Operações policiais deveriam proteger as crianças das favelas

Organizações e moradores de comunidades do Rio de Janeiro falam sobre os pontos positivos e negativos da decisão do STF para a ADPF das Favelas

Camilla Hoshino Carolina Pelegrin Publicado em 11.04.2025
ADPF das Favelas: imagem mostra dois meninos negros sorrindo.
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Resumo

Pela primeira vez na história, a segurança pública das favelas foi tema de um julgamento no STF, a partir da APDF das Favelas. Diversas organizações se mobilizaram para garantir direitos fundamentais nesses territórios, entre eles a proteção das crianças.

Barulhos de helicópteros, troca de tiros, uma bala perdida: esse não deveria ser, nem de longe, o cenário de uma criança que caminha da escola de volta para casa. Mas Luiz Fernando, 15 anos, morador da Maré, no Rio de Janeiro, se lembra bem dessa sensação. Por isso, em março deste ano, junto com cerca de 400 crianças e jovens, ele escreveu uma carta aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). No pedido, mais segurança para as famílias da comunidade.

A esperança de mudança vinha com a retomada do julgamento da ADPF 635. Conhecida como “ADPF das Favelas”, a ação voltou ao Supremo Tribunal Federal (STF) no início de abril. O objetivo é aumentar a transparência e reduzir a letalidade das ações policiais nas operações nas comunidades do Rio de Janeiro, com um plano de prevenção e não apenas repressão.

O que é uma ADPF?

ADPF é a sigla para Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental que é um instrumento jurídico que permite ao Supremo Tribunal Federal (STF) atuar como guardião da ordem constitucional. Este dispositivo é usado quando há desrespeito aos direitos fundamentais previstos na Constituição.

Dentre as reivindicações, a ADPF previa a proteção de áreas próximas de escolas e unidades de saúde nos dias de operação policial. Contudo, mesmo reconhecendo o perigo para as crianças, o STF recuou. O argumento foi que as operações podem acontecer se existirem evidências do uso desses locais para atividade criminosa.

“Crianças e jovens continuam inseguros, sem poder estudar ou brincar em paz. Enquanto famílias continuam com medo e instabilidade, já perdi amigos, parentes e colegas, todos assassinados pela política de segurança pública”, escreveu Luiz Fernando aos ministros.

Ano passado, 20 pessoas morreram em 42 dias de operações policiais no conjunto das 15 favelas da Maré. Os números são do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré “De Olho na ADPF 635”, monitorado pelo projeto “De Olho na Maré”.

Além disso, em 2024, 88% das operações policiais ocorreram nas imediações de escolas, com 37 dias de suspensão das aulas, afetando cerca de 7.302 alunos. Em média, foram 3,4 dias sem aula por mês, ou seja, quase um dia por semana.

“Tudo isso impacta não apenas a rotina escolar, mas o acesso à alimentação diária das crianças e à saúde. Também na própria renda das mães que deixam de ir trabalhar nos dias de operações”, relata a coordenadora do Eixo de Direito à Segurança Pública da Redes da Maré, Tainá Alvarenga.

Vítimas da violência

De acordo com dados do Ministério Público do Rio de Janeiro, 679 crianças foram vítimas de violência armada nos últimos 8 anos e 286 delas foram atingidas em operações policiais. Em 2022 e 2023, mais de 675 escolas foram afetadas por essas operações. Já o estado de São Paulo registrou um aumento de 120% no número de mortes de crianças e adolescentes em deccorência de intervenções policiais. O total corresponde entre os anos de 2022 e 2024, conforme o relatório “As câmeras corporais na Polícia Militar do Estado de São Paulo”, do UNICEF e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Em 2024, 77 crianças e adolescentes entre 10 e 19 anos foram mortas durante essas operações no estado.

Crianças escrevem aos ministros cartas pela paz

Meninas e meninos da Maré produziram cerca de 400 cartas e desenhos com pedidos de paz em suas comunidades. O material foi protocolado junto a ADPF das Favelas, em uma ação do Instituto Apontar e documentada no curta-metragem “Cartas Pela Paz”.

No documentário, Luiz Fernando e mais quatro adolescentes da Maré, Kamile, Davi, Thalles e Myllena, reivindicam o direito de brincar, estudar e sonhar em meio à violência das operações policiais no Rio de Janeiro.

“Eu quero poder jogar futebol, ter uma vida normal e ir para os meus treinos”. – Kamile aos 11 anos em Cartas Pela Paz.

Mas essa história não começa em 2025. Em 2016, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, em parceria com a Redes da Maré, propôs uma Ação Civil Pública (ACP) para combater o cenário de operações violentas nos 16 complexos da Maré. Esta se tornou a primeira ação coletiva sobre segurança pública para favelas e periferias no Brasil e serviu de inspiração, em 2019, para a apresentação da ADPF 635.

Nessa época, pela primeira vez, foram entregues ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 1.509 cartas de moradores locais. Luiz Fernando tinha então 10 anos, mas já compartilhava seu medo e traumas diante da violência. Assim, o relato do menino e de outras crianças deram origem ao livro “Eu deveria estar na escola” (Caixote), publicado em 2024.

A repercussão inspirou a produtora audiovisual Mariana Reade a produzir o “Cartas Pela Paz” anos depois. “A diferença de direitos dependendo do território era para a gente uma questão inadmissível!”, protesta.

“Só queremos nossos direitos. Por que na zona sul eles entram na sua casa com mandado de busca e apreensão e na favela não é assim?” – Luiz Fernando, em Cartas Pela Paz

Diante desse cenário de injustiça, as palavras e os desenhos colocam a proteção das crianças no centro do debate. Portanto, Mariana defende torná-las protagonistas para mostrar o quanto o medo e a insegurança se espalham pela rotina de quem não tem relação alguma com o objetivo das operações.

Dirigido em parceria com Thays Acaiabe e Patrick Zeiger, o documentário será transmitido em escolas e organizações da sociedade civil para fomentar o debate. Mariana defende que é urgente “uma política de segurança pública que reconheça o valor da vida em qualquer território”.

O que muda com a ADPF das Favelas?

Para a diretora fundadora da Redes da Maré, Eliana Sousa Silva, o resultado do julgamento da ADPF das Favelas traz um avanço significativo. A partir de agora, será necessário o controle da ação do Estado durante e depois das operações policiais. Portanto, isso requer a obrigação de produção de dados e o monitoramento do Ministério Público.

Entre pontos sensíveis reforçados pelo STF, alguns permitem investigação de possíveis abusos de poder. Isto é, com o uso de câmeras corporais pelos agentes policiais e a preservação da cena do crime para perícia, por exemplo. Além disso, as operações policiais devem levar ambulâncias e as buscas em domicílio só poderão ocorrer durante o dia, com mandato policial para justificar.

“Para nós, moradores de favelas, o resultado da ADPF 635 significa o reconhecimento do direito à segurança pública para todas as pessoas, independente do seu CEP de moradia”, avalia Eliana.

Já outras organizações, como o Instituto da População Negra, vêem o desfecho no STF como uma vitória política, mas uma derrota jurídica. “Vitória política, porque, do ponto de vista da luta coletiva, tudo o que foi construído ficará na história”, afirma Djeff Amadeus, advogado do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN).

Por outro lado, segundo ele, a perda jurídica se deu pois a decisão do STF abre margem para que a polícia elabore um plano de ocupação nos territórios das favelas. “A luta continua, especialmente porque há questões relacionadas ao monitoramento.”

“Queremos estudar e não ter medo”

O principal argumento das organizações pela ADPF das Favelas é: o Estado não pode agir nas favelas e periferias sem respeitar as mesmas regras que utilizam para outras partes da cidade.

Em meio ao debate, Ana Cifali, coordenadora jurídica do Instituto Alana, destaca que é necessário pensar como o “estresse tóxico” do ambiente de violência afeta o desenvolvimento e impacta na aprendizagem das crianças.

Questões de saúde mental, traumas, estresse pós-traumático causados pela violência sistêmica prejudicam o presente, mas também apagam os caminhos de escolhas saudáveis dessas crianças.

Por isso, um ponto que preocupa as organizações de direitos humanos é a presença de helicópteros, porque são usados, sem restrições, como plataforma de tiro. Segundo dados do Eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré. Entre 2019 e 2024, 65% das mortes em operações policiais ocorreram quando havia helicóptero.

“Para quem não vive essa realidade o helicóptero é só um brinquedo, mas para quem vive, o helicóptero é uma máquina de matar!”, diz Luiz Fernando, em Cartas Pela Paz.

De acordo com os especialistas que atuaram como amigos da corte durante o caso, o desafio, a partir daqui, é acompanhar o processo de implementação e respeito às regras estabelecidas pelo STF. “Se as determinações não saírem do papel, vamos voltar e seguir lutando”, defende Eliana Sousa Silva.

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Divulgação “Cartas pela Paz"

Davi, 10, e Kamille, 11, escreveram cartas pedindo uma infância e adolescência com mais segurança em suas comunidades.

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Divulgação “Cartas pela Paz"

A ADPF das Favleas teve um jugamento inédito no STF com um debate sobre a violência das operações policiais no Rio de Janeiro, que afeta a rotina das crianças.

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