O brincar é a ferramenta mais potente para cuidar de crianças com deficiência ou doenças crônicas na quarentena, apontam especialistas
Como estão as crianças com deficiência e doenças crônicas na quarentena? Famílias relatam como manter tratamento e terapias durante esse período, além dos cuidados redobrados para garantir a saúde dos filhos. Especialistas recomendam o brincar como processo terapêutico.
Antes de falar sobre a quarentena dos filhos com saúde vulnerável, imagine esta cena tão corriqueira na vida de muitas famílias. Você chega em casa, após um dia inteiro de trabalho, e seu filho vem correndo para recebê-lo com um abraço apertado. Você enche seu filho de carinho e vive intensamente aquele momento tão acolhedor. Arthur, com dois anos e meio, é um desses personagens. Todos os dias, quando seu pai volta, ele segue o ritual: corre para a porta, agarra as pernas do pai e pede aquele abraço.
Mas, desde que entramos nessa quarentena em combate ao novo coronavírus, a rotina nas nossas casas, e na casa do Arthur, mudou radicalmente. Seu pai não consegue fazer home office todos os dias. Pouco antes de abrir a porta de casa, ele já avisa que está chegando, para dar tempo de o filho ser levado ao quarto e evitar que tenham contato. Ele tira os sapatos, põe a roupa na máquina de lavar, toma um banho e, após esse processo tão mecânico, pode finalmente abraçá-lo. Vanessa Soares Rodrigues, mãe do Arthur, desabafa:
“Ele está bem estressado, muito estressado! Além de não poder ver o pai chegando, também quer brincar no parquinho… A gente fala que não pode , porque lá fora tem dodói, mas é difícil”
Arthur é uma menino curioso, que brinca, faz birra, pede dengo, como toda criança. Mas ele demanda um cuidado ainda mais especial, principalmente quando enfrentamos um vírus até então desconhecido: desde o quinto dia de vida, ele faz diálise todas as noites durante nove horas, além de se alimentar apenas por sonda. Arthur nasceu com válvula de uretra posterior (VUP), uma malformação que obstrui o canal da uretra e acaba prejudicando os rins. O tratamento é feito em casa, mas afeta a sua imunidade e o coloca entre os grupos de risco da Covid-19.
“Fico com medo, pânico”, revela Vanessa. “Acompanho estatísticas e pesquisas, mas pouco se sabe como essa doença afeta crianças ou bebês com baixa imunidade. Além disso, ele está no cadastro de transplante de rim que pode chegar a qualquer momento, e teria de ser submetido a uma cirurgia. Mesmo com a pandemia, o transplante ainda é mais importante para nós que combater o vírus.”
Toda semana, Luísa precisa de sessões de quimioterapia: não para tratar um câncer, mas uma doença conhecida como histiocitose, quando uma célula chamada histiócito se prolifera e se infiltra em um ou mais órgãos. Por baixar a imunidade, cuidados de assepsia e distanciamento social já faziam parte de sua vida. O problema é que, mesmo em quarentena, o tratamento não pode ser interrompido. Luísa só tem um ano de idade.
Seus pais – que já viviam uma rotina de zelo excessivo desde que ela e seu irmão Lucas nasceram, gêmeos prematuros – tiveram de redobrar as preocupações. “Eu costumava dizer que vivíamos em regime semiaberto. Agora, estamos no regime fechado, e tomando mais medidas para protegê-la”, relata Juliana Frigo Iglesias, mãe da Luísa.
Arthur e Luísa fazem parte da população de pessoas com doenças crônicas, que afeta entre 9% e 11% das crianças e adolescentes no Brasil, segundo dados do IBGE. “Algumas condições de saúde precisam de tratamentos que não podem ser adiados e a vida das crianças depende disso”, explica Ana Cláudia Brandão, pediatra da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein.
Se já estamos vivendo um período de tensão e ansiedade, imagine como é para pais que temem que seus filhos contraiam a Covid-19. “O que vêm à cabeça é a relação de proximidade com a morte. Quando isso está relacionado ao filho, é impensável, é avassalador”, explica a psicóloga Claudia Mascarenhas, fundadora do Instituto Viva Infância, em Salvador, e criadora do podcast Papo de Criança.
Os pais de crianças com doenças crônicas já vivem uma rotina intensa de cuidados com os filhos, desde o tratamento e as terapias diárias até a preocupação para manter as crianças menos susceptíveis a doenças e a problemas imunológicos. Então, a recomendação é: mais calma, menos pressão, pais. Vocês não precisam dar conta de tudo. Estresse e ansiedade, além de prejudicar o dia a dia, afetam a saúde e podem deixar vocês e as crianças mais vulneráveis. A recomendação dos especialistas é: tire a pressão da lista de atividades e terapias que suas crianças precisam, e brinque! Uma rotina saudável que inclua um tempo para estarem presente com seus filhos é suficiente para manter a saúde física e mental de todos, incluindo a imunidade, principalmente na quarentena.
Nesta quarentena, brincar tomou conta da rotina de Maria da Graça Cerqueira dos Santos e da filha Luna, de seis anos. As bonecas ganharam nomes dos amigos de escola e, assim, elas inventam situações como se estivessem interagindo com eles. Montar peças com tampinha de garrafa, ouvir música ou tocar violão são algumas das brincadeiras que criaram para se divertir, mas também servem para continuar o desenvolvimento físico, intelectual e cognitivo da menina.
Antes da quarentena, Luna fazia sessões semanais de fonoaudiologia, terapia ocupacional, natação, frequentava o Centro Educacional Especializado e estudava na primeira série da escola pública municipal. Luna tem síndrome de Down e asma, um problemas respiratório comum em pessoas com essa condição. Metade das crianças com a síndrome nasce com cardiopatia, que causa complicações no coração, e muitas precisam ser submetidas à cirurgia. Outros agravantes envolvem envelhecimento precoce, que debilita a imunidade, e a necessidade de seguir um calendário rigoroso de vacinas. Apesar de não estarem no grupo de risco da Covid-19, pessoas com síndrome de Down requerem um cuidado maior de saúde.
Muitos pais de crianças com deficiência ficaram com medo de interromper os tratamentos terapêuticos dos seus filhos durante o isolamento domiciliar. Mas, calma, pais, está tudo bem! Todos os especialistas com quem conversamos para esta reportagem afirmam, com segurança, que alguns meses sem terapia não atrasa o desenvolvimento da criança. A ferramenta mais poderosa para continuar estimulando seu filho é brincar.
Cintia Aparecida Nunes é mãe de três meninos: Miguel, de 11 anos, Rafael e Gabriel, gêmeos de seis anos. Rafael nasceu com uma doença congênita, que impedia que recebesse nutrientes e oxigênio via cordão umbilical, causando paralisia cerebral. Sua rotina antes da quarentena era de terapias. Cintia ficou preocupada em relação ao desenvolvimento do filho, mas as terapeutas “tiraram o peso de que eu teria que fazer exatamente como elas, na clínica”, conta.
“O maior especialista da criança são os pais”, afirma a fisioterapeuta pediátrica Dafne Herrero, criadora do canal Doutora Brincadeira, e também terapeuta do Rafael. “O que faço no consultório precisa ser replicável em casa. Além do brincar ser uma prática poderosa para o desenvolvimento motor e cognitivo, é também a forma como a criança entende o mundo. Por isso está presente no atendimento”. Para ajudar com as dúvidas dos pais durante a quarentena, ela tem feito orientações por vídeo, foto e telefone.
“O brincar é o que mais tem de mais potente para fazer com que as crianças se desenvolvam e passem menos machucadas por qualquer situação”
Apesar desta reportagem ter abordado as histórias de crianças com saúde vulnerável, a maioria das recomendações dos especialistas, no final das contas, acaba servindo para todos as famílias. Criar e educar crianças dá trabalho, independente de sua saúde ou condição. Fazer isso em tempos de pandemia é uma pressão ainda maior – e os pais precisam se desculpar por isso.
Para a psicóloga Claudia Mascarenhas, é essencial que os pais tentem tirar um tempo só para eles, traçar uma “rota de fuga”, para aliviar as pressões e preocupações do dia a dia.
“Os filhos devem entender que os pais têm limites, não aguentam tudo e precisam descansar. Senão a cabeça deles vai para outro lugar, eles vão ficar ausentes quando precisam estar presentes”
Claudia reforça a importância de manter uma rotina de brincadeiras e atividades, mas tudo com equilíbrio. O ócio também é importante. “Devemos mostrar para a criança que ela não precisa fazer tudo o tempo todo e não precisa dos pais 24 horas por dia”, explica.
Pais ou cuidadores de crianças com deficiência ou doenças crônicas tendem a ser mais superprotetores e isso pode prejudicar a autonomia delas. Mas a psicóloga aconselha explicar por que estamos em casa. Ao final, Claudia lança uma perspectiva positiva.
“Tenho percebido que muitas crianças com dificuldades estão avançando mais nesse período de quarentena. Uma das hipóteses é que estejam se sentindo mais seguras por estarem rodeadas de pais, familiares ou cuidadores”
Uma quarentena com exercícios e brincadeiras (sem culpa)
Confira recomendações indicadas pelos especialistas para manter uma rotina saudável para todos os tipos de família:
Mas, acima de tudo, precisamos viver um dia de cada vez: nem todos os dias seguirá uma rotina. Permita-se flexibilizar, sem culpa.
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Covid-19 e pessoas com síndrome de Down
O Movimento Down disponibilizou esta cartilha com dúvidas mais frequentes sobre pessoas com síndrome de Down e o risco de contrair Covid-19, com base no documento publicado pelo Grupo de Interesse Médico sobre Síndrome de Down dos Estados Unidos. Há ainda uma publicação em linguagem simples para pessoas com deficiência intelectual com informações sobre o coronavírus.
A Federação Down também lançou este site com muitas informações e esclarecimentos sobre o Covid-19 e pessoas com síndrome de Down além de conteúdos ilustrativos que podem ser compartilhados via redes sociais.