A última geração com pólio e os riscos da doença voltar

Adultos contam como foi conviver com o vírus da paralisia infantil em uma época em que a doença não era controlada pela vacinação

imagem de capa para matéria sobre adultos que viveram com a poliomielite mostra uma criança, menina, negra, de cabels cacheados, recebendo vacina oral.
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Resumo

Há mais de 30 anos a poliomielite foi erradicada no Brasil com a vacinação intensa em crianças. Saiba como foi a infância de quem teve a doença e as mudanças no esquema de imunização, que ainda é a melhor forma de prevenção.

A memória de Margarete Loureiro, 59, correndo no parquinho da escola com seus colegas é bem diferente de quando a mãe lhe contou da poliomielite. Depois de uma febre muito forte e de sentir o corpo mole, andar e correr no pátio com outras crianças só foi possível com uma série de cirurgias, fisioterapia e o uso de aparelhos.

Mas, mesmo com as dificuldades de locomoção, Margarete teve uma infância livre. “Subia em árvores na casa da minha avó, pulava muro…”, lembra. “Tudo porque meus pais sempre me deixavam muito solta.”

Já a infância e a adolescência de Eliana Regina Pietro, 64, que sobreviveu à poliomielite aos nove meses, foi praticamente dentro de hospitais. Assim, o contato com outras crianças era reduzido aos pacientes que tinham a mesma doença. “Várias vezes alguma criança entrava e ficava comigo no quarto por um tempo, depois ela saia e eu ficava sabendo que ela tinha morrido”, conta.

Embora a relação mais forte tenha sido com a família, ela percebia que a mãe e o pai lidavam com a deficiência de jeitos diferentes. “Quando eu era criança, minha mãe me colocou numa redoma. Do outro lado, meu pai achava que eu precisava enfrentar a vida.”

O que é a poliomielite?

Transmitida pela água e por alimentos contaminados ou pelo contato com uma pessoa infectada, a poliomielite ficou conhecida como “paralisia infantil”. Isso porque atinge os músculos motores com fraqueza extrema, especialmente de crianças não vacinadas. “O vírus causa uma infecção que leva o indivíduo, até então saudável, a deixar de andar”, explica o infectologista Guilherme Roveri.

Os desafios da pólio – da infância à vida adulta

Margarete Loureiro sempre estudou em escolas regulares, algo que só se tornou uma política pública no Brasil recentemente. Mas, devido a problemas de falta de estrutura e acessibilidade, a família teve que lutar para garantir a matrícula em uma escola que a aceitasse. “Eu sempre tinha que subir escadas para chegar às salas de aula.”

Com a chegada da adolescência, a socialização com outras pessoas diminuiu. “Quando eu saí do ensino fundamental para o ensino médio, a diretora queria que eu fosse para o ensino especial. Lá havia apenas estudantes com deficiência”, conta. Hoje casada e com um filho de 30 anos, ela lembra que teve poucos relacionamentos amorosos quando adolescente. “Os próprios meninos falavam que as mães deles não gostavam que eu estivesse com eles.”

Foi na música que encontrou mais aceitação. Seguindo os passos dos pais, após deixar para trás a faculdade de biologia, ela começou a se apresentar em igrejas como cantora lírica. “Nunca senti preconceito das pessoas que me assistiam quando eu era mais nova”, diz. “Até porque a maioria já me conhecia há bastante tempo.”

Então, ela se preparou com aulas de canto e de piano, indicadas por um médico. A atividade ajudou a complementar a fisioterapia e despertou ainda mais a paixão pela música. “Entrar para o Coral Lírico do Teatro Municipal de São Paulo foi a maior felicidade da minha vida. O maestro e as pessoas me tratam como uma profissional e não como uma deficiente física”, ressalta a musicista.

Embora o Censo Escolar mostre que 95% das pessoas com deficiência estão matriculadas em classes regulares no ensino básico, os números diminuem à medida que avançam as etapas. Assim, apenas 7% dos estudantes do ensino superior são pessoas com deficiência. Esses números refletem diretamente no mercado de trabalho: 22% das PCDs estavam trabalhando em 2023. Para Claudia Werneck, fundadora da Escola de Gente, organização não governamental que usa a comunicação para promover a inclusão de pessoas com deficiência, um “ciclo de não participação” dificulta o acesso de PCDs a direitos básicos: “Muitas vezes, por ficarem isoladas em casa, elas não se veem como parte de uma comunidade, e nem são reconhecidas como tal. Daí nascem as dificuldades para acesso à escola e ao mercado de trabalho, por exemplo.”

No caso de Eliana Regina Pietro, por conta das internações frequentes, a conclusão da vida escolar foi por supletivos. Mais tarde, a irmã mais velha foi quem a incentivou a fazer faculdade. Aprovada em Letras, ela lembra que, neste período, não construiu muitos vínculos de amizade. “As pessoas me olhavam como um ET.”

Mas, depois de formar-se professora, Eliana se tornou uma entusiasta da educação inclusiva. “Em algumas escolas em que dei aula havia alunos cadeirantes. Foi aí que eu notei que as crianças não têm preconceito; quem tem é o adulto. Por isso, às vezes, acaba ensinando isso”, diz. Além da sala de aula, ela também conquistou o sonho da maternidade. Depois de seis anos de espera, ela adotou sua filha.

A doença foi controlada, mas as pesquisas continuam

Apesar da doença estar erradicada em quase todo o mundo, ainda há casos em países como o Afeganistão, Índia e Paquistão. No Brasil, o último paciente com o vírus foi registrado em 1989. Mesmo assim, as pesquisas sobre a doença no país continuam. “Não paramos de estudar um vírus só porque ele não está se manifestando nos pacientes”, explica a médica superintendente de práticas assistenciais da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), Alice Rosa Ramos.

“Outra questão é que há menos profissionais para lidar com a doença (médicos, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, psicólogos). Isso porque muitos dos que tinham essa experiência estão aposentados ou morreram. Então, imagina se a gente tiver que prepará-los para enfrentar novos casos de pólio?” Por isso, é importante “capacitar quem está na ativa e também os estudantes de medicina”, afirma Ramos.

Segundo ela, num cenário de queda da cobertura vacinal, que preocupa autoridades de saúde pública, a continuidade nas pesquisas e na capacitação evitaria problemas em uma eventual volta da doença no Brasil. Tais problemas vão desde a descoberta do diagnóstico até a prescrição de melhores tratamentos, já que os médicos estão acostumados a tratar paralisias que têm características diferentes daquela causada pela poliomielite.

“Hoje, as paralisias mais comuns são as chamadas espásticas, provenientes de alguma disfunção do sistema sensório-motor, que causam o aumento do tônus muscular e deixam os músculos duros. Já o vírus da poliomielite apresenta outra paralisia, que é a flácida”, esclarece a médica.

A taxa de vacinação contra a poliomielite é de 77,19%, considerada abaixo da meta do Ministério da Saúde (95%). “Por causa de desinformação e fake news, muitos pais estão expondo as crianças a esse vírus”, alerta o infectologista Guilherme Roveri. Segundo ele, como “só vamos perceber os prejuízos e os impactos na vida das famílias nos próximos anos”, é de extrema importância a vacinação completa desde bebê até as doses de reforço. “Os pais precisam confiar na ciência e nas informações dos profissionais que estudam com fontes comprometidas com o bem-estar da população coletiva e, principalmente, das crianças.”

Como funciona a imunização contra a poliomielite no Brasil?

Existem duas vacinas contra a doença: a Vacina Inativada Poliomielite (VIP) e a Vacina Oral Poliomielite (VOP). A VIP é aplicada em três doses, sendo a primeira em bebês de dois meses, a segunda, aos quatro meses, e, a última, aos seis meses. Já a VOP consiste em duas doses de reforço para crianças de 15 a 18 meses, e, por fim, aos quatro anos. No entanto, desde o ano passado, o Ministério da Saúde anunciou a substituição gradual da vacina oral pela injetável, sendo necessário apenas um único reforço. Ou seja, as duas doses da chamada gotinha vão mudar para uma única dose de injeção.

De acordo com os especialistas em saúde, essa mudança está alinhada com as recomendações internacionais para garantir uma proteção mais eficaz, já que há diferenças entre os imunizantes. “A transição para a vacina injetável é um passo crucial para a saúde pública. Nesse sentido, estamos comprometidos em retomar as altas coberturas vacinais e assegurar que cada criança tenha acesso a vacinas mais seguras”, defende a enfermeira especialista em sala de vacinação, Fernanda Mascarenhas.

“A vacina injetável não só elimina os riscos da contaminação, mas também oferece uma imunidade robusta e duradoura contra a poliomielite”

Isso não significa que a vacina em gotas seja ineficaz. A diferença está, principalmente, na melhor absorção do imunizante pela corrente circulatória. “A vacina injetável contém o vírus inativo enquanto a oral tem o vírus atenuado. Então, a injetável pode ser mais segura em indivíduos que têm o sistema imunológico enfraquecido, como os bebês”, esclarece o infectologista Guilherme Roveri. Outra vantagem, segundo ele, é que “a injeção pode ser mais eficaz aos indivíduos com aids, pacientes transplantados ou em quimioterapia e radioterapia”. A mudança já iniciou no começo do ano em algumas cidades e o Ministério da Saúde explicou que, após esse período de transição, o Calendário Nacional de Vacinação continuará com as três primeiras doses da VIP, acrescentando o reforço aos 15 meses. Assim, a dose da VOP aos quatro anos não será mais necessária.

Esquema vacinal contra a poliomielite 

Como acontece hoje
VIP: vacina injetável
Doses: 2 meses, 4 meses e 6 meses
VOP: vacina oral
Doses: 13 a 18 meses, e aos 4 anos

Como será após a mudança
VIP: vacina injetável
Doses: mantém aos 2, 4 e 6 meses
Reforço: única dose aos 15 meses
VOP: não será mais necessária

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