Quais os impactos sobre o desenvolvimento de uma infância cada vez mais mediada pelas novas tecnologias?
Brinquedos com inteligência artificial e Internet das Coisas levantam reflexões sobre como as brincadeiras podem ser moldadas pelas novas tecnologias. Para especialistas, além de se atentar à proteção de dados das crianças, é necessário não perder a essência do brincar.
Bichinhos de pelúcia que pedem abraços, bonecos que “falam” e respondem a dúvidas, almofadas que vibram quando recebem carinho. Esses produtos já existem no mercado e usam tecnologias ligadas à inteligência artificial (IA) e à Internet das Coisas (IoT) – quando um aparelho está conectado à internet para interagir ou executar tarefas. Ou seja, são brinquedos com conexão à rede, sensores, automação, câmeras, microfones e processadores de informação.
De acordo com as fabricantes, a proposta de acoplar esses dispositivos a brinquedos é proporcionar interação. No entanto, especialistas alertam que expor crianças e adolescentes a esse tipo de brincadeira, sem supervisão, pode comprometer o desenvolvimento saudável e alterar as formas saudáveis de brincar.
Para Rodrigo Nejm, psicólogo e consultor em educação digital do Instituto Alana, embora nem todo brinquedo tecnológico gere riscos, alguns podem limitar ou condicionar comportamentos. Essa primeira observação precisaria vir da família, mas será que elas entendem a dimensão de ter produtos infantis com essas tecnologias?
“Para refletir sobre os riscos, é necessário considerar a capacidade dos pais de entender as camadas de segurança desse tipo de brinquedo, porque, uma vez que ele se conecta à internet, pode deixar a criança vulnerável.”
Rodrigo explica ainda que a segurança depende de vários fatores, desde as empresas respeitarem os direitos das crianças a serem transparentes com relação a coleta de dados, controle parental e indicação de faixa etária. “Infelizmente, essas condições ainda não são compromissos assumidos pela indústria, nem de internet, tampouco pela de brinquedos.”
Não à toa, esses produtos ganham espaço em tempos de “epidemia da solidão”, reconhecida pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como uma ameaça ao bem-estar global. Segundo a organização, 15% dos adolescentes se sentem sozinhos.
No Brasil, a última Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), de 2019, mostrou que 4% dos adolescentes entre 13 e 17 anos declararam não ter nenhum amigo próximo. Quem se sente “sempre” ou “na maioria das vezes” sozinho chega a 18%. Portanto, a nova onda de “brinquedos-companheiros” mira uma falta real: acolhimento e presença, pois eles prometem escutar, interagir e “estar por perto”.
Como é o caso do robô japonês Lovot. “Ele nasceu com uma única missão: “ser amado por você”, diz o slogan. Revestido de pelúcia colorida, com olhos e rodinhas, ele reconhece seu dono pela câmera e também pelo sensor de voz. Então, pede abraço e percorre a casa atrás de mais carinho.
Felpuda e semelhante a um gato, a almofada Qoobo se move lentamente, emite sons de ronronar a cada afago e a cauda balança ao ouvir sua voz.
Já os brinquedos da fabricante estadunidense Curio são verdadeiros chatbots revestidos de bichinhos coloridos. As crianças podem conversar e fazer perguntas, como uma Alexa. O dispositivo está programado para não falar palavrões nem sobre temas como violência e sexo. Além disso, envia as transcrições das conversas para o celular dos responsáveis.
Recentemente, a Mattel, fabricante da boneca Barbie, anunciou que entrará para esse mercado e terá produtos com IA. Segundo Josh Silverman, vice-presidente da franquia, “a IA permitirá repensar o futuro do brincar com experiências inéditas.”
Mas será que esses brinquedos substituem uma boa companhia? Para Rodrigo Nejm, sobretudo durante a infância, a resposta é não. Brincar com mais gente, interagir, trocar ideias, risadas e conexões faz parte do desenvolvimento integral das crianças. Isso, para o psicólogo, é inegociável. “É uma questão de proteção à saúde de crianças e adolescentes, como seres humanos que precisam de habilidades sociais, emocionais e criativas.”
A orientação é que os responsáveis expliquem às crianças que tudo não passa de uma simulação. “Inteligências artificiais que ‘conversam’ simulam uma interação humana, uma relação de empatia e acolhimento”, diz. “Se você junta essa capacidade de sedução da IA como uma conversação por voz dentro de brinquedos fofinhos e bonitinhos, há assim um cenário de vulnerabilidade. Isso porque as crianças ainda estão desenvolvendo o discernimento e a capacidade de análise crítica.”
Por trás dos “brinquedos que conversam” existe um ciclo de dados: coleta (voz/imagem/local/rotina), processamento em nuvem e uso comercial, que pode incluir perfilamento infantil. Isto é, quando o brinquedo cruza dados de uso para inferir gostos e induzir escolhas, ajustando respostas, recomendações e até publicidade. É nesse percurso que moram os principais riscos.
O advogado Marcelo Mattoso, especialista em mercado de games, direito e tecnologia, explica que, por se tratar de fabricantes de brinquedos, essas empresas precisam disponibilizar um sistema de proteção de dados das crianças e dos responsáveis. Mas é necessário ficar atento aos filtros desses dispositivos e, principalmente, às ferramentas tecnológicas do produto. “Câmeras, microfones ou GPS, por exemplo, podem compartilhar informações pessoais com as grandes empresas. Isso é temerário”, alerta.
Segundo Marcelo, quando crianças e adolescentes registram suas vozes, fotos, pesquisas e outros dados já é um risco. “Na maioria das vezes, o intuito das grandes empresas é explorar esses dados para induzir ao consumo de seus conteúdos ou formar perfis de consumidores, por exemplo.”
Quando isso “chega de forma precoce na vida das crianças pode impactar logo a prática mais inocente que é o brincar”. Portanto, com o poder de formar um perfil consumidor desde cedo, essas empresas conseguem desenvolver produtos que as crianças ou os adolescentes se convenceram de que precisam muito.
No que as famílias devem prestar mais atenção?
Onde pedir ajuda se algo errado acontecer?
Como explicar o que aconteceu?
Antes de sair correndo atrás do último lançamento do ano, Rodrigo Nejm faz um questionamento às famílias: “a criança precisa desse brinquedo?”. A resposta ajuda a mensurar as reais necessidades do brincar. “Vamos entender, primeiro, no que o brinquedo contribui do ponto de vista lúdico, de interação, de fantasia.”
Além disso, ele também questiona se esses produtos “prescrevem comportamentos”, ou seja, induzem a criança a brincar só de um jeito, sem a liberdade de criar. “O interessante da brincadeira é a criança ser capaz de inventar a partir do brinquedo, e não quando a brincadeira já vem pronta.”
Portanto, que tal pensar se é mais necessário seguir as tendências ou brincar sem dispositivos eletrônicos?
“Nessa sociedade de consumo, adultos têm a ideia de que brincar depende de brinquedo, e não de presença. As crianças às vezes brincam mais com aquelas coisas que nem são um brinquedo, como uma caixa ou um papel diferente. Essa é a beleza do brincar livre, fundamental no desenvolvimento da infância.”
Em um cenário em que 93% de crianças e adolescentes brasileiros estão conectados à internet, conforme aponta a pesquisa Tic Kids 2024, “até que ponto as novas tecnologias podem interferir nessa ludicidade?”
Conforme Rodrigo explica, “é sobre olhar para a realidade dentro de casa e reconhecer que é muito possível brincar com menos plástico e menos tecnologia”. Mas, segundo ele, “brinquedos com tecnologia para crianças mais velhas podem ser interessantes. Como aqueles que introduzem noções básicas de programação, robótica e mesmo a inteligência artificial”. Independente da idade, “a gente não pode perder a capacidade inventiva de brincar”.