Especialistas questionam a corrida pelo desfralde quando a criança vai para a escola e destacam que cada um tem o tempo certo de usar o banheiro sem medo
Ao entrar na escola, algumas crianças começam a tirar a fralda da rotina. Embora algumas escolas incentivem o desfralde coletivo, especialistas defendem que o processo deve começar em casa, somente quando a criança se mostrar interessada e preparada para isso.
Melissa, 4, deixou de usar fraldas ano passado, quando estava no meio do primeiro ano do ensino infantil. Apesar disso, não foi um desfralde coletivo. O processo começou em casa pelo interesse da menina em imitar a mãe. “Fiz meu papel, de usar o banheiro quando eu tinha vontade, e ela vinha junto sempre que queria matar a curiosidade”, conta Daniane Bergamini, de Florianópolis (SC). “Preparei o ambiente com adaptadores de assento e com miniprivadinha, para ela decidir o que prefere. Deixamos claro tanto com a família quanto com amigos e escola que o adulto não desfralda a criança. Isso porque entendemos que é ela quem deve ter a iniciativa e se sentir confiante para isso. Ela é que sabe o momento e tem domínio do seu corpinho.”
Conforme a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) explica, a pressão para a criança se livrar das fraldas pode gerar transtornos emocionais como ansiedade, insegurança e até consequências físicas, de prisão de ventre à infecção urinária, por exemplo. Desse modo, os pediatras enfatizam que o desfralde, a princípio, não é tarefa da escola, mas da família.
Em 2020, um mural com a foto de cada aluno, seguida de uma fralda descartável para quem ainda usava, ou de uma peça íntima para quem já tinha desfraldado, gerou debate nas redes sociais sobre o desfralde coletivo. Na época, especialistas consideraram a atividade escolar desrespeitosa. “Como você se sentiria se, aos dois anos de idade, um marco de desenvolvimento se tornasse uma competição?”, questionou a neuropsicóloga Márcia Tosin, especialista em educação e desenvolvimento infantil.
Geralmente feito no primeiro ano da educação infantil, o desfralde coletivo, como cita a SBP, contraria a “lógica biológica”. Isso porque cada criança tem um momento certo de conseguir usar o banheiro de forma autônoma. Iniciar esse processo na escola, apesar de ter o estímulo de imitar outros colegas, pode levar quem não consegue a se sentir inferior, constrangido ou ansioso. “A criança pode ter muita vontade de se igualar ao grupo, mas ela não precisa de ‘uma forcinha’ dos educadores. Ensinar artificialmente é o pior que pode acontecer, pois a pressão sobre o processo se eleva”, diz Tosin.
Entre os casos de crianças em processo de desfralde que já acompanhou no Colégio Marista Santa Maria, em Curitiba (PR), a pedagoga e coordenadora de educação infantil, Ana Paula Detzel, conta que a situação é sempre tratada em parceria com as famílias. “Embora seja individual e não exista idade certa para isso, algumas famílias chegam com a demanda de tirar a fralda da criança. Mas a gente percebe que ela ainda não está preparada. Então, não adianta forçar.”
Detzel explica que, se a criança está começando a tirar a fralda, é importante a família informar a escola. “Nesses casos, consideramos que o desfralde é uma parceria entre escola e família. Não dá certo se o desfralde inicia somente em casa, e na escola ela usa fralda. Ou tira a fralda na escola e em casa continua. Isso confunde a criança. O processo tem que ser integral e muito amadurecido, respeitando as possibilidades de cada um.”
A neuropsicóloga Márcia Tosin explica que esse marco “parece simples, mas depende de um processo longo de aprendizado e fisiologia, que costuma acontecer entre 2 e 4 anos”. Porém, não há dados científicos sobre isso. “Na verdade, ocorre uma normalização cultural, ou zona de desenvolvimento que a criança entra e vai adquirindo habilidades, competências e comportamentos que concretizam o desfralde.”
Para uma ação respeitosa com o tempo da criança, Tosin propõe o “desfralde guiado”. Ou seja, a criança é quem guia esse processo. “Ela vai mostrar interesse em usar o banheiro e a família deve estar atenta a esses sinais, como o desejo de ser como o adulto e fazer as coisas que crianças maiores fazem, que é natural. Nesse sentido, os pais são os acompanhantes dela, estimulando-a à medida que o comportamento aparece”, explica.
O principal fator é a paciência, pois a aprendizagem requer “repetição e treinamento”. Por isso, é comum crianças fazerem o desfralde do xixi, por exemplo, mas precisam de um tempo a mais para desfraldar do cocô. Cada um tem um jeito. Na família Bergamini, Melissa primeiro pediu o adaptador para fazer xixi sozinha. “A partir desta decisão, não usou mais fralda durante o dia. Mas, o desfralde noturno aconteceu um mês depois”, lembra a mãe.
Na rotina de crianças atípicas, o desfralde requer sensibilidade e pode demorar um pouco mais. Por isso, é importante buscar orientações com os profissionais que acompanham a família e não deixar apenas na conta da escola. “O jeito que esse processo vai acontecer é muito parecido entre todas as crianças, atípicas e típicas. O que, na verdade, levamos em consideração é o ‘estar pronto’. Portanto, dependendo da situação, pode levar um tempo a mais”, explica a pedagoga Ana Paula Detzel.
Embora muitas crianças atípicas consigam o desfralde guiado, a neuropsicóloga Márcia Tosin enfatiza que algumas não conseguirão, porque o processo envolve a imitação. “Principalmente no Transtorno de Espectro Autista, as crianças apresentam uma defasagem na imitação social”, diz.
Portanto, é preciso levar em conta o grau de comprometimento de cada transtorno. Depois, se a criança não consegue comunicar o que ela quer fazer, por ser não verbal, “a gente pode oferecer símbolos, fotos, gravuras, para que ela aponte aquilo que precisa”, sugere Detzel.
Na mesma linha, Tosin propõe que algumas crianças atípicas tenham o desfralde guiado pelo adulto. Ou seja, a família deve esperar a criança apresentar os sinais fisiológicos, como ficar longo tempo sem fazer xixi, principalmente à noite. Assim, a neuropsicóloga orienta que o treinamento tenha um “passo a passo em imagens, reforçando e elogiando os acertos, sem jamais punir a criança por não conseguir”.
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