A toxicidade nos jogos on-line e os impactos para a infância

Apesar de não existir comprovação científica que mostre ligação entre jogos e comportamentos violentos, por que essa associação ainda é tão recorrente?

Eduarda Ramos Publicado em 27.04.2023
Imagem em preto e branco de um menino jogando jogos on-line, em dois monitores. A imagem possui intervenções de rabiscos simulando xingamentos censurados.
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Resumo

A toxicidade em comunidades de jogos on-line é um dos reflexos de uma sociedade violenta e compromete a saúde mental de crianças e adolescentes que frequentam esses ambientes.

Davi Gomes, 25, costumava chegar da escola durante o ensino médio e jogar “League of Legends” (cujo objetivo é destruir as torres inimigas até chegar ao “Nexus”, estrutura máxima do mapa inimigo), utilizando plataformas de áudio para se comunicar por voz com seu grupo de amigos. Ele relata como xingar usuários do mesmo time ou do time inimigo era uma atitude recorrente em jogos on-line e ele mesmo já xingou, confessa, mas também fez inúmeras denúncias de usuários tóxicos, racistas e/ou preconceituosos que passaram por suas partidas.

Em uma partida de “LoL”, em 2022, “o cara do meu time ficou o tempo todo chamando um adversário de preto e pobre”, diz Hugo Alves, 25, parceiro de Davi nos jogos on-line. No “Foxhole”, jogo que simula uma guerra, já presenciou falas de cunho nazista no chat de voz. Já no “Valorant”, jogo de tiro estratégico em que o objetivo é explodir uma espécie de bomba no mapa inimigo, “rolou de jogar a partida quase toda de boa até um dos membros do meu time abrir o microfone e ter voz feminina, aí uma pessoa do meu time não quis mais jogar por ter uma mulher com a gente”, relata. Ele evita ao máximo jogos on-line sem times fechados, para poupar eventuais estresses.

A toxicidade em jogos on-line já foi confirmada por uma pesquisa realizada pela ONG Anti-Defamation League, em 2021, que apontou que 60% dos jogadores norte-americanos de 13 a 17 anos já sofreram algum tipo de assédio enquanto jogavam on-line. Jucinara Rodrigues, psicóloga clínica e mestra em psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco, explica que comportamentos violentos podem impactar diretamente na saúde mental dos jogadores, relatando sintomas como baixa autoestima, sentimentos de desvalorização e uso excessivo de telas. Apesar da toxicidade ser comum no ambiente gamer, não existe comprovação científica que associe o ato de jogar a cometer violências e crimes.

“A narrativa de que jogos tornam as pessoas violentas foi muito reproduzida na mídia, mas recorrer ao senso comum não dá soluções para problemas multifatoriais”

Para Rodrigues, falar de jogos é “falar sobre regras, leis, consensos, e também requer um estágio mais amadurecido de compreensão, porque carregam uma noção de regras sociais, dos limites das outras pessoas, de estruturas de início, meio e fim que envolvem cada ação”, diz. Ela recupera um histórico das décadas de 1980 e 1990, quando começaram a se popularizar os RPGs no Brasil, e conta como esses jogos, que traziam um universo fantástico em que as pessoas interpretam papéis, foram associados a alguns crimes cometidos nos EUA. “Alguns jogadores foram injustamente acusados, permanecendo no imaginário social esse estigma em relação a jogos de uma forma geral”, opina.

Na quarta temporada da série “Stranger Things”, o personagem Eddie Munson, que lidera o clube “Hellfire Club” de Dungeons & Dragons (RPG de mesa que permite ao jogador entrar em aventuras onde podem ser enfrentados monstros, reunir tesouros e ganhar cada vez mais poder), é injustamente acusado pelo assassinato de uma líder de torcida. Ele e os demais membros passam a ser perseguidos por pessoas que consideram o grupo uma “seita”.

Para Ivelise Fortim, psicóloga e coordenadora da pós-graduação de “Psicologia e carreira em e-sports”, da PUC-SP, o Massacre de Columbine também contribuiu para deturpar a visão sobre jogos. “Os jovens que realizaram o massacre modificaram um jogo para ‘treinar’ o ataque. Quando descobriram que os jovens também jogavam muitos jogos de tiro, isso levou a associações de que os jogos tinham um papel importante nisso”, explica.

O Massacre de Columbine aconteceu em abril de 1999 em uma escola do estado do Colorado, nos Estados Unidos. Com 15 pessoas mortas, incluindo os dois responsáveis pelo ataque, e 24 feridos, o ocorrido levantou discussões sobre cultura gótica, cultura de armas, violência em videogames, uso da internet e de antidepressivos por adolescentes.

Os jogos como espelho da vida real

“Os jogos são fundamentais para a criança entender o mundo, desenvolver suas habilidades mentais e emocionais, e a ajudam em questões novas presentes em ambientes virtuais”, diz Fortim. Dos jogos “analógicos”, como dominó ou baralho, aos jogos on-line, Rodrigues comenta que o ato de jogar pode “auxiliar a descarregar energias e impulsividade, lidar com frustrações e com ideias de desistência, fracasso, cooperação e competição”, diz. Jogos que usam o corpo como ferramenta, como “Just Dance”, são capazes de “trazer consciência corporal e são uma forma de autoexpressão”, auxiliando a criança a lidar com adversidades e tensões do dia a dia.

“A gente fala muito sobre jogos violentos, mas falamos pouco das potencialidades dos jogos no contexto de aprendizado”

Quer saber mais sobre jogos on-line e os contrapontos entre comportamento violento e benefícios para a educação e saúde mental? Pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, Universidade Federal da Paraíba e da Universidade Federal Fluminense conversam sobre o tema nesta transmissão para a TV 247.

Rodrigues comenta que os jogos também podem auxiliar a internalizar regras e limites, trabalhar atividades cognitivas como memória, atenção, a habilidade de desempenhar mais de uma atividade ao mesmo tempo, raciocínio lógico, além de falarem sobre objetivo e propósito: embora muitas vezes o objetivo seja “ganhar”, a vitória só pode chegar por meio da coletividade.

“Os jogos são espaços de lazer e socialização, criam uma fantasia comum que fala muito sobre a nossa cultura e o momento que vivemos, abordando valores sociais em suas narrativas”

“Hoje em dia, mais velho, eu percebo o quanto o meio de games pode ser tóxico e fazer mal para crianças e adolescentes que ainda estão se desenvolvendo. Eu já errei e tenho buscado melhorar, fazendo críticas construtivas ao invés de xingar ou entrar em discussões desnecessárias”, diz Daniel “Daniels” Marcon, 27, que conhece bem o cenário digital onde comentários desagradáveis são constantes por já ter sido streamer (profissional que cria conteúdos ao vivo, desde jogos a temas do cotidiano) de “LoL” pela INTZ (organização brasileira que atua no cenário profissional de jogos on-line como “Counter Strike” e “Free Fire”).

“Se o momento que deveria ser relaxante se tornar estressante, a melhor escolha seria jogar algo off-line, para conhecer novos ambientes e personagens”, sugere Daniels. Ele também pondera que “a gente nunca sabe pelo o que a pessoa que xinga está passando; hoje em dia eu percebo que é uma pessoa triste, que está com muitos problemas e acaba descontando dentro de jogo para se sentir aliviado”.

Agora, ele se dedica às carreiras de analista (que estuda o cenário competitivo do jogo e suas atualizações), comentarista (que debate sobre as partidas, geralmente em campeonatos profissionais), além de streamer, atualmente sem vínculos com times. Acompanhado da moderadora Luísa “Reiko” Pacheco, tocam uma live (transmissão ao vivo de áudio e vídeo) na plataforma Twitch com partidas de “League of Legends”, “Teamfight Tactics”, “Valorant”, “Dark Souls” e outros jogos.

“Antigamente eu lidava muito mal com críticas e xingamentos, mas as pessoas que te atacam querem literalmente isso: quanto pior você demonstra estar, pior vão te tratar”

Como funciona a Twitch?

Não é preciso ter uma conta para assistir streams na Twitch, mas caso o usuário queira interagir na plataforma, é necessário escolher um nome de usuário (que não precisa ser real, preservando o anonimato), definir senha, indicar e-mail e data de nascimento. Não é necessário ter foto de perfil. Reiko explica que ferramentas de comando, ao serem executadas no chat, podem ativar opções de proteção, e que há moderação automática, com o auxílio de bots, mas, segundo ela, “se houver um ataque de raid, em que múltiplas pessoas escrevem atrocidades no chat ao mesmo tempo, os bots podem sobrecarregar, demandando uma equipe para moderar manualmente”, diz.

Tela inicial da plataforma Twitch, onde se pode acessar canais recomendados e sugestões de transmissões ao vivo, por exemplo

Em streams na Twitch, Daniels endossa a responsabilidade do streamer para manter a comunidade segura: “o ambiente da live é moldado diariamente, desde uma piadinha que você corta, até um ban [de “banir”] em alguém no chat por preconceito. A stream é uma construção de uma comunidade, então o streamer com os moderadores e seus visualizadores devem sempre trabalhar juntos para estabelecer um ambiente saudável para todo mundo”, comenta. Mas nem sempre é uma tarefa fácil: “já cansei de contar as vezes que as pessoas foram desrespeitosas comigo a troco de nada, não somente no chat ao vivo, mas também nas mensagens privadas da plataforma. Acredito não ser raro um usuário frustrado vir te atacar diretamente por ter recebido punição”, compartilha Reiko.

“Já teve muitos momentos que eu quis aplicar punição em usuários desrespeitosos comigo, mas considerava não fazer isso pois acreditava que estaria saindo da linha de trabalho e indo para o pessoal”

Como funciona o Discord?

Já no Discord, plataforma utilizada para comunicação por voz entre pessoas e grupos e gerenciamento de comunidades, é necessário ter no mínimo 13 anos para criar uma conta. A plataforma pede e-mail, nome de usuário (com a opção de usar um codinome), senha e data de nascimento. Após o registro, o nome do usuário possui o formato de nome, hashtag e um número de quatro algoritmos, como “Lunetas#1234”. Também não é necessário usar foto de perfil. Pacheco explica que, ao criar um servidor, é possível ativar camadas de filtros que deixam o espaço mais seguro.

Página e área iniciais do Discord, onde é possível ver os ícones dos servidores dos quais o usuário faz parte, mensagens diretas recebidas e enviadas, e o status dos amigos

Além dos recursos oferecidos pelo Discord e pela Twitch para moderação de comunidades, os jogos também contam com mecanismos para reportar usuários que tenham sido tóxicos nas partidas. No “League of Legends”, por exemplo, é possível reportar um usuário agressivo na tela de seleção de campeões e/ou no fim da partida, por atitude negativa, abuso verbal, abandonar o jogo propositalmente, perder o jogo propositalmente (atitude chamada “feeding”), discurso de ódio, trapaças e nome ofensivo ou inapropriado. No “Valorant”, com o recurso de chat de voz próprio entre as equipes, é possível reportar jogadores durante e após a partida.

Por serem da mesma empresa (Riot Games), também é possível enviar um “ticket” diretamente para o gerenciamento de comunidade dos jogos, anexando capturas de tela que evidenciam a agressão. Se as denúncias forem aceitas, o jogador reportado pode ser banido do jogo temporária ou permanentemente ou sofrer punições como proibição do uso do chat de texto ou voz, mas sempre existe a possibilidade de criar outra conta para jogar, burlando o tempo de banimento.

Para Rodrigues, a experiência muitas vezes tóxica não acontece necessariamente pela natureza violenta do jogo, mas por vivermos em uma cultura masculinizada e violenta. “No meio gamer, muitos dos xingamentos são voltados a questões de gênero e sexualidade, como se errar fosse uma fraqueza que não pertence ao universo masculino, da liderança, da conquista, desse ideal heróico que é muito trabalhado nos jogos”, diz. A especialista reforça que esses comportamentos não são exclusivos da experiência do videogame, pois também acontecem no futebol, em lutas e no cenário político, por exemplo.

“Além da comunicação violenta que enfrentamos nos jogos em geral, os jogos on-line têm o agravante do anonimato, o que torna esses comportamentos e discursos violentos mais fáceis”

No “LoL”, existe um sistema de honra para incentivar usuários a manter boas condutas nas partidas, com recompensas para jogadores de bom comportamento, como adornos para o perfil dentro do jogo. Apesar de burlável, o jogo também possui um mecanismo de censura de palavras depreciativas, como palavrões, que pode ser desabilitado ou habilitado pelo próprio usuário. Também é possível desativar o chat, pings (sinalizações visuais rápidas de ações no jogo) ou o uso de figurinhas entre a mesma equipe ou equipes inimigas.

A responsabilidade pela criança é coletiva

A responsabilidade por garantir que as interações no fim de cada partida sejam regidas pelo “GG WP” (abreviatura para “Good game, well played” ou “Bom jogo, bem jogado”, em português), e não por xingamentos, é tarefa de todos: afinal, a comunidade dos jogos on-line só vai refletir outros espaços que a criança ou adolescente frequenta, como a casa ou a escola, pontua Rodrigues. “O ideal é que o ambiente familiar e a escola incentivem formas de comunicação não violenta, mas quando esses espaços reproduzem violências, a criança tende a ir naturalizando”.

Além de atitudes tomadas pelas plataformas para criar um ambiente seguro e saudável, pais e responsáveis de crianças e jovens gamers devem acompanhar o que acontece neste universo, de modo que possam “entender que, apesar das pessoas estarem se xingando, isso não é um comportamento adequado”, comenta Fortim. A especialista também pede olhares atentos aos jovens agressores, já que é comum “pensar nos filhos como vítimas desses comportamentos tóxicos, mas muitas crianças e adolescentes são os agressores e não tendem a enxergar isso”, reforça a especialista, responsável por organizar a cartilha “O que as famílias precisam saber sobre games? Um guia para cuidadores de crianças e adolescentes”.

Segundo o relatório “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental”, realizado pela equipe de transição do atual governo, jogos on-line podem ser um dos meios de cooptação de jovens por extremistas de direita, mas não o único. A pesquisa ressalta que “é importante salientar que a escolha desse tipo de ambiente para interagir com adolescentes se dá porque os jogos são um dos recursos mais acessados para a diversão, vazão de sentimentos de raiva e frustração e construção de vínculos sociais. Além disso, também costumam ser espaços onde não há registros permanentes dos diálogos estabelecidos, tornando difícil a identificação da pessoa com quem esses adolescentes se conectam”.

“A família precisa ter uma ideia do que a criança está jogando, ver se concorda com aquilo, saber a classificação indicativa, o porquê dela, ver trailers do jogo, para conseguir orientar e ter conversas abertas” – Ivelise Fortim

O que está sendo feito para combater discursos de ódio nos jogos?

O Instituto Alana, por meio do programa Criança e Consumo, notificou as plataformas digitais Twitter e Discord para cobrar medidas de enfrentamento à violência, questionando como funcionam e atuam em relação a conteúdos associados à violência no ambiente escolar, considerando, principalmente, a escalada de ameaças e ataques armados contra escolas no Brasil e a presença de crianças e adolescentes nas redes sociais. Também para promover a valorização da participação social e o combate a discursos de ódio, o Laboratório de Impacto Gamer (LIGA) atua ocupando os espaços de sociabilidade gamer, promovendo engajamento e desenvolvendo campanhas e pesquisas que vão do Discord ao Twitch, de podcasts ao YouTube.

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