Para além da remuneração em dinheiro, ações como a redução da jornada formal e creches no trabalho podem garantir mais equidade para elas
Cuidar da casa e dos filhos consome em média 25 horas semanais das mulheres. Assim, a permanência e o desenvolvimento no mercado de trabalho pode ser um desafio. O Lunetas traz ações de empresas, governo e movimentos sociais que visam reconhecer a economia do cuidado.
“Ainda há muito a fazer para que o trabalho de cuidado seja reconhecido”, afirma Nana Lima, diretora da Think Olga. A organização, que busca sensibilizar a sociedade para as questões de gênero, tem a economia do cuidado como um dos eixos permanentes de pesquisa. Nessa lista de “tarefas invisíveis”, entram comparecer à reunião de pais da escola, administrar as férias escolares e fazer a manutenção da casa, por exemplo.
Ações práticas têm mostrado que é possível garantir às mulheres qualidade de vida e as mesmas oportunidades de carreira profissional. Mas remunerar o trabalho de cuidado, embora importante, não pode ser a única solução, defende Nana. Isso porque, segundo ela, “o estigma de que essa mulher deve ser a responsável pelo cuidado permaneceria e a função seguiria desvalorizada”. Para ela, é preciso “convocar os homens e distribuir essa carga de trabalho entre toda a sociedade”.
“O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”, diz a filósofa italiana Silvia Federici. Além de colocar o trabalho doméstico no centro do debate, ela defende que a ideia de que o gênero feminino tem mais vocação para tarefas domésticas ou que isso faz parte do instinto materno permite o controle da mulher.
Maria Fernanda Marcelino, da Organização Sempre Viva Feminista (SOF), aponta a contradição da economia global. O sistema considera imprescindível esse trabalho doméstico para garantir as forças de produção, mas não o remunera. Para ela, alternativas como a economia solidária permitem que as mulheres conciliem atividades remuneradas e seus afazeres. Mas esse modelo de trabalho, diz, ainda “coloca sobre as costas delas todo o trabalho invisível”.
Para fazer doutorado na Inglaterra, Juliana Kaiser, professora do Laboratório de Responsabilidade Social da UFRJ e especialista em diversidade, precisou organizar uma logística. O plano teria que funcionar sem a presença dela nos cuidados da casa e do filho de 12 anos.
Contudo, mesmo estando a quilômetros de distância, “é como se a casa tivesse vindo junto comigo”, conta. Isso porque os prestadores de serviço escrevem para ela, e não para o marido, que é médico e está como o responsável por essas tarefas no momento. “Ninguém manda mensagem para ele porque consideram que está ocupado.”
É comum que as mulheres “recebam mensagem às três horas da tarde perguntando o que terá para jantar?”, diz Juliana. Isso exemplifica o tipo de carga mental que impõe obstáculos para a concentração e o desenvolvimento da mulher no trabalho remunerado.
Em sua experiência, Juliana, que também oferece mentoria para empresas e mulheres negras que estão em posição de liderança pela “Trilhas de Impacto” – apenas 3% das chefias, de acordo com a Forbes – observa que as mulheres negras enfrentam questões como “síndrome da impostora e insegurança na tomada de decisão”. Isso porque “se sentem na obrigação de fazer sempre mais para mostrar que as tarefas de cuidado não impedem sua competência”, explica.
Na outra ponta, a maioria das mulheres negras e menos escolarizadas acabam se submetendo a jornadas extenuantes. Elas ficam divididas entre o trabalho fora de casa, o cuidado dos filhos e, muitas vezes, dos pais e parentes mais velhos, diz Juliana. Hoje elas correspondem a 62% das chefias de família, segundo o IBGE. Mesmo assim, “ainda são a base dos serviços de cuidado para que famílias brancas escolarizadas e com recursos financeiros permaneçam no mercado de trabalho”. Nesse cenário, elas também têm cerca de 40% mais transtornos mentais em comparação com as brancas, revelou um estudo da Fiocruz, em parceria com universidades públicas.
Algumas empresas oferecem flexibilidade de horário e de rotina para as pessoas que cuidam, além de apoiar as mães com creches internas. Mas, “se as empresas se importam tanto com o cuidado”, diz Nana, outra alternativa é fazer pressão no Congresso para a regulamentação de uma licença-paternidade. “Quando os homens tiverem o mesmo tempo de licença que as mulheres, a chegada de um bebê não terá o impacto que tem hoje na carreira da mulher”, aponta.
Em dezembro, o STF determinou que o Congresso elabore uma medida para que a licença-paternidade seja equivalente à licença-maternidade e garanta uma divisão mais equilibrada nos cuidados dos primeiros meses do bebê.
“Uma mãe vai te entregar o triplo do que você precisa”, garante Juliana, se referindo aos benefícios de incorporar nas empresas medidas que levam em conta as tarefas de cuidado. Como resultado, ela lista maiores taxas de retenção, mais diversidade e mais lucro. Para ela, a mudança pode começar ao abolir das entrevistas de emprego perguntas machistas como “você tem filhos?” ou “como você vai gerenciar a sua carreira” e “quem vai ficar com os seus filhos?”.
De acordo com o IBGE, a dificuldade de equilibrar vida profissional e doméstica tem feito com que as mulheres optem por ter filhos cada vez mais tarde. O número de mães com mais de 40 anos aumentou 66% em 2023, em comparação com 2010.
“Nós queremos direitos básicos para elas”, diz Maria Fernanda. “As empresas vão preferir o lucro, então precisamos dessa garantia do Estado”. Na Reforma Trabalhista aprovada no Congresso, por exemplo, havia menção de diminuir a licença-maternidade.
Este ano, o Brasil se prepara para lançar a Política Nacional de Cuidados. A intenção é promover as mudanças necessárias para a divisão mais igualitária do trabalho de cuidados. Isso garantirá “os direitos tanto das pessoas que necessitam de cuidados quanto das que cuidam. Com especial atenção às desigualdades de gênero, raça, etnia e territoriais”, declarou o Ministério de Mulheres em resposta à reportagem do Lunetas.
Um grupo de trabalho coordenado pelo Ministério das Mulheres e pelo Ministério do Desenvolvimento Social, e composto por outros 15 órgãos da administração federal, teve como missão “formular um diagnóstico sobre a organização social dos cuidados no Brasil, identificando as políticas, os programas e os serviços existentes”. Para Nana, “esse é um primeiro passo para entender o que políticas podem trazer de concreto para a vida das mulheres”.
Além da preocupação em cuidar de quem cuida, Pedro Hartung, diretor de Políticas e Direitos das Crianças do Instituto Alana, elencou quatro pontos essenciais para o trabalho de cuidado. Ele participou de uma audiência pública pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH), em San José, na Costa Rica:
Além disso, ele destaca que estratégias e políticas que garantam o direito ao cuidado de crianças e adolescentes devem se estruturar de forma interseccional. Isso porque “diferentes grupos enfrentam impactos variados dessas desigualdades, destacando-se a necessidade de maior cuidado para crianças em situação de maior risco e vulnerabilidade, como aquelas com deficiência, na primeira infância, meninas e crianças negras e indígenas”.
Em Bogotá, na Colômbia, o projeto Manzana del Cuidado (quarteirões do cuidado, na tradução livre) oferece uma série de atividades para mulheres que se ocupam a maior parte do tempo com serviços domésticos e com a família. Nos 20 complexos distribuídos pela cidade, enquanto as mulheres praticam esportes, aprendem ioga, concluem os estudos ou fazem cursos profissionalizantes, a equipe do projeto a substitui em casa nos cuidados com os filhos.
Na Argentina, o trabalho materno passou a ser computado na aposentadoria a partir de 2021. O cuidado com cada filho pode acrescentar de um a três anos no tempo de serviço.
Em 2023, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, aprovou a ampliação do acesso a creches com custos menores e aumento do salário dos cuidadores domiciliares. Em discurso no início de abril deste ano, Biden disse: “O custo do cuidado é demasiadamente elevado. Uma família típica gasta em média 11 mil dólares por ano em cuidados por criança. […] Muitos pais fazem as contas e percebem que não têm dinheiro para ir trabalhar, porque cuidar dos filhos pode custar, literalmente, mais do que ganham.”
Se o trabalho doméstico fosse remunerado, acrescentaria 13% ao PIB brasileiro, de acordo com levantamento da Fundação Getúlio Vargas (FGV). O mesmo estudo apontou que as mulheres gastam em média 25 horas semanais em serviços domésticos enquanto os homens dedicam 11 horas a essas atividades. A definição para o termo economia do cuidado, cunhado pela cientista política Joan Tronto, em 1993, fala sobre todo tipo de trabalho, remunerado ou não, necessário para a manutenção da vida humana.