A inversão da pirâmide etária no mundo é uma oportunidade para ensinar as crianças, desde cedo, sobre o processo de envelhecimento do ser humano
A ciência comprova os benefícios físicos e socioafetivos da convivência entre idosos e crianças. Para especialistas, a mediação e o estímulo a atividades lúdicas são estratégias que refletem em uma relação frutífera nas duas pontas.
O mundo está passando por uma transformação etária. Até 2050, a população com mais de 65 anos deve dobrar e a de mais de 80 anos, triplicar, conforme estima a Organização das Nações Unidas (ONU). O Brasil acompanha essa tendência, pois o Censo Demográfico de 2022 mostra que a população com 65 anos ou mais cresceu quase 60% em 12 anos.
Nesse cenário, é essencial estimular a interação saudável e respeitosa entre crianças e idosos nos mais diversos contextos sociais. Isso porque a convivência transgeracional traz benefícios para a saúde física e mental nas duas pontas. Mas promover esse encontro requer cuidados e estratégias, para que o resultado seja frutífero.
O Lunetas conversou com especialistas que mostram ações pensadas para fazer essas relações fluírem. “É preciso criar uma convivência positiva, ou seja, aquela que vai além de juntar pessoas de idades diferentes em um mesmo lugar”, ressalta o médico Egídio Dórea, coordenador do programa USP 60+.
Outro fator importante é lembrar que diante de crianças cada vez mais isoladas pelo uso excessivo de telas, a oportunidade de conviver e trocar experiências com os mais velhos pode ajudá-las a aceitar e honrar o envelhecimento humano de forma saudável.
Para a ciência, a capacidade de uma convivência afetiva é uma condição própria do desenvolvimento infantil. “Nós já nascemos sob o signo da dependência de cuidado dos adultos. Portanto, a criança tem essa capacidade de buscar alguém. Não à toa, os estudos mostram a importância do contato pele a pele do bebê com a mãe ao nascer”, lembra o pediatra Álvaro Madeiro Leite, do Departamento Científico de Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
De acordo com ele, esse primeiro contato cria relação de confiança e segurança. “A convivência com um adulto cuidador é a estrutura da base emocional que nós, seres humanos, vamos utilizar para a vida com outras pessoas em qualquer idade”, acrescenta.
Nesse sentido, o encontro de gerações ajuda na regulação emocional e cognitiva dos pequenos, levando-os a compreender de maneira mais fácil conceitos como respeito e empatia pelas diferenças.
“O desenvolvimento da empatia vem por meio do acesso da história e das vivências numa perspectiva de que a vida é longa, que não acaba agora. É algo que as crianças conseguem dimensionar a partir da convivência com o idoso”, afirma Ana Paula Loureiro Harada, mestre em gerontologia e titulada pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG).
Um dos principais impactos positivos nessa interação é a ruptura de preconceitos. Atualmente as crianças são estimuladas desde cedo a consumirem produtos de beleza para rejuvenescimento, por exemplo. Ou, então, costumam se deparar nos desenhos animados com figuras idosas que são más, feias e com limitações físicas, como as bruxas.
Essas são formas de reforçar o idadismo, ou seja, os estereótipos ou discriminação a uma pessoa pela idade, explica Egídio Dórea. Por isso, a convivência com idosos desde muito cedo pode romper esses mitos geracionais e ajudar as crianças a não ter preconceito com o envelhecimento, sobretudo quando são idosos que fogem a esse perfil.
“Quando a criança convive com idosos que são participativos e produtivos, mesmo com algum grau de incapacidade, ela muda a percepção que têm em relação ao processo de envelhecer.”
Um exemplo é o que acontece no Centro de Convivência Intergeracional (CCInter) Clube da Turma, no Jardim Ângela, em São Paulo. O técnico Marco Augusto Santos percebeu que essa convivência pode ajudar as crianças a entenderem a própria história de vida, dos bairros e das regiões onde vivem.
No local, eles têm atividades de música, esportes e gastronomia em turmas que misturam crianças e adolescentes com idosos. “A gente tem um histórico de luta por garantia de direitos no território e hoje está colhendo os frutos disso. Então, é importante que os mais novos conheçam e respeitem essa história. Isso acontece nas trocas entre eles”, afirma Santos.
Segundo ele, isso também ajuda as crianças a respeitarem a bagagem cultural que todos carregam consigo. “Percebemos que os jovens passam a levar essa experiência para casa e a respeitar mais os avós”, acrescenta.
No processo de envelhecimento é comum a pessoa ter a sensação de isolamento e invisibilidade. Isso pode vir também com a impressão de tornar-se inútil para a sociedade. Nesse sentido, a convivência com as crianças e adolescentes ajuda a aliviar essas sensações e impacta na autoestima. “Existe ali um espaço de reconhecimento das sabedorias que eles vão carregando, e, de fato, podem se sentir valorizados”, afirma Harada.
Para a professora Maria Melo, de 66 anos, a chegada da aposentadoria aconteceu no mesmo momento em que ela descobriu que seria avó das gêmeas Maria Helena e Maria Cecília, hoje com 2 anos. Com elas, Melo diz que recebeu um boom de energia. “Você recebe muita alegria, afeto e energia, pois tem que estar ativa, procurando estar perto delas, ver o que está acontecendo”, diz.
Melo conta ainda que a convivência com as netas traz movimentação. “Quando a gente vai envelhecendo, nem sempre tem vontade de fazer muitas coisas. Mas aí minhas filhas acabam sempre pensando em algo com as netas, convidam e eu vou”, acrescenta.
Como mostra o exemplo de Melo, a convivência com pessoas mais novas também pode ajudar no equilíbrio socioemocional e ser um desafio positivo. Ana Paula Loureiro Harada afirma:
“As crianças são muito mais rápidas, elas têm respostas mais prontas e às vezes não tão construídas. Isso gera um estímulo a uma nova forma de pensar.”
É assim que Edna Silva, de 75 anos, se sente ao interagir com os recém-ingressos na Universidade de São Paulo (USP), por meio do programa USP 60+. Ela participa das atividades há 18 anos, desde que deixou de trabalhar, e conta que o fez porque sabia da importância de manter-se ativa.
“Eu sempre desejei ser uma idosa feliz, saudável e produtiva, né? O idoso não pode só ficar na frente da televisão. Ele precisa também trabalhar a cognição. É preciso trabalhar o cérebro, porque ele rege o nosso corpo”, explica Silva.
Apesar dos múltiplos benefícios, a convivência transgeracional requer estratégias para ser produtiva para ambos. Isso porque ela precisa ser uma parceria e não sobrecarga. Ou seja, uma escolha, e não uma obrigação.
A relação de cuidados entre avós e netos, por exemplo, costuma ser confundida pelos adultos cuidadores das crianças com obrigação financeira ou moral. Em consequência, muitos idosos se tornam corresponsáveis pelo cuidado de uma criança sem querer ou poder. Isso os leva a ter resistência a estar com os mais novos em outros espaços de convivência.
Por isso, de acordo com cada contexto, a mediação é essencial para a construção de laços afetivos e respeitosos. A convivência deve ser encarada com um processo, uma relação construída, ressaltam os especialistas.
A coordenadora da Casa Emilien Lacay, Márcia Bogea Tavares, explica que o primeiro passo é estimular a afetividade, sobretudo considerando o contexto familiar atual. “Há uma mudança nas configurações familiares, muitos avós têm hoje 30, 40 anos e ainda estão no mercado de trabalho. Então, muitas crianças não convivem com eles. Muitos idosos também não vivem com a família, que está longe”, conta.
A conexão envolve ainda criar espaços de apoio mútuo e potencializar os conhecimentos dos dois lados. Além disso, prestar atenção no potencial de cada pessoa, nas suas habilidades e experiências de vida, e trazer isso para as atividades realizadas em conjunto facilita as interações, explica Harada.
“A mediação é importante porque são mundos completamente diferentes, são pessoas que nasceram em milênios diferentes”, explica o psicólogo do Centro Dia para Idosos (CDI) Penha, Murilo Henrique. “É importante ter um plano, mas também é preciso saber que ele não pode ser seguido à risca. As crianças são voláteis, e os idosos podem perder o interesse se elas também não estão abertas a interagir”, reforça.
Os benefícios dessa relação se refletem também na convivência do idoso com os seus familiares mais novos, como contou Santos. “Alguns idosos nos contam que tendo essa convivência com os jovens aqui eles conseguiram também reconstruir vínculos em casa, que voltaram a abraçar um filho ou conversar sem briga.”
A partir da experiência na Casa Emilien Lacay, que há 30 anos oferece atividades intergeracionais, Tavares aprendeu que a cultura é uma das melhores formas de construir pontes entre as gerações. Por isso, recomenda músicas, brincadeiras e memórias do passado. “A gente percebe que está valorizando a cultura do idoso, fazendo um resgate cultural e perpetuando isso. Há o pertencimento de ser visto e ouvido”, conta.
Brincadeiras também são formas de introduzir os dois grupos, à medida que podem explorar atividades lúdicas comuns. Murilo Henrique explica que as brincadeiras estimulam os idosos a se verem novamente na posição de cuidar. “A pessoa idosa passa a vida inteira ensinando, cuidando do outro. E nesse momento da vida, ela muitas vezes está sendo cuidada. Brincando, ela se sente novamente cuidando e ensinando algo”, conta.
Outra experiência que pode dar certo é a contação de histórias. “Os idosos têm um grande potencial de contação de histórias e, às vezes, um repertório imaginativo vasto, o que chama muito a atenção das crianças”, exemplifica Santos. Do lado oposto, o potencial tecnológico das crianças pode ser um elo onde os menores podem ajudar os mais velhos a aprender a utilizar smartphones, redes sociais e computadores.
“Eles começam a se conectar a partir do reconhecimento desse potencial que cada um tem, se ajudam nas atividades e, dali pra frente, se descobrem e se gostam também como amigos”, acrescenta Harada.
Atividades de arte e dança são outras oportunidades, como no Clube da Turma, onde Rosângela Ribeiro, de 55 anos, conheceu várias crianças e adolescentes. “Você se depara com pessoas da geração da tecnologia, que eu ainda não tenho muito domínio, e sempre tem um pé atrás, pensa que não vai rolar uma amizade”, diz. “Mas, dentro das apresentações de dança, acabei encontrando um espaço para me abrir.”
Por meio das aulas de dança contemporânea, o adolescente Luís Oliveira, de 15 anos, também criou laços com vários adultos e idosos. “Quando a gente começa, é um choque grande. No meu caso, estava acostumado a conviver com minha bolha, meus amigos”, conta.
Oliveira diz que criou algumas estratégias para conviver com pessoas de idades diferentes, tanto mais velhas quanto mais novas, como fazer piadas ou propor coreografias novas. Para ele, há dois pontos fundamentais dessa interação: aprender a romper preconceitos e criar ética para lidar com as diferenças.