“Eu não quero ver a palavra pausa. Você não pausa um genocídio. Você o termina”, afirma Hyatt Omar, psicóloga e jovem ativista pró-Palestina Livre. Ela se refere ao acordo temporário de “pausa humanitária” entre Israel e Hamas (em vigor desde o dia 24 de novembro e com encerramento negociado para o dia 30). Desde 7 de outubro, Israel vem bombardeando a Faixa de Gaza em resposta ao ataque sofrido pelo Hamas, inclusive com vítimas crianças na guerra.
Para o cientista político Pedro Costa, não se trata de uma guerra convencional. Há uma assimetria de forças: de um lado, um estado soberano (Israel); do outro, um grupo terrorista (Hamas). Nesse sentido, “o que estamos vendo é um genocídio do povo palestino, de adultos e crianças.”
Em Gaza, mais de 10 mil pessoas já perderam suas vidas. Entre elas, mais de quatro mil são crianças. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) estima que 400 crianças sejam mortas ou feridas a cada dia de massacre na região. Além disso, muitas das crianças que sobrevivem aos ataques ficam órfãs ou são forçadas a se deslocar. Outras, reféns do Hamas, começaram a ser libertadas hoje, dia 28. Mas também viveram sob o medo e a incerteza de não voltar a encontrar seus familiares e amigos.
“Toda minha família foi morta. Que Deus tenha piedade deles. Minha mãe, meu pai, meu irmão Walled. Só tenho ainda um irmão. Minhas duas avós morreram. Meu avô Khaled, meu avô Anas. Minhas tias e meus tios.” – criança na Faixa de Gaza
‘Conflitos armados e guerras são invenções dos adultos’
“Crianças não podem ser alvos”, diz Pedro Hartung, diretor de políticas e direitos da criança do Instituto Alana. “Em vez disso, elas deveriam estar no centro da motivação para um real cessar-fogo e futura reconstrução.” Hartung ressalta, assim, que cada criança morta tinha um nome, uma história, famílias, amigos e brincadeiras favoritas: “elas não são números”. E lembra que, segundo o Direito Internacional Humanitário, a proteção de crianças deve vir em primeiro lugar.
O que é preciso para reconstruir as infâncias de crianças na guerra
Além de restaurar o lugar concreto onde vivem as crianças, é necessário cuidar de suas subjetividades, para que voltem a se sentir seguras e pertencentes ao seu local de origem.
Segundo os entrevistados (uma ativista na causa palestina e psicóloga, um cientista político, um especialista nos direitos da criança e uma representante da ajuda humanitária), o desafio da reconstrução de infâncias afetadas pela guerra também passa por:
1. Cessar-fogo
2. Interesse das partes envolvidas em respeitar o direito humanitário internacional, protegendo civis, especialmente crianças
3. Apoio psicológico especializado em traumas causados por conflitos armados e guerra, com foco na orfandade
4. Amparo de entidades de ajuda humanitária para a promoção de cuidados da saúde mental
5. Criação de momentos e espaços de lazer e fé, por exemplo, em que a noção de pertencimento possa ser resgatada
6. Incentivo para voltarem a brincar e, assim, lembrarem que ainda são crianças
7. Incentivo para sonhar com o futuro
8. Investimento financeiro massivo para reconstruir espaços físicos, como ruas, casas, escolas, quadra de esportes, hospitais, mercados etc.
9. Educação para a paz desde a infância, prevenindo preconceitos e discriminações
10. Educação de novos líderes para que considerem a guerra inadmissível como instrumento para a solução de qualquer conflito
A destruição que não se pode ver
Além da destruição concreta de símbolos da identidade de um grupo (prédios, monumentos, espaços religiosos), a psicóloga Hyatt Omar afirma que se destroem também as noções de identidade e de pertencimento. Por isso, só é possível ter a real dimensão do que fazer para reconstruir essas infâncias a partir do reconhecimento de que uma guerra destrói mais do que tijolos sobrepostos.
Ao lamentar que metade da população de Gaza está sem casa e que tudo o que é familiar para as crianças foi bombardeado, ela lembra que um adulto hoje em Gaza foi uma criança que possivelmente também viveu a guerra. Isso porque a região passa por diversos conflitos e opressões desde 1948. “A noção de identidade e de pertencimento desse povo também está associada a um lugar que não tem paz”, diz Omar.
“Sonho que a rua não esteja mais fechada” – criança na Faixa de Gaza
“Quando o cenário de guerra se instala, se esgarça o tecido social de uma comunidade”, diz Pedro Hartung, diretor de políticas e direitos da criança do Instituto Alana. Portanto, ele reforça que nessas situações se ameaçam de forma constante elementos fundamentais para a construção da identidade de uma criança, o que as coloca em “modo de sobrevivência”. Um exemplo é a convivência familiar e comunitária, essencial a qualquer experiência de vida saudável.
Nesse sentido, o deslocamento forçado (seja dentro do próprio território palestino sob ataque ou para fora dele) é uma consequência comum. E isso gera outros desafios para as pessoas migrantes e, no caso de pessoas refugiadas, também para os países vizinhos.
Como cuidar de quem sobrevive?
Crianças estão perdendo seus pais, irmãos, avós, amigos, vizinhos. Muitas delas buscam nos escombros pessoas conhecidas sem sucesso. Diante de tamanha devastação, que envolve a morte, por vezes de uma família ou comunidade inteira, pode surgir um fenômeno conhecido como “a culpa do sobrevivente”, diz Omar.
Inicialmente observado após o Holocausto, o conceito “culpa do sobrevivente” se refere ao sentimento de quem conseguiu sobreviver a eventos traumáticos enquanto outros ao seu redor não tiveram a mesma sorte.
Por isso, ela entende que, além de prestar auxílio médico emergencial, a ajuda humanitária também precisa dedicar esforços para o atendimento psicológico, direcionado para as necessidades das crianças sobreviventes, especialmente as órfãs.
“Eu sinto que seria melhor se eu tivesse morrido com a minha mãe. Seria melhor do que ver isso, todo esse sofrimento e dor que estou testemunhando. Todo mundo que eu amo se foi.” – criança na Faixa de Gaza
Para Pedro Hartung, do Instituto Alana, o impacto deixado por conflitos armados tem consequências no presente e no futuro dessas crianças. Principalmente porque “podem dar origem a novas condições de saúde mental ou exacerbar as preexistentes”, completa Alexandra Jackson, assessora global da proteção da criança do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV).
Jackson diz que efeitos como perturbação de ansiedade, estresse pós-traumático e depressão, indicados por estudos sobre as consequências da exposição de crianças à violência, se agravam sobretudo quando ocorrem entre zero e seis anos. A primeira infância é “uma janela de oportunidades crucial para a saúde, o aprendizado e o bem-estar social e emocional das criancas”, define o Unicef. “Isso deveria soar como um alerta máximo para maior proteção dessas vidas, que estão num período estruturante para o desenvolvimento humano”, afirma Hartung.
Toda vez que esses eventos se repetem, os traumas voltam e essas crianças nunca se recuperam totalmente. Superá-los é um processo que depende dos recursos emocionais de cada criança e do amparo que receberá de pessoas do seu convívio e de profissionais. “Com a ajuda adequada”, diz Omar, “a criança pode aprender a desenvolver mecanismos para manter a sua estabilidade emocional”. Isso poderá ajudá-la a desviar de uma crise e a lidar com pesadelos, para então viver uma rotina de novo.
‘Como uma criança cujos sonhos foram detonados pode ter esperança?’
É o que questiona a ativista e psicóloga Hyatt Omar ao ponderar a falta de horizontes para uma criança em áreas de conflitos que já testemunhou tanta morte e que é impedida de sonhar – uma capacidade essencial, mesmo após experiências devastadoras, diz.
“Sonho em comer um shawarma e ouvir a voz da minha avó de novo” – criança na Faixa de Gaza
Para que as crianças recuperem o direito de sonhar e possam superar o ódio, Hartung propõe uma mudança na forma como as educamos. “Proporcionar a elas um ambiente de paz desde o início de suas vidas inclui rejeitar a guerra como solução de conflitos e adotar uma abordagem permeada por negociação.”
O psiquiatra Viktor Frankl notou que sobreviventes do Holocausto como ele, em um contexto de destruição e perda, conseguiam acolher melhor a contradição dos sentimentos por estarem vivos ao buscarem um propósito. Assim, as pessoas que conseguiam atribuir significado a suas vidas após um evento traumático tinham mais condições de lidar com os desafios psicológicos e prosseguir.
Um museu para guardar infâncias atingidas pela guerra
Foi a partir da ideia de preservar memórias e atribuir novos significados ao passado, que Jasminko Halilović criou o “Museu da infância na guerra”. Nascido em Sarajevo em 1988, Halilović tinha apenas 4 anos quando seu país entrou em guerra. A ideia de um museu dedicado ao registro de infâncias afetadas pela guerra veio depois de escrever um livro sobre a guerra da Bósnia: Sarajevo 1992 – 1995″. Inaugurado em 2017, o museu documenta e digitaliza continuamente materiais sobre como é crescer em tempos de guerra, numa tentativa de contribuir com processos de reconciliação de indivíduos com o passado e de prevenir traumas futuros. Ao mesmo tempo, busca sensibilizar o público sobre a experiência de quem não escolheu iniciar o conflito, mas sofre suas consequências: as crianças.
Reconstruir para voltar a sonhar
As subjetividades das crianças moldam o lugar onde vivem e vice-versa. Assim, falar da reconstrução do que é concreto também contribui para o resgate das infâncias. “Diante disso, um cessar-fogo permanente é imperativo para que se permita alguma forma de reconstrução de infraestrutura”, diz o cientista político Pedro Costa.
Nesse sentido, Costa lembra exemplos históricos, quando houve um investimento financeiro massivo para reconstruir sociedades devastadas, como o Japão e a Alemanha após a Segunda Guerra Mundial. Segundo ele, esse passo é essencial para estabelecer uma base sólida para os direitos humanos e a democracia e, assim, garantir uma paz duradoura. A reconstrução concreta de um lugar tem consequências diretas sobre vidas reais, inclusive no acesso a direitos, uma vez que as crianças podem voltar a estudar ou a ter atendimento médico. Isso sem falar nas consequências econômicas positivas, trazidas, em suma, pela geração de empregos pela volta das atividades comerciais.
Mas esse processo de reconstrução só se completa com a chegada de novos líderes ao poder. “São necessárias, sobretudo, pessoas que estejam alinhadas com valores de paz e resolução pacífica de conflitos”, diz Hartung, do Instituto Alana.
* Ao longo desta reportagem, apresentamos depoimentos de crianças cujas vidas estão sendo impactadas pelo genocídio na Faixa de Gaza. Estes depoimentos fazem parte do arquivo de profissionais da imprensa Wissam Nassar e Ibraheem Shaheen que trabalham na região.
Hoje, existem 5,9 milhões de refugiados palestinos vinculados à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente, segundo dados da mesma agência. A pessoa refugiada é aquela que busca acolhimento fora do seu país de origem por correr risco de vida em razão de guerra, conflito armado, perseguição por raça, religião, opinião política e violação de direitos humanos.