Precisava me concentrar para entregar um projeto. Mas meu filho, de 4 anos, com uma virose, me pedia atenção. Então, transferi meu “escritório” para o sofá ao lado dele e apelei para a TV. Logo, uma interrupção. “Mãe, ‘compa pa mim”‘, pedia Benjamin, hoje com 13 anos, apontando para a tela onde um super-herói acendia luzes em meio a uma aventura contra vilões. Nas letras miúdas, a marca informava que o brinquedo não se mexia sozinho como no comercial, nem vinha com os acessórios que o tornavam interessante. Porém, meu filho, assim como outras crianças que acompanham o canal, ainda não sabe ler. Só restou para ele o desejo de consumo e, para mim, uma certa culpa. Em geral, somos as únicas da família responsáveis por esse cuidado de mediar ou controlar a relação telas e crianças.
Ao perguntar se 70 mães de um grupo do WhatsApp do qual faço parte “se sentem pressionadas por tudo que nos recomendam, mas que muitas vezes nos deixam sem opções”, as respostas foram quase unânimes. Apesar de não verbalizarem culpa, muitas relatam um sentimento de que deveriam estar fazendo algo a mais para evitar as telas.
Mas, em meio a tantas questões da maternidade, será que essa é mesmo uma responsabilidade individual?
Responsabilidade compartilhada
“É extremamente injusto atribuir somente às mães esse tipo de cuidado”, afirma Maria Mello, coordenadora do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana. Mãe de uma criança de seis anos, ela diz que “as famílias, evidentemente, são o elo mais frágil dessa corrente. Isso porque, além de sentirem o peso da responsabilidade diante das falhas do Estado e da negligência das empresas, elas não têm informação sobre como funciona o ambiente digital. Falta esse letramento”.
Enquanto os pais – que são de uma geração em que celulares, tablets e streamings não existiam quando eram crianças – tentam equilibrar o uso de telas na criação dos filhos, as crianças já nascem com esses dispositivos como parte da vida cotidiana, ainda que de forma indireta.
Assim, mesmo mantendo o filho distante das telas, Maria conta que a convivência com amigos na escola faz com que ele já conheça vários personagens do YouTube sem nunca ter acessado a plataforma.
O que dizem as leis?
O trabalho solitário de maternar
Olga*, 48, é mãe de dois meninos e conta que, embora não sinta culpa no momento em que libera as telas, se sente responsável quando eles trazem coisas que assistiram no YouTube cujo conteúdo é duvidoso.
A situação piora quando o ex-marido, pai das crianças, e a mãe dela não seguem as regras que estabeleceu para os filhos. “Aí, eu fico parecendo uma maluca alarmista”, desabafa Olga, que preferiu preservar sua identidade com um nome fictício. “Ao menos os guris confiam em mim e entendem que as limitações de tela que eu imponho os fazem crianças mais saudáveis. Me preocupo com questões bem específicas, da saúde dos olhos e alienação da vida real.”
Já Rosa*, 38, que também preferiu não ser identificada, conta que o neurologista das filhas gêmeas, hoje com quase 5 anos, recomendou não introduzir tela antes de 2 anos de idade. “Ele disse que quanto mais adiasse, melhor. Isso porque uma delas é PCD, e o estímulo poderia atrasar ainda mais o seu desenvolvimento. Mas não tem como fugir”, relata. “Então, elas começaram a acessar as telas com 3 anos. O combinado sempre foi ‘assistir quando tinha sol no céu’, que foi o jeito que encontrei para explicar a elas.”
Contudo, quando vieram as férias, a mãe solo, que estava trabalhando home office com as meninas em casa, não conseguiu manter os limites. “Perdi completamente o controle. Hoje estão assistindo até dormir”, diz. “Ainda não consigo descrever o sentimento: alívio? Culpa? 10 minutos de silêncio? O que estou fazendo com essas crianças?”
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a Academia Americana de Pediatria (AAP) recomendam evitar expor crianças menores de 2 anos às telas. Para crianças de 2 a 5 anos, o tempo de tela deve ser de 1 hora com supervisão de um adulto e atenção à classificação indicativa do conteúdo. Já para maiores de 6 anos e adolescentes, o tempo deve ser limitado a 2 horas por dia, associados a intervalos e exercícios físicos.
Quais são os caminhos?
O mais efetivo requer que as empresas já considerem os direitos das crianças e dos adolescentes na concepção de suas plataformas, produtos e serviços. Também requer um cuidado especial para que seus dados pessoais não tenham fins comerciais, como o direcionamento de publicidade, por exemplo.
Enquanto as plataformas digitais e as empresas provedoras não assumem o dever de cuidado em relação a crianças e adolescentes estabelecido por lei e não são devidamente responsabilizadas por sua proteção na internet, as famílias precisam de amparo. Isso passa por implementar ações como apoio para mães solo, ampliação de vagas em creches, entre outros subsídios que garantam o bem-estar da criança, complementa Maria Mello.
As mães são chefes da família em 48% dos lares brasileiros, de acordo com o IBGE. O número é ainda maior se consideradas as atividades não remuneradas da economia do cuidado, como serviços domésticos e o cuidado com os filhos. Segundo a Oxfam, elas são responsáveis por 75% dessas tarefas.
Na experiência de Delana Corazza, 44, mãe de um menino de 7 anos e de uma menina de 12, projetos de contraturno escolar são fundamentais para manter o equilíbrio no acesso dos filhos ao mundo virtual. “Eles têm atividades de esporte, capoeira, violão e escola de artes. Eu tenho certeza que esse tempo em outros espaços nos ajudou muito a conseguir controlar até hoje. Também moramos em um bairro com muitas praças e uma comunidade escolar participativa e presente no espaço público”, relata. “Outra coisa que ajudou é que somos, de fato, duas pessoas, pai e mãe, que acreditam que o excesso de telas não é bom para eles.”
Mas, “na verdade, a gente sabe, quem tem que ser responsabilizado é o Estado por não regular as mídias e a internet, não oferecer serviços públicos suficientes de cuidados, cultura, esporte e lazer, nem realizar campanhas de conscientização sobre o perigo das telas, não só para as crianças como para os adultos também”, pondera Olga no grupo de mães.
As mães X o mundo virtual e o real
O pediatra Carlos Eduardo Correa, o Cacá, acredita que a discussão sobre deixar ou não que os filhos acessem o mundo virtual gira em torno de extremos que não condizem com a realidade. Na opinião dele, muitas das orientações de especialistas não levam em consideração as especificidades de cada família e os contextos em que estão inseridas.
Segundo ele, que também é pai de um menino de 10 anos e enfrenta em casa os mesmos desafios que são apresentados em seu consultório, “o instrumento de avaliação não deveria ser a quantidade de horas [de exposição às telas], mas sim a qualidade do sono, a irritabilidade, a qualidade do envolvimento, o consumo passivo e ativo desse conteúdo”.
Além disso, ele comenta que os próprios adultos estão com dificuldade de deixar as telas de lado para vivenciar outras experiências. Muitas famílias se sentem responsáveis por entreter a criança o tempo todo e por isso acabam recorrendo às telas. A ideia de que a presença é uma necessidade contínua gera ainda mais culpa nos pais.
Se o tédio bater, deixa entrar
Mas, para reprogramar o equilíbrio entre vida real e virtual, o pediatra propõe o exercício de tédio. “É importante ficar sem fazer nada e isso começa com o adulto. Os pais precisam lidar com o eventual incômodo de deixar a criança livre para encontrar outras maneiras de ocupar o tempo. Pode ser brincar sozinho, com irmãos ou outras formas conforme a dinâmica da família.”
Natália Paulino, 41, mãe do Miguel, 10, que é autista suporte 1, conta que o desafio que tem travado é consigo mesma. “Às vezes, falta ânimo para sair e pegar uma praia, ir na feira de sábado”, diz ela. “Isso pode estar ligado à minha depressão. Mas tem também a falta de vontade de querer negociar sempre, convencer de que a rua é massa, é importante sair, sentir o mundo. Veja, se nem eu estou com certeza disso, falar isso pra ele é sufocante.”
Quem assume a responsabilidade?
“É preciso olhar para o ambiente off-line para que, no on-line, alguns tipos de conteúdos deixem de circular.” Maria Mello se refere a diversos casos de violações que tem vitimizado crianças. “As plataformas têm responsabilidade central em relação a este tipo de conteúdo. Isso afeta de uma forma muito mais impactante crianças e adolescentes por causa da sua fase peculiar de desenvolvimento e da hipervulnerabilidade. Quando o uso é abusivo, isso pode causar inclusive dependência, além de outras consequências físicas e mentais.”
Maria reforça que as plataformas de redes sociais deveriam considerar os direitos das crianças desde a concepção de seus produtos. Mas, segundo ela, o sistema de algoritmos, que oferece conteúdos semelhantes aos que o usuário mais consome, funciona como uma espécie de isca para que se fique cada vez mais tempo dentro do aplicativo. Um modelo de negócio que ao invés de proteger, explora a vulnerabilidade de quem está atrás da tela. O método está presente no Instagram, YouTube e TikTok, as redes mais utilizadas por jovens no Brasil, de acordo com a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2023.
Uma mãe apoia a outra
Em janeiro, Mark Zuckerberg, presidente da Meta, que é dona do Facebook, Instagram e WhatsApp, pediu desculpas em uma sessão no Senado americano com a presença de famílias de jovens que tiveram suas imagens íntimas publicadas sem autorização. Mas, nada impede que anualmente milhares de jovens sejam vítimas de golpes e outras situações perigosas on-line. Isso porque o modelo de negócio dessas mesmas plataformas permanece inalterado.
Além de conversar com as crianças sobre o impacto de ficar muitas horas na frente da televisão ou do celular e encontrar maneiras de fazer essa mediação juntos, Maria Mello fala sobre acolhimento. “Sabendo que as empresas são as verdadeiras responsáveis, nós mães precisamos nos acolher. É preciso entender os nossos limites e saber onde estamos nessa balança no equilíbrio da relação telas e crianças.”
* Alguns nomes são fictícios para preservar a identidade da fonte.
Legislações como o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais deixam claro que a obrigação de zelar pelos mais novos no ambiente digital deve ser compartilhada entre a família, o Estado e a sociedade. Essa é, na verdade, uma premissa da nossa Constituição, que prevê a garantia da prioridade absoluta de crianças e adolescentes. Ou seja, em qualquer situação, deve-se colocar sempre seus interesses em primeiro lugar.
Foi com especial atenção ao artigo 227 que, no início do mês de abril, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) publicou a resolução 245 que, com força normativa, trata de sua proteção no mundo on-line. Partindo de uma seleção das leis em vigor, reforça essa responsabilidade compartilhada, o direito à liberdade de expressão e à informação íntegra, além de trazer exemplos de riscos como o cyberbullying, o discurso de ódio, o abuso sexual, a incitação ao suicídio e à automutilação, a publicidade ilegal e a exploração comercial, determinando que todos eles sejam refreados também pelas empresas.
Celebrada por advogados e por ativistas pelos direitos das crianças e dos adolescentes como uma vitória, a resolução prevê que uma política nacional seja criada em até 90 dias para aprofundar esse conteúdo, contando inclusive com a participação das crianças e dos adolescentes nesse processo.
Além disso, outras tramitações visam reforçar os direitos desse público e regular a internet. O PL 2628 tem o objetivo de criar uma legislação que proteja crianças e adolescentes em ambientes digitais. Adicionalmente, o Marco Legal dos Games busca elaborar diretrizes para a indústria de jogos eletrônicos e jogos de fantasia. Já o PL 2630, que prevê propostas para responsabilizar as plataformas de redes sociais e os serviços de mensagens pelos conteúdos que ali circulam, deve ser reformulado do zero para votação.