixar perplexo também qualquer leitor menos desavisado. Isso se esperar de “Um senhor notável” mais uma narrativa infantojuvenil, daquelas que entrega apenas o que supostamente é para criança.
“Precisamente o costume de se fotografar apagava uma camada invisível, e a mais delicada, da real face humana”
Perder o que nos torna únicos é uma forma de apagamento. Para evitar a invisibilidade entre os que não seguem os “padrões esperados”, Nejm faz recomendações. E elas passam por combinar a presença digital crítica à oferta de espaços de socialização desplugados. “Isso é o que permitirá que crianças e adolescentes sintam que o valor de sua singularidade, ainda que mutante, permanecerá para além dos flashes e dos microssegundos da visibilidade nas redes sociais.”
Enquanto “o culto à imagem e à eterna juventude, a inflação do eu e a obsessão de parecer sempre bem aos olhos dos outros são itens indispensáveis ao ideal de felicidade dos dias de hoje”, como diz o livro, tem quem não suporta a própria aparência. O Transtorno Dismórfico Corporal (TDC) é uma condição que afeta a percepção de si e leva a preocupações irracionais sobre defeitos em alguma parte do corpo. “Não posso sequer começar a calcular quanto tempo perdi me sentindo horrível”, conta a cineasta Shaina Feinberg, que tem TDC. Essa autoaversão geralmente começa na infância, causando significativo sofrimento emocional a crianças e adolescentes.