No Brasil, elas atingem 13 milhões de pessoas e a maioria se manifesta na infância. Como sensibilizar sobre a existência e os cuidados com essas doenças?
No Brasil, estima-se que 13 milhões de pessoas tenham uma doença rara. Neste Dia Mundial das Doenças Raras, comemorado todos os anos por inúmeras associações de pacientes pelo mundo, visa sensibilizar a sociedade e governos sobre o assunto.
Foi só aos nove anos que Maria Luísa, 11, recebeu o diagnóstico correto de síndrome de Noonan. Além da baixa estatura e características faciais, a síndrome pode afetar a saúde de várias maneiras, incluindo alterações esqueléticas e cardíacas.
“Perdi as contas de quantos endocrinologistas levei. Nenhum descobriu o problema e o porquê de ela ter um crescimento lento“, conta a mãe, Aurinha Soares. “Maria sempre teve a saúde fragilizada, mas médico nenhum descobriu o que ela tinha e por que ela ficava doente frequentemente.”
Depois de peregrinar de médico em médico, elas conseguiram, então, uma vaga no Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (HUPE-UERJ), referência em tratamento de doenças raras no estado. Foi lá que a dupla, que mora em Maricá (RJ), relatou a uma médica geneticista todo o processo do nascimento de Maria até aquele momento. “No mesmo dia, ela nos falou da síndrome de Noonan. Nunca tinha ouvido falar”, lembra a mãe. Atualmente, a filha faz tratamento com hormônio do crescimento disponível pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Por isso, Aurinha defende que é preciso “falar muito mais sobre doenças raras”. Também é o que pede Regina Próspero, CEO do Instituto Vidas Raras, entidade de São Paulo que presta acolhimento e apoio às pessoas com doenças raras e suas famílias. “É preciso divulgar e informar sobre as doenças raras para que mais pesquisas sejam feitas e essa população tenha mais possibilidades terapêuticas.” Para a médica geneticista Rayana Maia, “falar de doenças raras é importante não apenas para reconhecer e diagnosticá-las. Mas também para acolher e tratar essas condições”.
Além de conseguir o diagnóstico correto, geralmente os desafios colocados às pessoas afetadas e suas famílias envolvem receber o tratamento necessário (multifatorial na maioria das doenças raras), ter suporte para qualidade de vida e acessar, quando disponível, a terapia específica para a doença.
Sem o diagnóstico e tratamento apropriados, a doença pode limitar a expectativa de vida, causar deficiências e limitações graves e complexas, impactando, assim, a autonomia dos pacientes e seus familiares, além das consequências sociais e econômicas.
Natália, 12, nasceu com um dos 13 tipos da doença genética rara chamada Mucopolissacaridose (MPS). Entre outros sintomas, pode afetar partes diferentes do corpo, como crânio maior do que o normal para a idade, alterações da face e atraso no crescimento com baixa estatura e baixo peso. Sem cura, o diagnóstico dessa doença rara e de seu tipo precisa acontecer o mais cedo possível.
Felizmente, foi o caso de Natália, diagnosticada quando tinha pouco mais de um ano de idade. Isso lhe permitiu qualidade de vida e o controle dos sintomas incapacitantes que traz a MPS. “Assim que um neurologista nos disse que ela poderia ter um tipo de má-formação no crânio, fomos atrás de outros médicos. Então, foi um pediatra que levantou a suspeita dessa doença rara”, conta a mãe, Maria Cláudia Faleiros. “Ela fez o exame e, em menos de dois meses, saiu o diagnóstico. Foi um alívio.”
Atualmente, Natália trata a doença rara com uma medicação de alto custo oferecida pelo SUS. Toda quarta-feira, precisa fazer a infusão do remédio no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (SP), que fica a 110 quilômetros de Capetinga (MG), onde mora com a família. O hospital é um dos mais de 22 Serviços de referência habilitados para tratamento de pacientes com doenças raras no Brasil.
Essa odisseia pode levar anos, envolver inúmeras consultas médicas, exames e procedimentos desnecessários, e diagnósticos errados. Muitas vezes, contribui para essa demora “a falta de conhecimento de profissionais de saúde sobre doenças raras”, diz Regina Próspero, do Instituto Vidas Raras.
Realizado durante a triagem neonatal – entre o 3º e 5º dia após o nascimento da criança – é fundamental para a detecção precoce de doenças raras. Até 2021, o SUS oferecia o teste básico, que detectava seis doenças raras (fenilcetonúria, hipotireoidismo congênito, anemia falciforme, fibrose cística, hiperplasia adrenal congênita e deficiência de biotinidase). Mas, com uma lei aprovada naquele ano, a rede pública de saúde passou a ser capaz de identificar mais de 50 doenças. “A ampliação do teste do pezinho foi um marco histórico e de muita luta”, diz Regina. Contudo, segundo ela, “o exame ampliado precisa chegar a todas as regiões do Brasil de maneira igualitária, algo que ainda não é uma realidade.”
Saber exatamente o que os filhos têm costuma trazer um alívio imediato para as famílias, mas é apenas o primeiro de muitos desafios a atravessar. Falar sobre doenças raras é falar sobre condições que afetam milhões de pessoas em todo o mundo, mas que não recebem a devida atenção e suporte, como explica a geneticista Rayana Maia. “Além do acesso ao diagnóstico, existem muitas batalhas que precisarão ser enfrentadas diariamente. Entre elas, o acesso ao tratamento, custos com transporte e alimentação, e o impacto psicológico e socioeconômico dos cuidadores.”
Apesar da luta por um tratamento apropriado para a criança com doença rara, isso começou a mudar há 10 anos com a criação da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, no âmbito do SUS. Resultado da luta de famílias e associações de pacientes, a política pública tirou a doença rara da invisibilidade do sistema de saúde, estabelecendo linhas de cuidado, criando um rol de exames e financiando sua realização.
Também foram criados protocolos clínicos (atualmente são 40) e diretrizes terapêuticas para tratamento de doenças raras, bem como políticas estaduais e municipais visando o cuidado desta população em uma rede organizada de atendimento para prevenção, diagnóstico precoce, reabilitação e tratamento pelo SUS.
Outro avanço nesse sentido foi a criação dos Serviços de referência em doenças raras, presentes em 11 estados e no Distrito Federal. Apesar disso, nem todos possuem capacidade e experiência para atender a toda e qualquer doença rara. Como há estados sem nenhum serviço habilitado, é comum as famílias precisarem se deslocar a outras regiões.
“Ganhamos, assim, um olhar diferenciado no contexto diagnóstico e clínico graças aos avanços dessa política. Mas o Brasil é um país continental e ainda carecemos de muita ajuda”, explica Regina Próspero, do Instituto Vidas Raras. Mais investimentos em pesquisas clínicas nestas doenças, cursos de capacitação e treinamento para profissionais de saúde são algumas das demandas de famílias e pacientes. Além disso, é preciso a formação contínua de especialistas, principalmente geneticistas e generalistas.
Por fim, outro desafio é o acesso aos medicamentos de alto custo para o tratamento, quando disponível (apenas 4% das doenças raras de origem genética são tratáveis). Eles estão registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e incluídos na lista do SUS, mas ainda não estão disponíveis em hospitais ou farmácias públicas. Então, muitas famílias precisam recorrer à justiça para consegui-los. “Esta é uma luta recorrente. O impacto de uma criança com doença rara ficar sem a medicação é imediato no seu dia a dia e pode ser fatal”, lembra Rayana.
Em 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o Governo Federal deve fornecer “Zolgensma”, considerado o mai caro do mundo, para o tratamento de Amiotrofia Espinhal de uma criança de dois anos de idade. Em janeiro deste ano, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei, ainda em tramitação, que prioriza processos judiciais que envolvam pessoas com estas doenças.
Para sensibilizar sobre o assunto, todo ano é celebrado o Dia Mundial das Doenças Raras (em 29 ou 28 de fevereiro), criado pela Organização Europeia de Doenças Raras. Além da conscientização, também existem iniciativas práticas voltadas para a população que convive com uma doença rara.
Com inauguração prevista para o dia 18 de março, o Instituto Jô Clemente (IJC) terá um centro de pesquisa voltado para a inclusão social, educação, saúde e direitos básicos de pessoas com doenças raras. Também nesse sentido, está previsto, para o primeiro semestre, o lançamento da plataforma “Saúde raras”, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Com participação ativa de pessoas com doenças raras, trará informações acessíveis, orientações sobre os direitos e tratamentos disponíveis no Brasil.
Enquanto isso, o Lunetas recomenda onde procurar mais informação sobre o assunto.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), doenças raras são aquelas que afetam 65 pessoas a cada 100 mil. No Brasil, mais de 13 milhões de pessoas possuem algum tipo de doença rara. Assim, estamos falando de seis a oito mil doenças raras identificadas, a maioria de origem genética e cujas manifestações começam na infância. Acromegalia, hipofosfatemia ligada ao X (XLH), síndrome de Cri-du-Chat, doença de Gaucher e doença de Fabry são algumas das doenças identificadas. Boa parte delas não tem cura. Para apenas 4% delas existe tratamento.