A brincadeira se faz com a vida, e não com produtos comprados

O pesquisador Gandhy Piorski explica a importância da brincadeira livre, longe dos brinquedos prontos e perto da imaginação pura da criança

Renata Penzani Publicado em 03.11.2016
Foto em cores de pés de crianças chafurdando em lama

Resumo

No livro "Brinquedos do chão", o pesquisador Gandhy Piorski diz que "a infância está no porão do olhar cultural". O que isso quer dizer? Que precisamos voltar a colocar a infância em um lugar de importância. Para isso, precisamos entender o valor da brincadeira.

A afirmação é de Gandhy Piorski, pesquisador da cultura de infância. Desde 2003, o maranhense estuda o brinquedo e a brincadeira como valor fundamental da infância. O interesse de Gandhy pelo tema começou no Museu do Brinquedo, em Portugal, se estendeu para o Brasil, e rendeu duas exposições, um projeto de mestrado, diversos seminários e palestras em universidades.

Gandhy é autor do livro “Brinquedos do Chão” (editora Peirópolis, 2016). Nele, o autor investiga as diferentes representações do brincar e defende a liberdade de ser criança, e, principalmente, a imaginação.

Segundo ele, a imaginação é o que constrói a psique da criança, e, se não for estimulada na primeira infância, pode atrofiar e causar danos como adultização precoce.

“A imaginação é a verdade da criança. Para alcançarmos a criança, devemos compreender que a imaginação é um mundo”

Para ele, “os conteúdos da infância estão no porão do olhar cultural”, e seu trabalho vem para chamar a atenção para essa lacuna da sociedade.

Confira a entrevista completa:

Lunetas – No filme “O Começo da Vida”, é marcante a fala de um pai que diz que, “do ponto de vista criativo, a melhor coisa que podemos dar a uma criança é o nada”. Você concorda? Pode falar um pouco sobre?

Gandhy Piorski – O nada é o chão do todo. Assim, é rico de possibilidades, aberto sempre a novos caminhos. Esse espaço é vital para permitir que a criança floresça encontrando, desde si, a larga extensão do mundo. Mas quem permite o nada para a criança deve estar integrado a ele, ser presente e ativo nesse espaço aparentemente vazio. Pois a presença do pai, da mãe, do educador é quem assegura a ambiência, a atmosfera, a confiança, o acolhimento da descoberta, o encontro das novas possibilidades, a investigação que a criança naturalmente quer exercer sobre as coisas, as matérias, os corpos, os gestos, as palavras.

“O excesso de ofertas e atividades, tarefas, deveres escolares, muitos brinquedos, entretenimento, estímulos e mais estímulos, parasita a criança”

O excesso entedia, tira-lhe a autonomia, desvitaliza sua força imaginadora, empreguiça seu auscultar minucioso das coisas mais ínfimas e instrutivas do viver.

O nada é o fazer livre nos lugares de liberdade do corpo, de diversidade tátil, de geografia irregular, de arquitetura mais humana, de convívio comunitário, de experiências na natureza, de cidades mais acolhedoras.

“O brincar se faz com a vida e não com produtos adquiridos em lojas”

Assim também o corpo, sua subjetividade, se constrói integrado à cidade, à natureza, aos ambientes que propiciam a alegria de explorar, aos convívios atentos dos pais e cuidadores.

  • Lunetas – O excesso de brinquedos prontos limita a imaginação das crianças?

Gandhy – As imagens internas são alimentos vitais para qualquer um de nós. Mas, especialmente na criança, a dinâmica dessas imagens (a imaginação) está mais acessível, mais dada e é a base de suas relações com as coisas e pessoas.

“Imaginação requer espaço, folga, lugares de contemplação, devaneio, solidão, convívio, lugares desafiadores. Todas as coisas que tiram esse direito das crianças são excessos”

Muitas atividades, demasia de informação escolar, deveres e mais deveres a cumprir no dia a dia, com o enfadonho objetivo serem bem-sucedidas num tempo futuro e distante. Do mesmo modo os apelos constantes para o consumo de brinquedos, todas essas coisas estão nos fundamentos primeiros da modernidade, onde o ideário que a sustenta é a produção e a aquisição.

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Divulgação/Adriana Elias

“Brinquedos do Chão: o imaginário, a natureza e o brincar” será lançado no dia 5 de novembro, em São Paulo.

“Inserimos nossas crianças num fluxo vertiginoso de modelamento social, para num futuro serem vitoriosas na geração de produtos e consumo”

Com isso, reprimimos o que elas têm de mais valioso no humano, aquilo do qual elas são as principais depositárias: a poderosa e plástica capacidade de imaginar. Dessa faculdade plástica e anímica é que brota a verdadeira inteligência. Esse é o lugar onde se adubam os valores, onde se constrói a ética pela apreensão estética.

Portanto, excessos de um modo geral obstruem o delicado fluxo imaginador que se espraia da criança para o mundo como uma fragrância, uma brisa, uma suspensão vaporosa que toca-o, enlaça-o buscando contato com ele, enraizamento nele, almejando a integridade dele. Assim, é possível nascer um dizer autêntico advindo de sua própria busca, de seu próprio interesse, de suas próprias afinidades.

“Muitos brinquedos, para a sensível percepção da criança, são como estar ao lado de um tagarela que não dá espaço para os outros falarem”

  • Lunetas – A criança está sujeita a uma quantidade enorme de estímulos a todo momento. Mas o adulto tem culpa nisso. Como então proporcionar à criança o ambiente propício para que ela apenas possa ser?

Gandhy – Esse é um drama civilizacional. Está em como escolhemos viver. Mas também está para aqueles que estão muito mais limitados em como escolher o modo de vida por barreiras sociais, políticas, educacionais.

“As crianças têm pouca escolha. E isso é trágico, pois estão à mercê dos desejos das épocas, dos pais, das nações. Certamente, o peso da responsabilidade em escolher não é das crianças, é nosso”

Mudar o curso de nossas vidas para criar condições melhores para nossos filhos é nossa tarefa. Modos de trabalho, concepções sobre o tempo, entendimentos sobre o que realmente é aprendizado, senso de vida comunitária, e tantas outras revisões são necessárias para encontrarmos o ambiente propício para que a criança seja ela mesma.

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