O que vamos dizer às crianças sobre o coronavírus?

A pandemia de coronavírus nos coloca diante de uma oportunidade de diálogo sobre cidadania, cuidado coletivo e humanidade

Ilana Katz Publicado em 16.03.2020
Imagem de uma menina e um menino lavando as mãos na pia do banheiro e sorrindo
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Resumo

Perguntas feitas por crianças sobre o coronavírus tiram os adultos da zona de conforto e podem se tornar uma boa oportunidade para um diálogo construtivo sobre responsabilidades, afinal, cuidar de si é também cuidar dos outros. E você, o que vai dizer aos seus filhos?

A atual experiência cotidiana soma uma série de perdas: não tem escola, não tem atividade de contraturno, não tem amigo para brincar de tarde no quintal, não tem visita da vovó. Na contramão do sossego, chegam as incertezas, muitas notícias, contradições e o medo. Pais e cuidadores estão preocupados e desorganizados, já que a vida das crianças está mudando e mudará mais ainda nas próximas semanas. Então, como vamos falar com elas sobre a dimensão da pandemia de coronavírus

Todo mundo sabe que, quando crianças fazem perguntas, os adultos devem responder a verdade. O problema é que, muitas vezes, as crianças perguntam coisas que não sabemos, não queremos ou não temos coragem de responder. É bem nessa hora que inventamos uma saída muito pouco efetiva: nós, os supostos adultos, mentimos para os nossos filhos nas mais diferentes versões e intensidades que uma mentira pode assumir.

Isso inclui as cegonhas que trazem bebês – frutos de desejo sem sexo e da vida sem erotismo- ou promessas heróicas de que todos os que amamos têm vida longa. Por determinação da nossa fantasia de potência, incluímos no pacote da “proteção” esconder dos nossos queridos as notícias sobre doenças, da mesma forma que omitimos as pistas das nossas dificuldades e fracassos. É assim que produzimos a grande mentira da vida asséptica, controlável e que, supostamente, pode ser decidida por vontades individuais. (Sobre a palavra “individuais”, vamos retomar daqui a pouco.)  

Se concordamos que as crianças se beneficiam de uma relação verdadeira com a experiência da sua vida, o dever de incluí-las na conversa sobre os fatos que agem sobre elas mesmas não pode ser uma dúvida.

Temos, porém, que pensar como conversaremos com as crianças: de que jeito? Quais informações compartilhar? Em que momento?

Dizer a verdade para as crianças não se trata de tomá-las no lugar de um interlocutor adulto, de um jovem médico ou de um cientista pós-graduado. Mas também não é supor que elas não têm condição de compreender suas vida e o que as afeta. Minha avó já dizia que, com as crianças, falamos da maneira que elas podem entender. 

O primeiro passo é escutar a pergunta, se perguntar sobre a pergunta feita e despertar a curiosidade: o que essa criança quer saber quando me pergunta sobre o coronavírus? O que ela já sabe? De onde veio essa informação? O que exatamente a preocupa? Essas perguntas nos ajudam a alargar a conversa. E alargar a conversa já é uma forma de acalmar e de acolher. As coisas que não sabemos responder, pesquisamos junto. E como é importante que possamos não saber junto com as crianças!

Muito rápido, aprendemos que não falamos com todas as pessoas do mesmo jeito. Isto é, não falamos com todas as crianças de sete anos da mesma maneira ou com todas as de três de outra. Manuais sobre “o que falar para as crianças”, sozinhos, não nos ajudam muito a escutar os nossos interlocutores. É por isso também que iniciativas como o COVIBOOK ou o vídeo da experiência da pimenta que viralizou recentemente são importantes como disparadores de conversas entre adultos e crianças.

A pergunta que nos ronda, porém, é muito mais ampla e séria do que um manual de padronização adequada da parentalidade pode dar conta. O que está em jogo é muito mais do que instruções sobre cuidados e proteção.

Nós, adultos, vamos precisar de calma para entender como, nesse cenário, as experiências da verdade e da cidadania se articulam no cuidado com as pessoas.

Não podemos esquecer que as crianças participam da ocupação das cidades e que seu enlace com os outros é uma experiência política. No caso específico dessa pandemia, o lugar das crianças não é qualquer: elas são veículos potentes de transmissão e, muito embora não sejam especialmente vulneráveis, afetam as populações mais frágeis, como seus avós, que, na maioria dos casos, compõem o grupo de maior risco de agravamento do quadro clínico produzido pelo Covid-19. Seu lugar também não é qualquer, porque, em nossa organização social, quando as escolas fecham, um elo fundamental da cadeia produtiva se quebra, e todo o esquema das nossas vidas fura.

A análise das nossas fragilidades e das nossas vulnerabilidades pode ser encarada por diversos ângulos e muita gente legal já nos chamou a atenção para alguns deles. Eu gostaria de aproveitar esse espaço para considerar algumas questões que giram em torno da nossa ideia do que o público significa e de como incluir as crianças nesse debate incontornável e inadiável.

Diante do coronavírus, respostas individuais são radicalmente ineficientes. Entre adultos, temos falado sobre os modos como a pandemia de coronavírus apresenta a estrondosa conta do desinvestimento na ciência e na pesquisa. Mas é fato também que muitos adultos ainda não tinham percebido a dimensão coletiva da experiência de saúde, os efeitos de uns sobre outros, a responsabilidade que isso impõe a cada um, e, finalmente, o caráter público que essa cadeia impõe ao cuidado. 

Como explicar para uma criança que ela não tem escola e também não pode ficar na companhia da vovó? E se, além disso, tivermos que dizer que seus pais e cuidadores não foram dispensados do trabalho e que estão com muita dificuldade de administrar esse novo problema? Será que as crianças vão ficar culpadas, será que vão se tomar no lugar do problema? 

Em que lugar dessa cadeia entra cada um de nós?

Estamos diante de uma oportunidade. 

A ideia não é agradecer ao coronavírus e nem às patologias sociais que nos trouxeram até essa condição. Ao contrário, a reflexão se coloca como resposta necessária a um problema criado por nosso jeito humano de ser e de nos organizamos. A oportunidade, diante da infância, acredito, é que possamos incluir as crianças no debate sobre nossa organização social. 

Primeiro, nos acalmamos e filtramos informações: é da nossa responsabilidade evitar o pânico.

Como bem disse a psicanalista e colunista da  Folha, Vera Iaconelli, durante o podcast Café da Manhã, o medo nos ajuda a organizar o cuidado, mas o pânico é difuso, não elege objetos específicos, e não ajuda ninguém a se organizar e nem a se proteger. Nosso lugar de adulto é, nesse caso e em muitos outros, um lugar de “amortecedor”. 

A conversa sobre a situação em que cada um se encontra é também uma conversa sobre a humanidade, no mais profundo sentido que essa palavra pode expressar. Acolher o estranhamento e a tristeza da criança diante das mudanças súbitas em sua rotina é fundamental. Estamos todos estranhando. E elas também.

A experiência de cidadania não é uma abstração: quando conversamos sobre o cuidado com a vovó, estamos também falando sobre os limites e o respeito na relação com outros, todos os outros. Os que conhecemos e os que sequer vemos, mas que, assim como a nossa vovó, podem precisar de um leito hospitalar. É por isso, por exemplo, que temos o compromisso ético de não espalhar o coronavírus. (Recomendo o podcast do Fluxo, entitulado “Viralizou! Covid-19 e a Democracia em Estado Grave”, que discute com profundidade essa questão.)

Se a gente diminuir a circulação pela cidade, vamos colaborar bastante para que o vírus não se espalhe e que os hospitais possam receber as pessoas que realmente precisarem dele.

É por essa razão que a maior parte das escolas está fechada. Ficamos em casa para nos proteger, para cuidar das pessoas que gostamos e também das que não conhecemos. Elas também são importantes para que cada um possa ter saúde. Não é impressionante? Fica muito evidente o quanto a saúde -assim como a segurança- não se garante como experiência privada. O interesse público precisa estar acima da vontade individual. Fica como questão, inclusive, pensarmos a possibilidade da gestão privada da saúde na dimensão do interesse público. Fica a lembrança de que precisamos investir no SUS.

Já pensou se realmente conseguíssemos transmitir isso para as crianças? Dá até para começar a pensar um futuro diferente, né?

Vamos por este caminho.

Como último ponto dessa conversa, que só começou, lembro que a educação das crianças acontece por meio das coisas que dizemos, das ideias que argumentamos, mas é, sobretudo, uma experiência que se dá por transmissão. É preciso fazer, realizar e deixar acontecer conosco o que estamos dizendo para elas que é correto e responsável.

É nesse sentido que precisamos considerar, desse nosso lugar de adultos, o que quer dizer, por exemplo, para a população periférica, não acessar os serviços públicos. Para além dos efeitos de controle da pandemia, fechar escolas significa a mesma coisa e produz os mesmos efeitos sociais em todos os territórios? Se respondermos que sim, pergunto: a medida de cuidado se encerra no fechamento das escolas? Como os governos vão responder ao problema que essa medida necessária vai produzir? É preciso que organizemos nossas demandas nessa direção também. Todos nós, incluindo o poder público, estamos radicalmente implicados no problema social, ou seja, público, que isso produz. 

No nível das responsabilidades individuais, essa não é (só) uma questão filosófica, mas bem prática: seus funcionários vieram trabalhar e deixaram seus filhos em casa? Como vamos ajudar os trabalhadores encarregados de serviços essenciais a cuidar das suas crianças que estão sem escola? 

Se uma criança sem aula fica com a babá, quem fica com o filho da babá?

O que quero dizer é que para ensinar as crianças a perder, ou seja, para que elas possam inventar respostas diante das pequenas e grandes perdas da vida, precisamos dar o testemunho das nossas perdas e da nossa possibilidade de invenção. 

Há ideias circulando por aí: algumas pessoas já usam as redes sociais para sugerir que aqueles que têm funcionários domésticos, mantenham seu pagamento e não as façam circular pela rua, permitindo com isso que se encarreguem de suas famílias, em suas casas. Há também invenções tão bonitas quanto os portugueses nas janelas aplaudindo profissionais de saúde, coral com pandeiros cantado nas varandas da Sicília, ou o bilhete deixado por uma vizinha no elevador, oferecendo ajuda aos idosos que não devem sair de casa. 

Se somos responsáveis por cuidar de que a culpa não aperte muito o peito das crianças, elas precisam ser amparadas na compreensão da dimensão pública do acontecimento que estão vivendo. É indispensável que elas e nós saibamos que o cuidar de si é também cuidar dos outros – e isso nos coloca novamente de frente com o debate que precisamos continuar a fazer sobre a saúde como uma questão de gestão pública.

É indispensável que elas e nós saibamos que o cuidar de si é também cuidar dos outros.

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