Infância e barbárie não deveriam andar juntas

O Brasil é o país do mundo, sem guerras deflagradas, que mais vitima pessoas de até 19 anos em homicídios. Deixemos de justificar o injustificável

Ana Claudia Cifali Publicado em 14.08.2023
Foto em preto e branco com foco em duas mãos dadas de crianças. O texto é sobre como a violência policial tem atingido crianças e adolescentes brasileiros.
OUVIR

Resumo

Ana Claudia Cifali, coordenadora jurídica do Instituto Alana, traz propostas sobre políticas públicas para preservar a vida e a segurança de crianças e adolescentes no contexto de operações policiais.

Eloáh, 5 anos; Thiago, 13; Kauã Vitor, 11; Maria Alice, 4; Rayana, 10; Ítalo Augusto, 7; João Pedro, 14; Emily Vitória, 4; e Rebeca Beatriz, 7, tiveram em comum sonhos interrompidos por mortes que ocorreram dentro ou na proximidade de suas casas, em áreas periféricas do Rio de Janeiro, em decorrência da violência policial.

A morte de mais um adolescente representa uma trágica manifestação das múltiplas violências que marcam a trajetória de jovens, negros e residentes das periferias do Brasil, frequentemente atravessada por contatos violentos com a polícia. Nas últimas semanas, ações policiais realizadas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia deixaram pelo menos 45 pessoas mortas.

Apesar de vivermos sob a égide de uma Constituição democrática há pouco mais de três décadas, as relações entre o Estado brasileiro e a sociedade ainda se caracterizam pela arbitrariedade. A violência e a desigualdade social, racial, econômica e jurídica são marcas que resistem ao tempo.

Mesmo com algumas mudanças, as instituições policiais não foram democratizadas e as graves violações de direitos humanos operadas no período militar se estendem para as operações policiais em favelas e comunidades periféricas. Para a professora Alba Zaluar, uma das pioneiras nos estudos sobre polícias no Brasil, trata-se uma “violência endêmica, radicada nas estruturas sociais, enraizada nos costumes, manifesta quer no comportamento de grupos da sociedade civil, quer no dos agentes incumbidos de preservar a ordem pública”.

Violência que legitima quem deve morrer

A principal causa de morte dos jovens brasileiros é a violência. A cada dia, uma média de 64 jovens entre 15 e 29 anos é assassinada no país. Entre 2009 e 2019 foram mais de 330 mil vidas perdidas, de acordo com o Atlas da Violência de 2021. Em números absolutos, o Brasil é o país do mundo, sem guerras deflagradas, que mais vitima pessoas de até 19 anos em homicídios, segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).

Esses números e essa tragédia em particular deveriam alarmar e indignar a toda sociedade. Além da precariedade da vida dessas crianças, adolescentes e jovens, eles demonstram a falência do modelo de segurança pública estatal e da perdida guerra às drogas. Uma sociedade que não se revolta e naturaliza essas mortes mostra a face mais sombria de uma violência que legitima quem pode viver e quem deve morrer, como diz Achille Mbembe ao abordar a necropolítica.

A alteração desse cenário é um dever estatal e de todos nós, determinado pela Constituição Federal de 1988. A partir de então, crianças e adolescentes passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos, que devem ter sua condição peculiar de desenvolvimento, seu melhor interesse e sua absoluta prioridade respeitados.

O artigo 227 da Constituição Federal prevê que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Ter a infância e a adolescência em primeiro lugar é um projeto da nação brasileira. Porém, se violam muitos desses direitos em contextos de violência extrema. Além de terem suas vidas ceifadas ou sua integridade física atingida, crianças e adolescentes sofrem de diferentes maneiras com a violência de operações policiais e de tiroteios intensos que obrigam o fechamento de escolas e interrompem o seu direito à educação. Nos últimos 7 anos, 12 jovens foram baleados dentro de unidades de ensino no Grande Rio e outros 7 foram atingidos enquanto iam ou voltavam das aulas, de acordo com o Instituto Fogo Cruzado.

O direito ao lazer, ao brincar, e à convivência familiar e comunitária também são comprometidos por essa dinâmica perversa, já que se torna impossível circular livremente pelos espaços públicos. Sem contar o risco de serem alvo de balas perdidas.

Um a cada quatro dias

Segundo o Instituto Fogo Cruzado, que acaba de lançar a plataforma Futuro Exterminado, entre 2016 e 2023, 601 crianças e adolescentes de 0 a 17 anos foram baleadas no Grande Rio: 267 delas morreram e 334 ficaram feridas. É como se a 4 dias uma criança ou adolescente fosse baleado. Quase metade dos casos (48%) ocorreu durante operações policiais.

Em 2021 uma criança de 9 anos não queria mais voltar pra casa depois de ter assistido à execução de uma pessoa na sua cama, no Jacarezinho. “Acham que a gente está acostumado com os tiroteios, mas todos os dias de confrontos são uma nova aventura de terror”, afirmou adolescente do Complexo da Maré.

Há muito a ciência comprova a importância desse período da vida para o desenvolvimento humano, e as consequências que as experiências na infância têm para a vida inteira. O medo gerado por essa violência extrema e pelo estado de alerta causado por tiroteios constantes contribuem para o surgimento de sofrimento psicológico e do chamado estresse tóxico, que pode afetar a própria arquitetura cerebral e aumentar o risco de doenças físicas e mentais, incluindo depressão, ansiedade e sintomas somáticos. Ou seja, o desenvolvimento integral das crianças e adolescentes submetidas a esse contexto violento é gravemente prejudicado, podendo gerar efeitos danosos no aprendizado, no comportamento e na saúde. Infância e barbárie não deveriam andar juntas.

Para Sérgio Adorno, fundador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV) e membro da Academia Brasileira de Ciências, “sob a perspectiva de uma ‘história sempre por fazer’, a história da sociedade brasileira pode ser contada como uma história social e política da violência”. E o perfil das vítimas da letalidade policial e da juventude vítima de homicídios no Brasil demonstram o racismo estrutural que permeia essa história. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), foram 6.430 vítimas da violência policial em 2022, ou seja, 17 pessoas por dia, considerando todas as idades. Destas, 83% dos mortos eram negros, 76% tinham entre 12 e 29 anos e, em quase 70% dos casos, o local da ocorrência foi em espaços públicos.

Tecnologias como aliadas para impor limites

Outro estudo, realizado pelo FBSP em parceria com o Unicef, tratou sobre a construção, implementação e avaliação do Programa Olho Vivo, da Polícia Militar do Estado de São Paulo, que reduziu, entre 2021 e 2022, 76,2% da letalidade nos batalhões com o uso de câmeras no fardamento policial.

Nesse ponto, em junho deste ano, em decisão histórica no âmbito da ADPF 635, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a obrigação do uso de câmeras nos batalhões especiais e impôs medidas de controle da atividade policial ao estado do Rio de Janeiro, considerada uma vitória da luta incessante dos movimentos negros, de favela, das mães e familiares de vítimas, conforme divulgado em Nota da Coalizão pela ADPF das Favelas. Evidente que tais tecnologias não serão capazes de, sozinhas, alterar realidades que necessitam de mudanças estruturais e que modifiquem a cultura institucional pautada na violência e na discriminação racial, mas podem ser aliadas para impor limites ao uso excessivo da força e da violência.

Por outro lado, sabemos que a garantia do acesso à educação é essencial para a redução dos homicídios. Para cada 1% a mais de jovens entre 15 e 17 anos nas escolas, segundo estudo produzido pelo IPEA, há uma diminuição de 2% na taxa de assassinatos nos municípios. Segundo a pesquisa, 81 municípios analisados somavam 48,6% do total de homicídios no país, porém, com alta concentração em poucos bairros. No Rio de Janeiro, por exemplo, 50% dos homicídios aconteceram em 10% dos bairros (17 bairros). No Rio Grande do Sul, o Observatório de Pesquisa em Violência na Juventude também mapeou os bairros de maior ocorrência de homicídio de jovens na capital.

Implementar uma política pública de abrangência nacional pode ser extremamente difícil e custoso, mas concentrar o foco nos locais mais violentos é uma tarefa factível, passível de acompanhamento e de monitoramento.

Quando operações policiais acontecem em áreas sensíveis, é preciso garantir atendimento qualificado e sem violência à população. Deve-se encaminhar denúncias de violações de direitos de crianças e adolescentes de forma preferencial.

Transparência e políticas públicas sólidas

Além do serviço geral de ouvidoria de polícia, é necessária uma ouvidoria externa, que compreenda a execução da política de segurança pública de forma ampla, pois o controle das forças policiais e de seus eventuais abusos de poder deve ocorrer em diversas instâncias para que seja efetivo na apuração dos casos envolvendo a letalidade policial e o uso excessivo da força. Inclusive, o Ministério Público, ente responsável pelo controle da atividade policial, também deveria criar órgãos especializados para conduzir tais procedimentos.

A transparência é um mecanismo de controle social necessário, especialmente no âmbito da segurança pública.

Garantir a transparência dos protocolos de atuação e de relatórios de operações policiais, principalmente daquelas que envolvam crianças e adolescentes, é fundamental para identificar e responsabilizar violações de direitos, além de permitir que esses modelos sejam revistos e aprimorados para atender às reivindicações sociais daqueles afetados pela violência.

Por fim, as normativas nacionais e internacionais não deixam dúvidas: áreas com grande circulação de civis não devem ser cenários para deflagração de operações policiais. Especificamente, as previsões normativas vedam essas práticas em estabelecimentos de ensino e em horários específicos de circulação de estudantes. Isso é, de forma alguma colocar em risco os direitos de crianças e adolescentes em detrimento de operações policiais.

Precisamos de políticas públicas sólidas, baseadas em evidências, que sejam capazes de frear o juvenicídio em curso no país – conceito cunhado pelo autor mexicano José Valenzuela para dar visibilidade aos homicídios na juventude. As diferentes dinâmicas da violência policial, os territórios em que se concentram e as experiências que já demonstram impactos positivos são mostras de que as políticas públicas para a redução da letalidade podem se tornar realidade.

Algumas dessas recomendações foram abordadas em manifestação do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e do Conselho Nacional de Direitos da Criança do Adolescente (Conanda), que propôs a criação de um Programa Nacional para o Combate à Letalidade Policial, indicando a formação de “um grande pacto nacional pela vida, sobretudo de jovens pobres e negros, maiores vítimas da violência policial e da violência de maneira geral”.

Apesar da importante retomada do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), que entre seus eixos prioritários prevê o fomento às políticas de segurança pública, com cidadania e foco em territórios vulneráveis e com altos indicadores de violência e o combate ao racismo estrutural e crimes decorrentes, precisamos de mais. Sobretudo de políticas públicas que priorizem a promoção de uma vida digna, do protagonismo e dos direitos de crianças e adolescentes, garantindo condições para que construam seus projetos de vida livres de violência e que possam ter o direito de sonhar com o futuro.

Não justificar o injustificável

Em comunicado de imprensa, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) instou o Estado brasileiro a investigar pronta, diligente e exaustivamente os fatos ocorridos, considerando toda a cadeia de comando, bem como a sancionar os responsáveis e reparar integralmente as vítimas e seus familiares. A CIDH ressaltou o contexto de discriminação racial sistêmica e ausência de observância dos parâmetros internacionais de direitos humanos no Brasil. Desse modo, reiterou ao Estado seu dever de assegurar o cumprimento de obrigações internacionais em matéria de uso da força, com vistas a reformar suas políticas de segurança pública.

Diante do tênue limite entre o uso legítimo da força e o seu abuso, é urgente a adoção de medidas que possibilitem uma racionalização das atividades policiais e a construção de um novo paradigma de segurança pública alinhado aos preceitos democráticos, de modo a considerar a condição de vulnerabilidade de crianças e adolescentes, o reconhecimento de jovens negros e periféricos enquanto cidadãos e sujeitos de direitos, e o dever constitucional de garantir os direitos dessa parcela da população com absoluta prioridade.

Não se trata de “desvio de conduta”, “efeito colateral” ou “erro escusável”, mas de uma forma de atuação sistêmica da polícia influenciada pelo contexto organizacional e pela cultura institucional das corporações. Deixemos de justificar o injustificável. Reconhecer, cobrar respostas e responsabilização pela violência a que submetemos, enquanto sociedade, esses jovens, é um dever compartilhado por todos nós.

* Ana Claudia Cifali é coordenadora jurídica do Instituto Alana, doutora em Ciências Criminais pela PUCRS e conselheira do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

** Este texto é de exclusiva responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Lunetas.

Leia mais

Comunicar erro
Comentários 1 Comentários Mostrar comentários
REPORTAGENS RELACIONADAS